A VERDADEIRA VIDA CRISTÃ

Em que consiste a verdadeira vida cristã? Faremos bem em considerar esta questão desde o início. O objetivo destes estudos é demonstrar quanto ela é diferente da vida da maior partes dos cristãos. De fato, uma meditação da Palavra escrita de Deus —por exemplo, o Sermão da Montanha— deveria impulsionar-nos a nos perguntar se uma semelhante vida tenha sido jamais vivida sobre a terra, aparte do Filho de Deus mesmo. A resposta encontra-se justamente nesta última afirmação.
 O apóstolo Paulo nos dá a sua definição da vida cristã na carta aos Gálatas, no capítulo 2, versículo 20: "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim". O apóstolo, aqui, não expõe uma maneira de viver particular, um cristianismo de alto nível, mas apresenta simplesmente aquilo que Deus pede de cada cristão.
Deus nos revela em sua Palavra que Ele tem somente uma resposta para cada necessidade humana: seu Filho Jesus Cristo. Em cada relação dEle conosco Ele opera colocando-nos aparte e pondo Cristo em nosso lugar.
O Filho de Deus morreu em nosso lugar para o nosso perdão, e vive, em nosso lugar, para a nossa liberação. Podemos assim falar de duas substituições: um Substituto sobre a Cruz que nos procura o perdão, e um Substituto dentro de nós, que nos assegura a vitória. Nos ajudará enormemente e ficaremos protegidos de muitas confusões, se nos lembrarmos sempre deste fato: Deus resolverá todos os nossos problemas de uma única forma, ou seja, com a revelação sempre mais profunda do seu Filho.

O NOSSO DUPLO PROBLEMA: OS PECADOS E O PECADO
Tomaremos como ponto de partida pelo nosso estudo sobre a verdadeira vida cristã o grande ensino que nos é apresentado nos primeiros oito capítulos da epístola aos Romanos, e enfrentaremos nosso projeto desde um ponto de vista prático. Será útil, de qualquer forma, ressaltar a divisão natural desta seção bíblica em duas partes, e considerarmos aquelas que emerjam nos temas tratados em cada uma delas.
 Os primeiros oito capítulos da carta aos Romanos constituem um todo em si mesmo. Os primeiros quatro, junto com os versículos 1-11 do quinto, formam a primeira parte, e os outros três capítulos e meio (5:12 – 8:39) formam a segunda parte deste conjunto. Uma leitura atenta nos mostrará que o argumento tratado na primeira metade é diferente daquele tratado na segunda. Por exemplo, na primeira metade podemos relevar o uso preponderante da palavra "pecados", em plural. Na segunda metade, ao contrário, já não é mais assim, porque enquanto a palavra "pecados" aparece somente uma vez, a palavra "pecado", em singular, repete-se muitas vezes e si constitui no principal tema tratado. Por que acontece isto?
Porque na primeira parte trata-se dos pecados que eu tenho cometido diante de Deus, pecados numerosos e que podem ser contados; enquanto na segunda, o pecado é examinado como o princípio que opera em mim. Qualquer seja o número de pecado que eu tenha cometido, aquilo que age em mim é sempre o mesmo princípio de pecado. Eu preciso de perdão pelos meus pecados, mas necessito também ser liberado do poder do pecado. O perdão diz respeito a minha consciência, a liberação concerne a minha vida. Posso receber o perdão de todos os meus pecados, mas, a causa do "meu" pecado, não encontro paz duradoura no meu espírito.
Quando a luz de Deus penetrou pela primeira vez em meu coração, meu primeiro desejo foi o de ser perdoado, porque compreendi que tinha pecado diante dEle; mas depois de ter recebido o perdão dos pecados fiz um novo descobrimento, aquele do pecado, e percebi que não somente havia pecado diante de Deus, mas que dentro de mim existe alguma coisa injusta.
Descobri a minha natureza de pecador. Existe em mim uma tendência natural para o pecado, um poder superior que me arrasta ao pecado. Quando esta força maléfica se manifesta, eu peco. Posso procurar de receber o perdão, mas ainda assim continuarei pecando. A minha vida continua então num círculo viçoso: peco, sou perdoado, porém volto pecar. Alegro-me considerando a bênção do perdão de Deus, mas preciso de alguma coisa a mais: eu preciso da liberação. Necessito do perdão por aquilo que eu fiz, mas preciso também de ser liberado daquilo que eu sou.


O DUPLO REMÉDIO DE DEUS: O SANGUE E A CRUZ
Portanto, os oito primeiros capítulos da Epístola aos Romanos nos apresentam dois aspectos da salvação: primeiro o perdão dos nossos pecados, e depois a liberação do pecado. Porém agora, levando em conta este fato, devemos considerar mais uma diferença.
Na primeira parte de Romanos 1-8 (versículos de 1:1 até 5:11) menciona-se duas vezes o sangue de Jesus, no versículo 3:25 e no versículo 5:9. Na segunda parte (versículos de 5:12 até 8:38) é introduzida, no versículo 6:6, uma nova idéia, quando nos é dito que nós fomos "crucificados" com Cristo. O tema tratado na primeira seção concentra-se sobre aquele aspecto da obra do Senhor Jesus, que é representado pelo "sangue" vertido pela nossa justificação através da "remissão dos pecados". Esta terminologia já não é utilizada na segunda seção, onde o tema se concentra sobre o aspecto de sua obra, representado pela "Cruz", ou seja, pela nossa união com Cristo em sua morte, em sua sepultura e em sua ressurreição. Esta distinção tem um grande valor. Veremos assim que o sangue tem a ver com o que temos feito, enquanto que a Cruz refere-se ao que somos. O sangue cancela nossos pecados, ao passo que a Cruz se ocupa da origem de nossa natureza pecaminosa. Este último aspecto será a substância de nossa meditação, nos capítulos que se seguem.

O PROBLEMA DOS NOSSOS PECADOS
Comecemos, então, a considerar o sangue precioso do Senhor Jesus Cristo e o seu valor para nós, em quanto cancela os nossos pecados e nos justifica diante dos olhos de Deus. Este aspecto é apresentado nos seguintes passos: "todos pecaram" (Rm 3:23).
"Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira" (Rm 5:8-9).
"Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus." (Rm 3:24-26).
Mais adiante no curso do nosso estudo mostraremos a verdadeira natureza da queda e sobre como sermos salvos. Aqui lembraremos, simplesmente, que o pecado se revelou como um ato de desobediência a Deus (Rm 5:19). Devemos lembrar agora que a desobediência é imediatamente seguida da culpa.
O pecado manifesta-se, então, como uma desobediência, e cria uma separação entre Deus e o homem, a continuação do qual o homem é expulso longe de Deus. Deus não pode ter mais comunhão com ele, porque tem penetrado um obstáculo ao qual a Escritura dá o nome de "pecado". Assim Deus estabelece, antes que nada, que "todos estão debaixo do pecado" (Rm 3:9), sendo então que o pecado, que de agora em diante constitui um obstáculo à comunhão do homem com Deus, dá origem no homem a um sentido de culpa pelo distanciamento de Deus. Então o homem, seguindo a sua consciência redescoberta, diz: "Pequei" (Lc 15:18). Porém isto não é tudo, porque o pecado fornece também uma razão para o adversário acusar o homem diante de Deus, enquanto o nosso sentido de culpa lhe dá a razão para acusar-nos em nosso coração, convertendo-o assim, finalmente, no "acusador dos irmãos" (Ap 12:10), que lhes diz: "Vocês pecaram".
Era necessário, então, que o Senhor Jesus, para introduzir-nos novamente no plano de Deus, cumprisse a sua obra no que respeita a estes três aspectos: o pecado, a culpa e a acusação de Satanás contra nós. Precisava-se, antes que nada, que os nossos pecados fossem cancelados, e isto foi cumprido pelo precioso sangue de Cristo. Necessitava-se, depois, que a nossa culpa fosse perdoada, e que a nossa consciência fosse tranqüilizada mediante a revelação do valor daquele sangue. Finalmente, era necessário enfrentar os ataques no inimigo e responder as suas acusações. Nos é mostrado, nas Escrituras, que o sangue de Cristo age eficazmente nestas três direções: para Deus, para o homem e para Satanás.
Se quisermos avançar, devemos absolutamente apropriar-nos das virtudes daquele sangue. Esta é a primeira condição essencial. Devemos ter uma consciência fundamental do fato que o Senhor Jesus morreu na Cruz em nosso lugar, e uma clara compreensão da eficácia do seu sangue em cancelar nossos pecados.
Se não temos esta consciência, não podemos dizer que estejamos encaminhados em nossa via. Examinaremos estes três temas mais de perto.

PRIMEIRAMENTE O SANGUE TEM VALOR DIANTE DE DEUS
O sangue foi vertido pela expiação e é ligado à nossa posição diante de Deus. Para não cair sob juízo, precisamos do perdão pelos pecados que temos cometido, e os nossos pecados nos são perdoados não porque Deus feche seus olhos ao mal que temos cometido, mas porque Ele vê o sangue do seu Filho. O sangue não é, então, primariamente "para nós" mas "para Deus". Se eu desejo conhecer o valor do sangue para mim, devo aceitar tudo aquilo que ele significa para Deus; se eu não conheço o valor que o sangue tem para Deus, não conhecerei nunca o valor que ele tem para mim. Somente quando o Espírito Santo tenha me revelado o preço que Deus atribui ao sangue de Cristo, penetrará em mim o benefício de sua virtude e compreenderei o seu precioso valor para mim. Mas o primeiro aspecto do sangue é para Deus. Na Antiga e na Nova Aliança, a palavra "sangue", usada em conexão com a idéia de expiação, é adotada mas de cem vezes, e é sempre apresentada como de grande valor diante de Deus.
Existe no calendário do Antigo Testamento um dia que se encontra em estreita relação com o argumento dos nossos pecados: é o Dia da Expiação. Nada explica este problema dos pecados tão bem quanto a descrição deste dia. No capítulo 16 de Levítico lemos que, no Dia da Expiação, o sangue era tomado das ofertas pelos pecados e levado no Lugar Santíssimo para ser aspergido sete vezes diante do Eterno. É necessário compreender isto muito claramente. Naquele dia, o sacrifício pelos pecados era oferecido publicamente no átrio do Tabernáculo. Tudo era feito abertamente e podia ser visto por todos. mas o Senhor tinha ordenado severamente que ninguém entrasse no Tabernáculo, a exceção do Sumo Sacerdote. Ele só tomava o sangue depois de ter entrado no Lugar Santíssimo e realizava a aspersão diante do Senhor. Por quê? Porque ele era figura do Senhor Jesus em sua obra redentora: "Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção" (Hb 9:11-12). Assim sendo, ninguém senão o Sumo Sacerdote podia se aproximar e penetrar no Santuário. Alem disso, ele entrava para cumprir um único gesto: apresentar a Deus o sangue como uma oferta aceitável, na qual Deus podia ter satisfação. Era uma transação entre o Sumo Sacerdote e Deus no segredo do Lugar Santíssimo, longe dos olhares dos homens que deviam resultar beneficiados. O Senhor o requeria assim. O sangue é, então, o primeiro lugar não "para nós", mas "para Ele". Já antes achamos descrita a efusão do sangue do cordeiro pascual no Egito para o resgate de Israel. "E aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós, e não haverá entre vós praga de mortandade, quando eu ferir a terra do Egito" (Êx 12:13). Aquela é ainda, penso, uma das figuras mais claras da nossa redenção que possamos achar no Antigo Testamento. O sangue era colocado sobre as ombreiras e na verga das portas, enquanto o carne dos cordeiros era comido no interior das casas. E Deus disse: "vendo eu sangue, passarei por cima de vós".
Temos aqui uma outra ilustração do fato que o sangue não deve ser apresentado ao homem, mas a Deus, porque o sangue era colocado no exterior da casa e aqueles que celebravam a festa no interior não podiam vê-lo.

DEUS É SATISFEITO
A santidade de Deus e a justiça de Deus requerem que uma vida sem pecado seja entregue pelo homem. A vida está no sangue e aquele sangue deve ser vertido por mim a causa dos meus pecados. É Deus quem o reclama, Deus é Aquele que pede que o sangue seja oferecido, para satisfazer a sua justiça; é Ele mesmo que declara: "vendo eu sangue, passarei por cima de vós". O sangue de Cristo satisfaz plenamente a Deus.
Gostaria aqui de dar uma palavra aos meus mais jovens irmãos no Senhor, porque é neste ponto que achamos, com freqüência, dificuldades. Antes de acreditar em Cristo, talvez nunca tenhamos sido turbados pelas nossas consciências, até que a Palavra de Deus não começou despertá-la. A nossa consciência estava morta e Deus não pode fazer nada com aqueles cuja consciência está morta. Porém mais tarde, quando cremos, a nossa consciência acordada tornou-se extremamente sensível e isto pode constituir-se num verdadeiro problema para nós. O sentimento do pecado e da culpa pode tornar-se tão grande e tão terrível, que pode até chegar a paralisar-nos, fazendo-nos perder de vista a verdadeira eficácia do sangue. Nos parece, então, que os nossos pecados sejam muito reais, e qualquer pecado em particular pode atormentar-nos tão freqüentemente que pode fazer-nos acreditar que os nossos pecados sejam maiores que o sangue de Cristo. Ora, todas as nossas dificuldades provêm disto: provar a sentir o valor do sangue e estimar subjetivamente o que ele significa para nós. Mas não podemos fazer isto, porque não é assim que se fazem as coisas. É Deus quem, antes que nada, deve ver o sangue. Depois, nós devemos aceitar em seguida o valor que Deus lhe dá. somente então compreenderemos o valor que tem para nós. Se, ao contrário, tratamos de avaliá-lo segundo o nosso modo de pensar, não obteremos nada, ficaremos no escuro. É uma questão de fé na Palavra de Deus, devemos acreditar que o sangue de Cristo é precioso diante de Deus, porque Ele disse que assim era. "Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da sua vã maneira de viver que por tradição recebestes dos seus pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós" (1 Pe 1:18-20). Se Deus pode aceitar o sangue de Cristo como uma expiação dos nossos pecados e como preço da nossa redenção, podemos estar seguros que a dívida ficou paga. Se Deus está satisfeito com o sangue, quer dizer que o sangue é aceitável. O valor que nós atribuímos ao sangue deve se corresponder com o que Deus lhe atribui, nem mais nem menos. Não pode certamente ser mais alto, mas também não deve ser mas baixo. Lembremos que Deus é Santo e justo, e que um Deus justo e santo tem o direito de declarar que o sangue de Cristo O tem agradado o satisfeito plenamente.

A VIA PELA QUAL O CRENTE VAI A DEUS
O sangue de Jesus satisfez Deus, mas deve satisfazer também a nós. Existe, então, um segundo valor, que é para o homem, em quanto que purifica a nossa consciência. Meditando sobre a Epístola aos Hebreus achamos aquilo que o sangue fez. Ele conseguiu para nós "corações purificados da má consciência" (Hb 10:22).
Isto é muito importante. Consideremos atentamente o que está escrito. O autor não nos diz somente que o sangue do Senhor Jesus purifica o nosso coração; não pára nesta declaração.
É um erro relacionar o coração com o sangue desta maneira. Assim demonstramos não compreender a esfera na qual opera o sangue, quando apregoamos: "Senhor, purifica o meu coração do pecado com o Teu sangue"; o coração, Deus diz, é "enganoso" e "perverso" (Jr 17:9).
Deus deve então fazer alguma coisa mais eficaz que purificá-lo: Ele deve nos dar um coração novo.
Nós nunca pensaremos em lavar e passar o ferro numa roupa que seja para jogar fora. Como veremos mais adiante, a "carne" é demasiadamente corrupta para ser purificada: ela deve ser crucificada.
A obra de Deus em nós deve ser uma coisa completamente nova: "E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo" (Ez 36:26).
Não, eu não acho nenhum versículo no qual seja declarado que o sangue de Cristo purifica o coração. A sua obra não é subjetiva neste sentido, mas inteiramente objetiva, diante de Deus. É verdade que a obra da purificação do sangue, segundo Hebreus 10, toca nosso coração, mas é em relação com a nossa consciência. "...tendo os corações purificados da má consciência" (Hb 10:22): o que significa isto? Significa que um obstáculo foi introduzido entre eu e Deus, criando em mim uma má consciência que advirto a cada vez que tento me aproximar dEle. Ela me lembra constantemente a barreira que foi criada entre Ele e eu. Porém agora, a obra do sangue precioso eliminou aquela barreira, e Deus me fez conhecer este fato mediante a sua Palavra.
Devido a que eu cri e aceitei Jesus, a minha consciência foi purificada e o meu sentido de culpa desapareceu; já não tenho uma má consciência diante de Deus.
 Cada um de nós sabe quanto é precioso ter, em nossa relação com Deus, uma consciência pura de cada mácula de pecado. Sim, um coração cheio de fé e uma consciência limpa de todas as acusações são duas coisas essenciais para nós, e uma acompanha a outra. Quando perdemos a paz da consciência, a nossa fé naufraga, e sentimos em seguida que não podemos nos aproximar de Deus. mas para poder continuar a caminhar com Deus devemos conhecer sempre o valor atual do sangue. Deus tem uma contabilidade muito precisa, e é pelo sangue de Cristo que nós podemos, a cada dia, cada hora e cada minuto, nos aproximar dEle. O sangue não perde nunca a sua eficácia como nossa base de acesso ao trono da graça, e nós confiamos inteiramente nisso. Então, quando entramos no Lugar Santíssimo, sobre qual fundamento além do sangue ousaremos nos apoiar?
Eu preciso me fazer esta pergunta: procuro verdadeiramente ir a Deus através do sangue, ou me confio em qualquer outra coisa? O que entendo quando digo: "através do sangue"? Quero dizer, simplesmente, que eu reconheço os meus pecados, que necessito purificação e expiação, e que me aproximo de Deus apoiando-me só em seus méritos, e nunca confiando nas minhas próprias forças. Nunca, por exemplo, fundando-me no fato de ter sido particularmente amável ou paciente durante o dia, ou de ter feito qualquer coisa pelo Senhor nesta manhã. Devo me aproximar de Deus sempre pela via do sangue de seu Filho. A tentação, para muitos de nós, quando queremos nos achegar a Deus, é a de pensar que, já que Deus tem agido em nós, nos fez conhecer alguma coisa de mais sobre Ele e nos abriu os olhos acerca de lições mais profundas a respeito da Cruz, tem colocado assim diante de nós novas normas de vida, e que somente nos submetendo a elas poderemos ter uma consciência pura diante dEle.
Não! Uma consciência pura não está nunca baseada sobre uma vitória que tenhamos conseguido; ela só pode ser estabelecida sobre a obra que o Senhor Jesus cumpriu vertendo o seu sangue.
Posso errar, mas tenho a impressão muito forte que alguns de nós temos, às vezes, sentimentos como estes: "Hoje eu fui mais amável; hoje eu agi melhor; esta manhã li a Palavra de Deus de forma mais recolhida, então posso orar melhor!", ou, ainda: "Hoje eu tive algumas dificuldades com a minha família, comecei o dia de péssimo humor, sem jeito, e agora não me sinto tão cômodo assim; parece que alguma coisa não está indo bem; não posso, porém, me aproximar de Deus".
Qual é, afinal, a base sobre a qual vocês se aproximam de Deus? Vão a Ele sobre o fundamento incerto dos seus sentimentos, pensando que hoje conseguiram fazer alguma coisa para Ele? Ou vocês se apóiam sobre um fundamento muito mais seguro, ou seja, sobre o fato que o sangue foi vertido e que, vendo esse sangue, Deus está satisfeito? Naturalmente, se tivesse sido possível conceber que a virtude do sangue pudesse ser mudada, a base sobre a qual nos aproximamos de Deus seria menos digna de confiança. Porém, a virtude do sangue nunca mudou e nunca mudará. Podemos, então, nos achegar sempre a Deus com certeza, e esta segurança a obtemos através do sangue, e nunca pelos nossos méritos pessoais. Qualquer seja a medida dos nossos méritos de hoje, de ontem ou de anteontem, apenas nos chegamos com plena consciência ao lugar três vezes santo, é preciso imediatamente que nos apoiemos sobre o terreno seguro e único do sangue vertido. Se o nosso dia foi bom ou ruim, se pecamos a sabendas ou não, o fundamento sobre o qual nos aproximamos a Deus é o mesmo: o sangue de Cristo. O fato de este sangue ser agradável a Deus permanece a única base sobre a qual podemos entrar em sua presença; não existem outras.
Como em muitas outras etapas da nossa experiência cristã, este fato do acesso a Deus se compõe de duas fases, uma inicial e uma sucessiva. A primeira está representada em Efésios 2, e a segunda em Hebreus 10. No início, a nossa posição diante de Deus é assegurada pelo sangue, porque nós fomos "aproximados pelo sangue de Cristo" (Ef 2:13). E imediatamente a base do nosso contínuo acesso a Deus subsiste ainda no sangue; portanto o apóstolo nos exorta assim: "Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus, (...) Cheguemo-nos" (Hb 10:19,22). Para começar fui re-aproximado pelo sangue, e a continuação, nesta nova relação com Deus devo sempre recorrer ao sangue. Não que eu tenha sido salvado sobre uma certa base e que depois mantenha a minha comunhão com Deus sobre uma outra base. Vocês dirão: "Isto é muito simples; é o ABC do Evangelho". Sim, porém é um fato que muitos de nós nos temos distanciado deste ABC. Temos pensado de ter feito progressos e de tê-lo assim superado, mas nunca poderemos fazer isto. Não, eu me aproximei de Deus a primeira vez através do sangue, e a cada vez que me apresento a Ele é pelo mesmo meio. Até o fim será assim, sempre e unicamente sobre a base do sangue de Cristo.
Isto não significa de maneira alguma que devamos viver uma vida despreocupada; de fato, estudaremos mais tarde um outro aspecto da morte de Cristo, que mostrará a vocês uma coisa completamente diferente. Porém de momento, contentemo-nos com o sangue que está conosco e nos é suficiente. Podemos ser fracos, mas considerando a nossa debilidade não ficaremos mais fortes. Nem também não tentando de sentir a nossa miséria e fazendo penitência nos tornaremos mais santos. Não encontraremos nenhuma ajuda neste sentido. Tenhamos então a coragem de encostar-nos em Deus confiando no sangue, e digamos: "Senhor, eu não conheço bem o valor do sangue, mas sei que o sangue tem Te satisfeito, portanto, o sangue me basta, e é o meu único refúgio. Vejo agora que, tenha eu realizados progressos ou não, tenha eu melhorado ou não, não posso nunca me apresentar diante de Ti senão sobre o fundamento do precioso sangue". Então a nossa consciência ficará verdadeiramente livre diante de Deus. nenhuma consciência poderá nunca ser purificada fora do sangue. É o sangue que nos dá segurança diante de Deus; "De outra maneira, teriam deixado de se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam consciência de pecado", esta é a poderosa expressão de Hebreus 10:2. Somos purificados de cada pecado; podemos fazer eco com Paulo às palavras de Davi: "Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado" (Romanos 4:8).

A VITÓRIA SOBRE O ACUSADOR
Depois de tudo que já temos considerado, podemos agora enfrentar o inimigo, porque existe ainda um outro aspecto da virtude do sangue, aquele que nos resguarda de Satanás.
A atividade mais viva de Satanás neste tempo consiste em ser o acusador dos crentes: "...porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite" (Apocalipse 12:10).
É nesta ação sua que o nosso Senhor o enfrenta com o seu particular ministério de Sumo Sacerdote, "por meio do seu próprio sangue" (Hb 9:12).
Qual é, então, a obra do sangue contra Satanás? Ela consiste em colocar a Deus de parte do homem, contra Satanás. A queda produziu no homem uma condição que tem permitido o adversário entrar em contato com ele, com o resultado de forçar Deus a se retirar. O homem está agora fora do Jardim do Éden, já não pode ver mais a glória de Deus: "...todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Rm 3:23), porque, inteiramente, o homem transformou-se num estranho para Deus. Como conseqüência do que o homem tem feito, existe agora alguma coisa nele que impede Deus de defendê-lo, até que o obstáculo seja removido. Mas o sangue de Cristo tirou esta barreira; restituiu o homem a Deus e Deus ao homem. O homem está agora sob a proteção divina, e devido a que Deus o acompanha, Ele pode sem temor enfrentar Satanás.
 Vocês se lembrarão daquele versículo da primeira epístola de João, e esta é a tradução que eu prefiro: "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de cada pecado" (1 Jo 1:7). Não é exatamente "todos os pecados", no sentido geral, mas de cada pecado, cada um detalhadamente.
O que significa isto? É uma coisa maravilhosa!
Deus está na luz, e se caminhamos com Ele na luz, tudo fica exposto e descoberto diante desta luz, e assim Deus pode ver tudo perfeitamente, enquanto o sangue de Cristo pode purificar-nos de cada pecado. Que purificação! Isto não significa que eu não conheça profundamente a mim mesmo, ou que Deus não me reconheça perfeitamente. Não é que eu procure escondê-Lhe alguma coisa, nem que tente de não vê-Lo. Não, acontece que Ele é a luz, que também eu estou na luz e que ali o sangue precioso me purifica de cada pecado. O sangue tem condições de fazer isto!
Alguém, oprimido pela sua debilidade, poderia ser tentado a pensar que existem pecados imperdoáveis. Lembremo-nos então destas palavras: "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de cada pecado". Grandes pecados, pequenos pecados, pecados que podem parecer tão pretos e pecados que não nos parecem tão graves, pecados que eu acredito possam ser perdoados e pecados que achamos imperdoáveis, sim, todos os pecados, conscientes ou inconscientes, tanto aqueles de que eu me lembro como aqueles que já esqueci, estão contidos nestas palavras: "cada pecado". "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de cada pecado". E pode fazê-lo porque em primeiro lugar satisfaz o Pai.
E se Deus, que vê todos os nossos pecados à luz, pode perdoá-los graças ao sangue, qual fundamento de acusação resta a Satanás? Ele pode nos acusar diante de Deus, porém, "se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Rm 8:31).
Deus lhe mostra o sangue de seu Filho dileto e esta é a resposta suficiente à qual Satanás não pode replicar de maneira alguma. "Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós." (Rm 8:33-34). Temos ainda, no obstante, a necessidade de reconhecer a eficácia absoluta do sangue precioso. "Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção." (Hb 9:11-12).
Ele foi Redentor uma vez, e agora, quase dois mil anos depois, é Sumo Sacerdote e Advogado. Ele está na presença de Deus e é a "propiciação pelos nossos pecados" (1 Jo 2:1). Notemos bem as palavras de Hebreus 9:14: "Quanto mais o sangue de Cristo (...) purificará as suas consciências...". Estas palavras sublinham a eficácia perfeita do seu ministério, que é suficiente perante Deus. Qual deverá ser a nossa postura a respeito de Satanás? Esta pergunta é importante porque o inimigo nos acusa não somente diante de Deus, mas também em nossas próprias consciências: "Você pecou e continua a pecar. Você é fraco, e Deus não pode fazer nada por você". Estas são as armas das quais se serve Satanás.
Então somos tentados de olhar dentro de nós, para tratar de achar em nós mesmos, em nossos sentimentos ou em nossa conduta, uma razão para acreditar que Satanás está errado; ou então somos tentados a reconhecer a nossa debilidade e, indo até o outro extremo, de abandonar-nos ao desencorajamento e à desesperação. A acusação converte-se assim em uma arma de Satanás, a mais forte e eficaz. Ele nos mostra nossos pecados e procura acusar-nos diante de Deus, e se não reconhecemos a fraqueza das suas acusações, caímos em seguida em desespero. Ora, a razão pela qual aceitamos tão facilmente as acusações de Satanás é que esperamos ainda achar alguma justiça em nós. Mas o fundamento de nossa esperança é falso e assim o adversário alcançou seu objetivo, que consiste em fazer-nos olhar para a direção errada, dando-lhe assim o modo de nos deixar sem forças para resistir. Porém, se temos aprendido a não confiar na carne, não ficaremos surpresos quando cairmos em algum pecado, porque a natureza própria da carne é o pecado. Compreendem o que quero dizer? Porque não conseguimos ainda conhecer a nossa verdadeira natureza, nem ver o impotente que somos, temos ainda alguma confiança em nós mesmos, e somos ainda esmagados pelas acusações de Satanás. Deus tem o poder de regularizar a questão dos nossos pecados, mas nada pode fazer por um homem que está sob acusação, até que este homem não coloca completamente a sua confiança no sangue de Cristo. O sangue fala em seu favor, porém o homem dá ouvidos a Satanás. Cristo é o nosso advogado, mas nós, os acusados, nos sentamos ao lado do nosso acusador. Não compreendemos que somos dignos somente de morte; que, como veremos em seguida, só podemos ser crucificados de todas as maneiras. Não temos ainda compreendido que somente Deus pode responder ao acusador e que já o fez com o sangue precioso de seu Filho. A nossa salvação consiste em voltar o nosso olhar ao Senhor Jesus, e em ver que o sangue do Cordeiro tem enfrentado toda a situação gerada pelo nosso pecado, e a tem resolvido.
Este é o fundamento seguro com o qual podemos contar. Não deveremos nunca procurar responder a Satanás com a nossa boa conduta, mas sempre com o sangue de Jesus. Sim, somos pecadores, mas —louvado seja Deus!—, o sangue nos purifica de cada pecado. Deus olha para o sangue pelo qual seu Filho respondeu a acusação, e Satanás não tem mais base para nos atacar. A nossa fé no precioso sangue e a nossa recusa de abandonar esta segura posição podem, sozinhas, reduzir ao silencio as acusações de Satanás e pô-lo em fuga.
"Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós." (Rm 8:33-34).
E assim será até o fim: "E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram as suas vidas até à morte" (Ap 12:11). Que liberação para nós discernirmos melhor o valor que tem, aos olhos de Deus, o sangue precioso de seu Filho dileto!


CAPÍTULO 2 – A CRUZ DE CRISTO

Temos visto que os oito primeiros capítulos da epístola aos Romanos podem ser divididos em duas partes.
Foi-nos mostrado, na primeira parte, que o sangue age segundo o que temos feito; enquanto, na segunda parte, veremos que a Cruz[1] age segundo o que nós somos. Precisamos do sangue de Jesus para o perdão; e precisamos da Cruz para ser liberados. Tratamos brevemente nas páginas precedentes o primeiro aspecto e nos deteremos agora no segundo; porém, antes de fazê-lo, consideraremos ainda algum outro passo importante, referente em toda esta seção que sublinha a diferença entre o tema tratado e os pensamentos seguidos nestas duas partes.

OUTRA DISTINÇÃO
Dois aspectos da ressurreição são mencionados nas duas partes, com referências aos capítulos 4 e 6. na epístola aos Romanos, 4:25, a ressurreição do Senhor Jesus está ligada à nossa justificação: "O qual (Jesus) por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação." O tema em vista neste fragmento é a nossa posição diante de Deus. mas em Romanos 6:4 a nossa ressurreição nos é mostrada como o dom de uma nova vida, com vistas a um caminho santificado: "...para que, como Cristo foi ressuscitado (...) assim andemos nós também em novidade de vida". A palavra que está aqui diante de nós tem a ver com o nosso caminho diante de Deus. Por outra parte, se fala da paz nos capítulos 5 e 8. Romanos 5 fala da paz com Deus que é o fruto da justificação mediante a fé em seu sangue: "Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5:1). Isto significa que havendo eu recebido o perdão pelos meus pecados, Deus já não mais será para mim causa de terror e de angústia. Eu, que era inimigo de Deus, fui "reconciliado com Ele pela morte de seu Filho" (Rm 5:10). Porém, em seguida, me lembro que estou por mim mesmo sujeito a grande tormento. Existe ainda incerteza em mim, porque há no fundo do meu "eu" alguma coisa que me empurra a pecar. Tenho a paz com Deus, mas não tenho a paz comigo mesmo. Existe, de fato, a guerra no meu coração. Há uma descrição muito clara em Romanos 7, onde a carne e o espírito desencadearam um conflito mortal em mim. Mas partindo daqui, a Palavra nos conduz ao capítulo 8, à paz interior pelo caminho segundo o Espírito. "Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser" (Rm 8:6-7).
Prosseguindo ainda no nosso estudo, vemos que a primeira metade da segunda seção trata em geral da questão da justificação. Veja por exemplo: "Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus." (Romanos 3:24-26).
E ainda: "Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça (...) Mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação." (Romanos 4:5,24-25).
A segunda metade da seção tratada, pelo contrário, tem como sujeito principal o interrogativo correspondente à santificação. De fato, em Romanos 6:19 e 22 diz: "...pois que, assim como apresentastes os seus membros para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os seus membros para servirem à justiça para santificação (...) Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o seu fruto para santificação, e por fim a vida eterna". Então, quando conhecemos a preciosa verdade da justificação pela fé, conhecemos somente a metade. Temos resolvido somente o problema de nossa posição diante de Deus mas, à medida que avançamos no conhecimento, Deus tem alguma coisa a mais para nos oferecer; ou seja, a solução do problema de nossa conduta. O desenvolvimento do pensamento, nestes capítulos da epístola aos Romanos, sublinha a importância deste ponto. O segundo passo é o resultado do primeiro e se nós ficamos no primeiro teremos uma vida cristã ainda imperfeita, ou por debaixo do normal.
Como podemos, então, viver uma vida cristã normal? Como poderemos fazer? É preciso, naturalmente, começar por resolver o perdão dos pecados; é necessária a justificação e a paz com Deus: isto constitui um fundamento indispensável. Porém, uma vez estabelecida esta base como o nosso primeiro ato de fé em Cristo, fica claro, do que precede, que devemos avançar para alguma coisa a mais. Assim vemos que o sangue tem efeito sobre os nossos pecados. O Senhor Jesus os levou em nosso lugar sobre a Cruz, como nosso substituto, e assim obteve o perdão para nós, a justificação e a reconciliação. Mas devemos, agora, dar um passo adiante no conhecimento do plano de Deus para compreender como age sobre o princípio do pecado que há em nós. O sangue pode cancelar os meus pecados, mas não pode suprimir meu "velho homem". É preciso que a Cruz o faça morrer. O sangue deixa os pecados de lado, mas é necessária a Cruz para pôr de lado o pecador.
Acharemos raramente a palavra "pecador" nos primeiros quatro capítulos da epístola aos Romanos, porque não são os pecadores o alvo principal, mas o pecado que têm cometido. A palavra "pecador" aparece pela primeira vez no capítulo 5, e é importante observar como é introduzida a idéia do pecador. Diz-se neste capítulo que o pecador é assim porque nasceu pecador, e não porque cometeu pecados. A diferença é importante. É verdade que amiúde, para convencer o homem da rua de que é um pecador, o servo do Senhor utiliza a instância bem conhecida de Romanos 3:23, onde diz que "todos pecaram"; mas o uso deste texto não está estritamente de acordo com as Escrituras. Os versículos que são utilizados assim comumente podem, às vezes, pôr em perigo a integração e conduzir a uma conclusão errada. De fato, a epístola aos Romanos não ensina que sejamos pecadores porque cometemos pecados, senão que cometemos pecado porque somos pecadores. Somos pecadores por natureza, antes que pelo nosso comportamento. Como declara Romanos 5:19: "pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores". Como nos convertemos em pecadores? Pela desobediência de Adão. Nós não nos convertemos em pecadores por aquilo que fizemos, mas a causa daquilo que Adão fez e daquilo em que se converteu. Eu falo inglês, mas isso não me converte num inglês. Eu sou em verdade chinês. Assim, o capítulo 3 chama a nossa atenção para o que temos feito. "Todos pecaram", mas não é porque pecamos que nos convertemos em pecadores. Um dia fiz esta pergunta a uma aula de escolares: "Quem é um pecador?" A resposta imediata deles foi: "Aquele que peca". Sim, aquele que peca é um pecador, mas o fato de que peca é simplesmente a prova de que ele já é um pecador, não é a causa. Aquele que peca é um pecador, porém também é verdade que aquele que não peca, mas pertence à raça de Adão, é igualmente um pecador e precisa de redenção. Vocês me seguem? Existem maus pecadores e também bons; existem pecadores "morais" e pecadores "corruptos"; porém todos são igualmente pecadores. Nós pensamos, às vezes, que se não tivéssemos feito certas coisas, tudo iria melhor; mas o mal está escondido muito mais profundamente que naquilo que nós temos cometido: está dentro de nós. Um chinês pode ter nascido em América e ser incapaz de falar uma palavra em chinês, mas isto não evita que fique chinês pelo fato de que ele é chinês. É o nascimento, a origem o que conta. Assim, eu sou um pecador porque nasci em Adão. Não é pela minha conduta, mas pela minha herança, pela minha ascendência. Não sou um pecador porque peco, mas peco porque desço de uma cepa malvada. Eu peco porque sou um pecador. Nós nos inclinamos a pensar que aquilo que temos cometido é muito mau, porém que nós mesmos não somos tão maus. No entanto, o Senhor quer nos fazer compreender que a nossa natureza é malvada, fundamentalmente malvada. A raiz do mal é o pecado; é necessário agir sobre ele. Os nossos pecados são lavados pelo sangue, porém quanto a nós mesmos, devemos morrer sobre a Cruz. O sangue nos assegura o perdão para tudo o que temos feito; a Cruz nos assegura a liberação daquilo que somos.

A CONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM
Temos assim chegado a Romanos 5:12: "Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram."
Nesta grande passagem, a graça é colocada em contraste com o pecado, e a obediência de Cristo é oposta à desobediência de Adão. Este fragmento fica no início da segunda parte da carta aos Romanos (de 5:12 até 8:3) de que, agora, nos ocuparemos mais particularmente, e o tema que aqui é tratado conduz de uma conclusão que será a base de todas as meditações que seguirão. Qual é esta conclusão? A achamos no versículo 19, citado acima: "Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um, muitos serão feitos justos". O Espírito de Deus busca aqui mostrar-nos como éramos antes e no que nos convertemos depois.
No inicio de nossa vida cristã estamos preocupados com as nossas ações e não com a nossa natureza; estamos entristecidos mais com aquilo que temos feito que com aquilo que somos. Imaginamos que se pudéssemos só reparar certas ações, poderíamos ser bons cristãos e nos esforçamos, então, para mudar nossa maneira de agir. Mas o resultado não é o que esperamos. Reparamos, desalentados, que o mal não provém somente das dificuldades exteriores, mas que há, em efeito, uma causa mais grave em nosso interior. Desejamos que o Senhor goste de nós, mas achamos em nós alguma coisa que não deseja gostar dEle. Buscamos de sermos humildes, mas há alguma coisa em nossa natureza que rejeita a humildade. Desejamos amar, mas não há amor em nós. Sorrimos e procuramos aparecer muito amáveis, mas intimamente nos sentimos muito longe da verdadeira bondade. Porém tentamos corrigir o nosso exterior, mais reparamos quão profundas são as raízes do mal. Então, vamos ao Senhor e lhe dizemos: "Senhor, agora vejo! Não é só que faço o mal; eu mesmo sou malvado".
A conclusão de Romanos 5:19 começa a iluminar o nosso coração. Somos pecadores. Somos membros de uma raça de criaturas que, pela sua constituição, são muito diferentes daquilo que Deus tinha planejado. A causa da queda, uma mudança fundamental si produziu no caráter de Adão, que o converteu num pecador, num homem incapaz, por natureza, de gostar a Deus; o parecido que nós temos com a família não é simplesmente superficial, senão que abrange inteiramente a nossa natureza interior. Fomos "constituídos pecadores". Como chegamos a isto? "Pela desobediência de um só", diz o apóstolo.
Permitam-me ilustrar este fato com uma analogia. O meu nome é Nee. É um nome chinês muito comum. Como eu o recebi? Não fui eu que o escolhi. Não examinei a lista de nomes chineses para eleger este. O fato que o meu nome seja Nee não depende em nada de mim, e meu pai era Nee porque meu avô era Nee, etc... Se eu atuo como um Nee sou um Nee, e se não atuo como um Nee, igualmente sou um Nee. Se eu virasse Presidente da República China serei Nee, e se me tornasse mendigo ainda seria Nee. Nada do que eu faça ou deixe de fazer poderá me converter numa outra coisa que não seja Nee. Nós somos pecadores não a causa de nós mesmos, mas por causa de Adão. Eu sou pecador não porque peco individualmente, mas porque eu estava em Adão quando ele pecou. Porque desço de Adão, sou uma parte dele. E, ainda mais, não posso fazer nada para mudar isso. Nem sequer melhorando a minha conduta posso fazer de mim mesmo outra coisa que não seja uma parte de Adão, ou seja, um pecador.
Um dia na China, eu falava sobre isto e fiz esta afirmação: "Nós todos pecamos em Adão". Um homem disse: "Não entendo". Eu tentarei então de me explicar deste modo: "Todos os chineses têm a sua origem em Huang-Ti. Quatro mil anos atrás, entrou em guerra com Si-Iu. Seu inimigo era fortíssimo, porém, Huang-Ti venceu Si-Iu e o matou. Depois disso, Huang-Ti fundou a nação chinesa. Ora, onde nós estaríamos se Huang-Ti não tivesse vencido e matado seu inimigo, mas tivesse sido morto ele mesmo? Onde estariam vocês?" "Eu não existiria", disse o meu interlocutor. "Ah, não! Huang-Ti podia morrer sua morte, porém vocês podiam de qualquer jeito viver as suas vidas". "Impossível!", gritou aquele homem. "Se ele tivesse morrido, eu nunca poderia ter vivido, porque é dele que eu recebi a vida, de sua descendência".
Vemos nós a unidade da vida humana? A nossa vida vem de Adão. Se seu avô fosse morto na idade de três anos, onde estariam vocês? Teriam morrido nele! A sua existência está ligada à dele. Ora, exatamente da mesma maneira a existência de cada um de vocês está ligada à de Adão. Ninguém pode dizer: "Eu nunca estive no Éden", porque virtualmente nós estávamos lá quando Adão cedeu às palavras da serpente. Estamos, então, todos implicados no pecado de Adão, e a causa do nosso nascimento em Adão herdamos dele todo aquilo em que ele se converteu como conseqüência do seu pecado, ou seja, a natureza de Adão, que é a natureza do pecador. Temos recebido dele a nossa existência física e, como sua vida se converteu numa vida de pecado, numa natureza pecaminosa, a natureza que nós temos dele é também pecaminosa. Assim, como já dissemos, o mal é a nossa herança, não somente no nosso agir. A menos que possamos mudar o nosso nascimento, não há liberação para nós. Mas é precisamente nesta direção que acharemos a solução do nosso problema, porque é exatamente assim que Deus o fez.

COMO EM ADÃO, ASSIM EM CRISTO
Em Romanos 5:12-21 não si fala somente de Adão; também se fala do Senhor Jesus. "Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram". Em Adão recebemos tudo o que é de Adão; em Cristo recebemos tudo o que é de Cristo.
As expressões "em Adão" e "em Cristo" são suficientemente entendidas pelos cristãos e, a risco de me repetir, gostaria de sublinhar ainda com uma demonstração o significado hereditário e racial da expressão "em Cristo". Esta demonstração encontra-se na carta aos Hebreus. Vocês se lembram que, na 1° parte desta carta, o autor trata de demonstrar que Melquisedeque é maior que Levi? Recordarão que o argumento para demonstrar é que o sacerdócio de Cristo é maior que aquele de Arão, que pertencia à tribo de Levi. Ora, para demonstrar isto, o autor deve provar que o sacerdócio de Melquisedeque é maior do que aquele de Levi, pela simples razão que o sacerdócio de Cristo é "segundo a ordem de Melquisedeque". É bem notório que o nosso Senhor surgiu da tribo da Judá, acerca da qual Moisés nada disse que concernisse ao sacerdócio. E a coisa é ainda mais evidente se surge, a semelhança de Melquisedeque, um outro Sacerdote que foi feito tal não em teor de uma lei de prescrições humanas, mas em virtude do poder de uma vida indissolúvel; porque lhe é rendido este testemunho: "Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque" (Hb 7:17). Ao contrário, o sacerdócio de Arão foi, naturalmente, segundo a ordem de Levi. Se o autor pode nos demonstrar que Melquisedeque, aos olhos de Deus, é maior que Levi, ele conseguiu o seu objetivo e o prova de maneira notável.
No capítulo 7 dos Hebreus se diz que Abraão, um dia, voltando da batalha dos Reis (Gênesis 14), ofereceu a décima parte do seu botim a Melquisedeque e foi por ele abençoado. Se Abraão ofereceu a décima parte a Melquisedeque, significa que Levi era menos importante que Melquisedeque. Por quê? O fato de que Abraão fez a oferta significa também que Isaque, "em Abraão", ofereceu a Melquisedeque. Mas se isso era verdade, então também Jacó "em Abraão", o que, pela sua vez, significa que também Levi "em Abraão" fez a sua oferta a Melquisedeque. Ora, sem contradição, o inferior é abençoado pelo superior (Hebreus 7:7). Levi está numa posição inferior à de Melquisedeque, e portanto o sacerdócio de Arão é inferior àquele do Senhor Jesus. Levi, na época da batalha dos Reis, não tinha sido ainda nem sequer concebido, porém já estava "nos lombos de seu pai (Abraão)" e, por assim dizer, através de Abraão ele "pagou dízimos" (Hebreus 7:9-10).
Este é de fato o exato significado do termo "em Cristo".
Abraão, como cabeça da família da fé, inclui em si mesmo a inteira família. Quando ele fez a sua oferta a Melquisedeque, a inteira família fez aquela oferta nele. Eles não ofereceram separadamente como indivíduos, mas estavam nele, portanto ao fazer a sua oferta ele incluiu em si a sua descendência. Assim, nos é apresentada uma nova possibilidade. Em Adão todos estamos perdidos. Através da desobediência de um homem nós fomos todos constituídos pecadores. Por meio dele entrou o pecado e, através do pecado, a morte; e através de toda a raça o pecado reinou, daquele dia em diante, para a morte. Mas agora um raio de luz foi jogado sobre a cena. Através da obediência de um Outro nós podemos ser constituídos justos. Onde o pecado abundou, a graça superabundou, e como o pecado reinou dando a morte, assim pode a graça reinar através da justiça, dando a vida eterna por meio de Jesus Cristo nosso Senhor (Rm 5:19-21). A nossa desesperança está em Adão; a nossa esperança, em Cristo.

O MEIO DIVINO DA LIBERAÇÃO
Deus deseja certamente que esta consideração nos conduza à liberação prática do pecado. Paulo o mostra muito claramente quando inicia o capítulo 6 de sua carta aos Romanos com esta pergunta: "Que diremos pois? Permaneceremos no pecado?" todo seu ser se rebela diante do pensamento de uma tal possibilidade. "De modo nenhum!", exclama. Como poderia um Deus Santo estar satisfeito de ter filhos impuros e encadeados ao pecado? Assim, "como viveremos ainda nele (no pecado)?" (Rm 6:1-2). Deus tem, então, providenciado um meio poderoso e eficaz para liberar-nos do domínio do pecado. Mas é esse o nosso problema; nascemos pecadores, como podemos eliminar a nossa herança de pecado? Se somos nascidos em Adão, como poderemos sair de Adão? Deixem-me dizê-lo em seguida, o sangue de Cristo não pode nos fazer sair de Adão. Solo nos resta um único meio. Já que entramos na raça de Adão através do nascimento, só poderemos sair através da morte. Para pôr fim a nossa natureza pecaminosa é necessário pôr fim a nossa vida. A escravidão do pecado veio pelo nascimento; a liberação do pecado vem com a morte —e é esse precisamente o meio de liberação que Deus dispus. A morte é o segredo da liberação. "Nós, que estamos mortos para o pecado..." (Rm 6:1).
Mas como podemos morrer? Muitos de nós, talvez, temos realizado enormes esforços para livrar-nos deste estado de pecado, só para achá-lo ainda mas tenaz. Qual será, então, a saída? Não certamente tratando de matar-se, senão somente com o reconhecimento de que Deus tem resolvido o nosso problema "em Cristo". Isto é retomado na declaração sucessiva do apóstolo Paulo: "...todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte" (Rm 6:3). Todavia se Deus tem providenciado a nossa morte "em Jesus Cristo", é necessário que nós sejamos "nEle" para que isto seja verdade; e isto parece um problema tão difícil. Como podemos ser colocados "em Cristo"? Também aqui Deus vem em nosso auxílio. De fato, nós não possuímos meio algum de assumir a nossa posição em Cristo, porém, e o que é mais importante, não temos a necessidade de procurar fazê-lo, porque já estamos "em Cristo". Isso que nós não podíamos fazer por nós mesmos, Deus tem realizado por nós. Ele nos colocou em Cristo. Lembrem de 1 Coríntios 1:30. Acredito que este seja um dos mais preciosos versículos de todo o Novo Testamento: "Vós sois dele, em Jesus Cristo". Como? Por meio dEle: "...o qual para nós foi feito por Deus"
Louvado seja Deus! Não nos deu a preocupação de procurarmos um meio para sermos "em Cristo". Não precisamos predispor a nossa nova posição. Deus o tem feito por nós; e não somente tem predisposto a nossa posição em Cristo, mas também a cumpriu. Estamos já em Cristo; não temos, então, necessidade de esforçar-nos para estar nEle. Este é um fato divino, e foi cumprido. Ora, se isto é verdade, então se seguem algumas coisas. Na demonstração de Hebreus 7, que temos já considerado, vimos que "em Abraão" todo Israel —e portanto Levi, que ainda não tinha nascido— ofereceu o dizimo a Melquisedeque. Não ofereceram separada ou individualmente, mas estavam em Abraão quando ele ofereceu, e a sua oferta abrangeu toda a sua progênie. Esta, então, é a verdadeira figura de nós mesmos "em Cristo". Quando o Senhor Jesus esteve na Cruz, todos nós morremos —não separadamente, porque não tínhamos ainda nascido—, mas morremos nEle porque já éramos nEle. "Um morreu por todos, logo todos morreram" (2 Coríntios 5:14). Quando Ele foi crucificado, todos nós fomos crucificados, lá, com Ele. Freqüentemente, quando se predica nas cidades chinesas, é necessário usar exemplos muito simples para verdades divinas muito profundas. Lembro-me que um dia peguei um livro, coloquei nele um pedacinho de papel, e disse àquelas pessoas tão símplices: "Agora prestem muita atenção. Pego um pedacinho de papel. Ele tem uma identidade completamente diferente da do livro. Neste momento não o necessito, e o guardo dentro do livro. Agora faço alguma coisa com este livro. O envio para Xangai. Não envio o pedacinho de papel, porém o pedacinho de papel foi colocado dentro do livro. O que acontece com o pedacinho de papel? Poderá o livro ir para Xangai e o pedacinho de papel que está dentro dele ficar aqui? Pode o pedacinho de papel levar uma sorte diferente à do livro, se está dentro dele? Não! Aonde vá o livro, lá irá igualmente o pedacinho de papel. Se deixar cair o livro no rio, também o pedacinho de papel cairá nele, e se eu volto pegá-lo rapidamente, salvarei também o pedacinho de papel, porque ele está dentro do livro. Assim, "vós sois dele (de Deus), em Jesus Cristo".
O Senhor Deus mesmo nos colocou em Cristo, e o que Ele fez a Jesus Cristo, Ele o fez à humanidade toda. O nosso destino está ligado ao dele. Aquilo que Ele atravessou, nós o atravessamos também, porque "estar em Cristo" quer dizer estar identificados com Ele em sua morte e ressurreição. Ele foi crucificado; então, o que será de nós? Pediremos a Deus para que nos crucifique a nós também? Nunca! Já que Cristo foi crucificado, todos nós fomos já crucificados nEle; e como a sua crucifixão já aconteceu, a nossa não pode ainda estar no futuro. Duvido que vocês possam achar no Novo Testamento um único texto no qual se diga que a nossa crucifixão ainda deve acontecer.
Todas as referências a ela estão na forma "aoristo", do verbo grego que indica aquilo que aconteceu "uma vez para sempre", aquilo que aconteceu "eternamente no passado" (veja Rm 6:6; Gl 2:20; 5:24; 6:14). E como ninguém pode matar-se por meio da Cruz, porque é materialmente impossível, assim também sob o ponto de vista espiritual, Deus não nos pede para nos crucificar a nós mesmos. Já fomos crucificados quando Cristo foi crucificado, porque Deus nos colocou nEle. O fato de que estejamos mortos em Cristo não é simplesmente uma posição doutrinária, mas uma realidade eterna e inegável.

O QUE A SUA MORTE E RESSURREIÇÃO REPRESENTAM E ABRANGEM
O Senhor Jesus, quando morreu na Cruz, verteu seu sangue; doava assim a sua vida sem pecado para expiar os nossos pecados e satisfazer a justiça e santidade de Deus. somente o Filho de Deus podia cumprir esta obra. Nenhum homem pode ter parte nela. As Escrituras nunca tem falado que nós tenhamos vertido o nosso sangue com Cristo. Em sua obra expiatória diante de Deus, foi sozinho; mais ninguém poderia participar. Mas o Senhor não morreu somente para verter o seu sangue; Ele morreu para que nós pudéssemos morrer. Ele morreu como o nosso representante. Em sua morte, Ele abraça todos nós, vocês e eu.
Adotamos amiúde os termos "justificação" e "identificação" para descrever estes dois aspectos da morte de Cristo.
Na maior parte dos casos, a palavra "identificação" é exata. Mas "identificação" poderia fazer pensar que a iniciativa seja nossa: que seja eu que me esforço em identificar-me com o Senhor. Reconheço que o termo é apropriado, mas deveria ser adotado mais além. É melhor começar pelo fato que o Senhor me incluiu em sua morte. É a morte inclusiva do Senhor o que me dá o modo de me identificar; não sou eu que me identifico por ser incluído em sua morte. O que importa é que Deus tem me incluído em Cristo. Isto é uma coisa que Deus realizou. Por esta razão, aquelas duas palavras do Novo Testamento, "em Cristo", são sempre tão preciosas ao meu coração. A morte do Senhor Jesus nos abraça, nos liga. A ressurreição do Senhor Jesus é igualmente inclusiva. Nós paramos no primeiro capítulo da primeira epístola aos Coríntios, para estabelecer o fato de que estamos "em Jesus Cristo". Agora iremos até o fim dessa mesma epístola, para ver mais profundamente o que significa isto. Em 1 Coríntios 15:45-47, dois nomes ou títulos são adotados para indicar o Senhor Jesus. Ele é chamado "o último Adão" e ainda "o segundo homem". As Escrituras não falam dEle como do segundo Adão, mas como "o último Adão"; elas não falam nunca dEle como do último homem, mas como "o segundo homem". É preciso sublinhar esta distinção, porque ela confirma uma cada de grande valore. Como último Adão, Cristo abrange em si toda a humanidade; como segundo homem se converte na cabeça de uma nova raça. Achamos aqui, então, uma dupla união, uma relativa à sua morte e a outra à sua ressurreição. Em primeiro lugar, a sua união com a raça como "o último Adão" iniciou-se historicamente em Belém para terminar na Cruz e no túmulo. Por ela Ele recolheu em si mesmo tudo o que havia em Adão para levá-lo a juízo e à morte. Em segundo lugar, a nossa união com Ele como "segundo homem" inicia da ressurreição para terminar na eternidade —ou seja, para não acabar nunca—, porque tendo em sua morte deixado de lado o primeiro homem, no qual o desígnio de Deus não se cumpriu, Ele ressurgiu como Cabeça de uma nova raça de homens, na qual aquele desígnio será finalmente plenamente realizado. Assim, quando o Senhor Jesus foi crucificado na Cruz, o foi como o último Adão. Tudo o que estava no primeiro Adão foi recolhido e destruído com Ele. Também nós. Como último Adão, Ele cancelou a velha raça; e como segundo homem, introduziu a nova raça. Em sua ressurreição Ele avança como o segundo homem, e também aqui nós estamos compreendidos. "Porque, se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição" (Rm 6:5).
Nós morremos nEle quando era o último Adão; vivemos nEle agora que é o segundo homem. A Cruz é assim o poder de Deus que nos faz passar de Adão a Cristo.


CAPÍTULO 3 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: SABER

A nossa velha vida terminou sobre a Cruz;a nossa nova vida começa na Ressurreição. "Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo" (2 Coríntios 5:17). A Cruz dá um fim à primeira criação, e da morte surge uma nova criação em Cristo, o segundo homem. Se formos "em Adão", tudo aquilo que há em Adão nos é forçosamente transmitido; tudo se faz nosso involuntariamente, porque não devemos fazer nada para nos apropriarmos disso. Não temos necessidade de tomar uma decisão para irar-nos, ou para cometer qualquer outro pecado, porque tudo nos chega espontaneamente, queiramos ou não. Do mesmo jeito, se formos "em Cristo", tudo aquilo que é "em Cristo" é nosso pela graça, sem esforço algum de nossa parte, mas sobre a base da simples fé.
Porém dizer que tudo o que precisamos é nosso "em Cristo" por pura graça, ainda que seja verdade, pode parecer impossível de se atuar na prática. Como acontece isso na vida? Como pode converter-se em real em nossa própria experiência?
Estudando os capítulos 6, 7 e 8 da epístola aos Romanos, veremos que existem quatro condições necessárias para uma vida cristã normal. Elas são: 1) Saber; 2) Considerar; 3) Confiar em Deus; 4) Caminhar segundo o Espírito; na ordem em que são apresentadas. Se nós desejamos viver aquela vida, deveremos aceitar e submeter-nos a estas quatro condições, não cumprir somente uma ou duas, ou três, senão todas, as quatro. Ao passo que estudemos cada uma delas, confiemo-nos no Senhor para que Ele ilumine a nossa inteligência com o seu Santo Espírito e peçamos agora o Seu auxílio para realizar o primeiro grande passo, examinando a primeira condição: Saber.

A NOSSA MORTE COM CRISTO É UM FATO HISTÓRICO
O passo que está agora diante de nós está em Romanos 6:1-11: "Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde? De modo nenhum. Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele? Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte?..." Nestes versículos fica claramente demonstrado que em sua morte o Senhor Jesus foi o nosso representante e que incluiu todos nós. Em sua morte todos nós morremos. Ninguém pode progredir espiritualmente se não compreende isto. Como não poderemos ser justificados se não vemos que Ele carregou os nossos pecados na Cruz, assim também não poderemos realizar a santificação se não temos assumido que nós morremos na Cruz com Ele. Não somente os nossos pecados foram colocados sobre Ele, mas nós mesmos fomos colocados dentro dEle.
Como vocês receberam o perdão? Porque vocês compreenderam que o Senhor Jesus morreu como seu substituto, e que levou sobre Ele os seus pecados e que o Seu sangue foi vertido para lavar as suas iniqüidades. Quando viram que os seus pecados foram cancelados sobre a Cruz, o que fizeram? Dizeram: "Senhor Jesus, te suplico, vem morrer pelos meus pecados?" Não, não Lhe pediram nada; vocês simplesmente agradeceram. Não Lhe pediram de morrer por vocês, porque entenderam que Ele já o tinha feito.
Ora, se é verdade que vocês já receberam o perdão, é também verdade que foram liberados. A obra foi cumprida. Não é necessário mais pedir, mas somente louvar. Deus nos colocou a todos em Cristo para que, mediante sua crucifixão, nós fossemos crucificados com Ele.
Não temos, então, mais necessidade de pedir: "Eu sou uma criatura tão malvada, Senhor, te rogo, crucifica-me". Isto não seria justo. Vocês não pediram, antes, pelos seus pecados; por que pedir, agora, por vocês mesmos? Os seus pecados foram cancelados pelo sangue de Cristo, e a sua natureza foi renovada com a sua Cruz. É um fato cumprido. Tudo quanto resta é louvar ao Senhor, porque quando Cristo morreu vocês também morreram; morreram nEle. Louvem-No por isso tudo, e vivam em sua luz! "Então creram nas suas palavras, e cantaram os seus louvores" (Salmo 106:12).
Acreditam na morte de Cristo? Naturalmente que vocês acreditam. Mas a mesma Santa Escritura que nos diz que Ele morreu por nós, diz também que nós morremos com Ele. Voltemos ler: "Cristo morreu por nós" (Rm 5:8). Esta primeira asserção é suficientemente clara; as seguintes o serão menos? "O nosso homem velho foi com ele crucificado" (Rm 6:6). "Já morremos com Cristo" (Rm 6:8).
Quando fomos crucificados com Ele? Qual é a data da crucifixão do nosso velho homem? Será amanhã? Foi ontem? Ou talvez hoje? Para responder estas perguntas talvez seja útil ler a declaração de Paulo sob uma outra forma: "Cristo foi crucificado com (ou seja, ao mesmo tempo) o nosso velho homem". Alguns de vocês chegaram aqui junto com alguém. Vocês fizeram o caminho juntos até aqui. Podem dizer: "O meu amigo veio aqui comigo", mas também poderiam dizer: "Eu vim aqui com o meu amigo", o significado é o mesmo. Se um de vocês tivesse chegado aqui três dias atrás e o outro tivesse chegado somente hoje, vocês já não poderiam falar assim; porém, como vocês chegaram juntos, podem expressar o fato de um modo ou de outro, sendo os dois igualmente verdadeiros, porque as duas afirmações expressam a mesma realidade. Assim também no fato histórico podemos dizer, com o máximo respeito, porém com a mesma exatidão: "Eu fui crucificado quando Cristo foi crucificado", ou então "Cristo foi crucificado quando eu fui crucificado", porque não são dois acontecimentos separados na história, mas um só [2]. Cristo foi crucificado! Pode ser então de outra forma para mim? E se Ele foi crucificado quase dois mil anos atrás, e eu com Ele, posso dizer que a minha crucifixão acontecerá amanhã? A sua pode ser no passado e a minha no presente ou no futuro? Que o Senhor seja louvado! Quando Ele morria sobre a Cruz, eu morri com Ele. Não somente Ele morria no meu lugar, mas me levou com Ele sobre a Cruz, a fim que, enquanto Ele morria, eu mesmo morresse com Ele. E se eu acredito na morte do Senhor Jesus, posso crer na minha própria morte com a mesma certeza com a que acredito na dEle.
Porque vocês acreditam que o Senhor morreu? Sobre que coisa baseiam a sua fé? E porque sentem que morreu? Não! Vocês nunca sentiram isso. Vocês acreditam porque a Palavra de Deus diz isso. Quando o Senhor Jesus foi crucificado, dois malfeitores foram crucificados ao mesmo tempo. Vocês não têm a mínima dúvida que eles tenham sido crucificados com Ele, porque as Escrituras o afirmam claramente. Acreditam na morte do Senhor Jesus e acreditam na morte dos dois ladrões com Ele. Ora, o que pensam da sua própria morte? A sua crucifixão é mais do que a deles. Eles foram crucificados junto com o Senhor, mas sobre cruzes diferentes, enquanto vocês estavam nEle que Ele morreu. Como podem sabê-lo? Podem saber porque Deus o disse, e esta é uma razão suficiente. Isso não depende dos seus sentimentos. Se sentem que Cristo morreu, Ele morreu; e se não sentem que Ele tenha morrido, ainda assim Ele morreu; e se não sentem de estar mortos com Ele, ainda assim vocês estão igualmente mortos com Ele. Estes são fatos de ordem divina: que Cristo morreu é um fato; que os dois malfeitores morreram, é um fato; e que vocês morreram e também um fato. Permitam-me dizer: Vocês estão mortos! Acabou para vocês. Estão fora. O "eu" que odeiam está sobre a Cruz com Cristo. E "aquele que está morto está justificado do pecado" (Rm 6:7). Este é o Evangelho para os crentes. Não chegaremos nunca a realizar a nossa crucifixão com a nossa vontade, nem pelos nossos esforços, mas somente aceitando aquilo que o Senhor Jesus cumpriu sobre a Cruz. É necessário que os nossos olhos sejam abertos sobre a obra cumprida sobre o Calvário. Talvez, algum de vocês, antes da conversão, tenha tentado obter a salvação por si mesmo. Liam a Bíblia, pregavam, iam à Igreja, davam esmolas. Depois, um dia, os seus olhos foram abertos e viram que a salvação perfeita já tinha sido conquistada para vocês sobre a Cruz. A aceitaram simplesmente e agradeceram a Deus, e a paz e o gozo inundaram seus corações. E agora a boa notícia é que a sua santificação foi feita possível exatamente sobre as mesmas bases. É-vos oferecida a liberação do pecado com o mesmo dom de graça com o qual receberam o perdão dos seus pecados. Porque a via que Deus segue para liberar-nos do pecado é completamente diferente da via do homem. A via do homem consiste em suprimir o pecado, tentando vencê-lo; a via de Deus consiste em pôr aparte o pecador. Muitos cristãos se lamentam de suas debilidades, pensando que se fossem mais fortes tudo daria certo. A idéia que não podemos viver uma vida santa a causa de nossas debilidades, e que mais alguma coisa nos é exigida, conduz todo mundo naturalmente ao falso conceito de um meio de liberação. Se estivermos preocupados pela força do pecado que nos domina e pela nossa incapacidade de combatê-lo, concluiremos logicamente que para vencê-lo deveremos ter mais força. "Se somente eu fosse mais forte...", dissemos, "poderia dominar os meus acessos de cólera", e pedimos ao Senhor para fortificar-nos, a fim que possamos controlar a nossa natureza.
Mas este é um erro grave; isto não é cristianismo. Os meios pelos quais Deus nos libera do pecado não consistem no fazer-nos mais fortes, senão no fazer-nos mais fracos. É certamente um modo bastante singular para nos conduzir à vitória, vocês dirão, porém é este o meio de que Deus se serve.
O Senhor nos arrancou do poder do pecado não fortificando o nosso velho homem, mas crucificando-o; não o ajudando a conseguir qualquer coisa, mas colocando-o fora de combate. Talvez vocês tenham tentado durante anos, em vão, exercer um controle sobre vocês mesmos, e talvez esta seja ainda hoje a sua experiência, mas quando vejam a verdade reconhecerão que são completamente incapazes de fazer qualquer coisa e que, afastando vocês, Deus cumpriu tudo, Ele mesmo no seu Filho. Esta revelação põe fim às lutas e a todos os esforços humanos.

O PRIMEIRO PASSO: "SABENDO QUE..."
A verdadeira vida cristã deve começar com o "saber" de forma clara e definitiva, o que não consiste em ter simplesmente uma certa vaga consciência da verdade, nem na compreensão de qualquer doutrina importante. Não si trata de um conhecimento intelectual, mas é preciso que os olhos de nosso coração se abram para ver o que temos em Cristo.
Como sabem que os seus pecados foram perdoados? É porque o seu pastor vos disse? Não, vocês sabem. Semelhante conhecimento nos vem somente por revelação divina. Sem dúvida, o fato do perdão dos pecados encontra-se na Bíblia, mas para que a Escritura se convertesse para vocês na palavra viva de Deus, Ele vos tem dado "em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação" (Efésios 1:17). O que vocês precisavam era conhecer Cristo daquele modo, e sempre é assim. Chega um momento, a respeito de qualquer novo conhecimento de Cristo, que quando o "conhecem" em seus corações, o "vêem" em seu espírito. Uma luz brilhou dentro de vocês e estão plenamente persuadidos desse fato. Aquilo que é verdade no que respeita ao perdão dos pecados, não é menos verdadeiro quanto à liberação do pecado. Uma vez que a luz de Deus esclareceu seu coração, vocês se vêem "em Cristo". Não é porque qualquer um tenha falado para vocês, nem simplesmente porque Romanos 6 o diz. Há alguma coisa mais profunda. Vocês sabem porque o Espírito Santo o revelou a vocês. Podem até não senti-lo ou não compreendê-lo, porém o sabem, porque o têm visto. Uma vez que vocês tenham se visto em Cristo, nada poderá abalar a sua certeza de semelhante realidade abençoada.
Se pedirem a diversos crentes que tenham começado a viver a verdadeira vida cristã, que lhes falem das experiências que os têm guiado, alguns falarão de uma experiência especial, e os outros, de uma outra. Cada um falará o caminho particular que terá recorrido e citará um passo das Escrituras para apoiar as suas afirmações; a pesar disso, muitos crentes apóiam-se em suas experiências pessoais e em seus fragmentos favoritos para combater outros crentes. O fato é que, se os crentes podem alcançar uma vida cristã mais profunda por caminhos diferentes, nós não devemos considerar as experiências ou as doutrinas que eles sublinham como reciprocamente exclusivas senão, antes bem, como complementárias. Uma coisa é verdade: todas as experiências verdadeiras e preciosas aos olhos de Deus devem nascer de uma nova descoberta do significado da pessoa e da obra do Senhor Jesus. Esta é a base decisiva e segura.
Aqui neste passo, o apóstolo faz depender todas as coisas deste descobrimento. "Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado" (Rm 6:6).

A REVELAÇÃO DIVINA É A BASE ESSENCIAL DA CONSCIÊNCIA
O primeiro passo que, então, deveremos dar, será pedir ao Senhor um conhecimento através da revelação —não uma revelação de nós mesmos, mas da obra perfeita do Senhor Jesus na Cruz-. Hudson Taylor, o fundador da missão na China (China Inland Mission) conheceu a verdadeira vida cristã, e chegou a ela na seguinte maneira. Vocês lembrarão como ele fala do problema que o atormentou por longo tempo, de como "viver em Cristo", como transferir a si mesmo o suco da videira que há nEle. Porque sabia que a vida de Cristo devia se expandir através dele, porém sentia que não a possuía ainda; e então ele viu claramente que devia estar "em Cristo". "Compreendi", escreveu a sua irmã em 1869 desde Chinkiang, "que se somente tivesse podido demorar em Cristo, tudo teria dado certo, mas não podia".
Mais ele se esforçava para entrar na vida verdadeira, mais ele se sentia deslizar fora, por assim dizer, até que um dia a luz brilhou em seu coração, a revelação aconteceu e ele viu. Assim ele descreve este fato: "Penso que o segredo esteja aqui: não como eu possa fazer para trazer o suco da videira e transferi-lo em mim, ma em me lembrar que Jesus é a videira, a raiz, o tronco, os galhos, os sarmentos, as folhas, as flores, o fruto, ou seja, tudo".
Então, citando as palavras de um amigo que o havia ajudado, continua assim: "Não devo fazer de mim um galho. O Senhor Jesus me disse que eu sou um galho. Eu sou uma parte dEle, e só devo acreditar e agir em conseqüência. Fazia muito tempo que eu tinha visto isto na Bíblia, mas só agora o creio como uma verdade viva".
Acontece como se alguma coisa que sempre foi verdadeira, de improviso se converta em tal de um modo novo, para ele pessoalmente, e assim escrevia ainda para a sua irmã: "Não sei até que ponto conseguirei me fazer compreender acerca deste tema, porque não há nada de novo, nem de estranho, nem de maravilhoso —e ainda assim tudo é novo! Numa palavra: "então eu era cego, e agora eu vejo...". Eu estou morto e sepultado com Cristo —é verdade, e sou também ressurreto e ascendido... Deus me considera assim e me pede para me considerar assim... Oh! A alegria de conhecer esta verdade. Eu peço para que os olhos de tua inteligência sejam iluminados, e tu possas conhecer e gostar as riquezas que nos são liberalmente doadas em Cristo" [3]
Oh, que alegria vermos que estamos em Cristo! Imaginem como pode ser cômico tentar de entrar num lugar onde já estamos. Pensem que absurdo seria pedir para sermos introduzidos. Se reconhecêssemos que já estamos dentro, não faríamos esforço algum para entrarmos. Se temos uma revelação mais profunda, as nossas orações serão mais louvores que pedidos. Pedimos muito para nós mesmos, porque estamos cegos a respeito do que Deus tem realizado para nós.
Lembro-me de uma conversação que tive um dia em Xangai com um irmão que estava muito preocupado com o seu estado espiritual. Ele me dizia: "Existem tantos crentes que têm uma vida bela e santa. Eu tenho vergonha de mim mesmo. Me chamo cristão, mas quando me confronto com os outros, sinto que não o sou para nada. Gostaria conhecer esta vida crucificada, esta vida de ressurreição, mas não a conheço e não vejo meio algum para chegar até ela". Havia um outro irmão presente e os dois nos entretivemos por mais duas horas com este homem, tentando lhe fazer compreender que não poderia ter obtido nada fora de Cristo, mas em vão. O nosso amigo disse: "A melhor coisa que um homem pode fazer é orar". "Mas se Deus já nos tem dado tudo, o que pode necessitar pedir?", perguntamos. "Mas não tem me dado tudo", respondeu o homem, "porque eu continuo a me irar e a cometer toda espécie de erros; e por isso que devo orar mais".
"E assim", dissemos nós, "você recebeu o que pediu?" "Lamento dizer, porém, que em verdade não tenho recebido nada de nada", replicou ele. Nos esforçamos, então, para fazê-lo compreender que, não tendo absolutamente a certeza de sua justificação, não podia fazer mais nada, nem sequer pela sua santificação.
Neste ponto, apareceu um terceiro irmão que o Senhor usava muito. Sobre a mesa havia uma garrafa térmica; o irmão a pegou e lhe perguntou: "O que é isto?" "Um termo". "Bem, suponha por um instante que esta garrafa possa orar, e então comece a pedir: —Senhor, eu desejo tanto ser um termo. Você não poderia fazer de mim uma garrafa térmica? Senhor, faze-me a graça de eu me converter num termo. Faze-o, eu te imploro! —, o que você diria disto?"
"Acredito que nem sequer uma garrafa térmica possa ser tão louca", respondeu o nosso amigo, "é uma bobagem orar assim: ela já é um termo!" "É isso exatamente o que você está fazendo", respondeu-lhe então o nosso irmão. "Deus colocou você em Cristo, já faz tempo. Não pode, então, dizer hoje: 'Quero morrer; quero ser crucificado; quero ter a vida e a ressurreição'. O Senhor olha para você e simplesmente te diz: 'Você já está morto! Você já tem nova vida!' toda a maneira de você orar é tão absurda quanto à da garrafa térmica. Você já não precisa pedir ao Senhor para que faça alguma coisa por você; só deve pedir ter os olhos abertos para ver que Ele cumpriu tudo".
Este é o ponto essencial. Não precisamos esforçar-nos para morrer, não necessitamos esperar pela nossa morte, nós já estamos mortos. Temos somente necessidade de reconhecer o que o Senhor tem feito por nós, e louvá-lo por isto. A luz iluminou aquele homem, que com lágrimas nos olhos disse: "Ah, eu te louvo por aquilo que fizeste por mim, porque já me colocaste em Cristo! Tudo o que é dEle é meu!" A revelação veio e pela fé pode ser firmado; se vocês tivessem encontrado esse irmão mais tarde, teriam constatado a mudança que tinha ocorrido nele!

A CRUZ NA RAIZ DO NOSSO PROBLEMA
Permitam-me recordá-lhes ainda a natureza fundamental da obra cumprida pelo Senhor sobre a Cruz. Acredito que não possa insistir demasiadamente sobre este ponto, porque é necessário que o examinemos.
Suponhamos que o governo de seu país quisesse resolver radicalmente o problema do álcool e decidir a aplicação de proibições em todo o país; como poderá ser aplicada, na prática, uma decisão semelhante? Que ajuda poderemos aportar nós? Se fossemos procurando, por todo o país, em todas partes, nas lojas, todas as garrafas de vinho, de cerveja ou de licores, para seqüestrá-las e destruí-las, isto resolveria o problema? Certamente não.
Poderemos limpar o país de cada gota de álcool, mas por detrás daquelas garrafas de bebidas alcoólicas estão as fábricas que as produzem, e se nós destruímos só as garrafas e deixamos as fábricas, a produção continuará, e não haverá uma solução definitiva para o problema. Não, as fábricas, os bares e as destilarias devem ser fechados em todo o país para pôr fim, de uma vez para sempre, a este problema do alcoolismo.
Nós somos a fábrica; as nossas ações são os produtos. O sangue de Cristo tem regularizado o problema dos produtos, vale dizer, dos nossos pecados. A questão daquilo que temos feito fica assim resolvida, mas Deus parará por aqui? O que há da questão do que somos? Somos nós que temos produzido os nossos pecados. Foram afastados, mas o que acontecerá conosco? Acreditam vocês que o Senhor queira nos purificar de todos os nossos pecados e deixe em nossas mãos o assunto de livrar-nos desta fábrica que somos, produtora de pecados? Acreditam que Ele deseje separar os produtos, deixando a nós a responsabilidade da fonte da produção? Fazer estas perguntas significa já responder a elas. Deus não tem realizado o trabalho pela metade, abandonando o resto. Não, Ele suspendeu os produtos, e também destruiu a fonte de onde provinham.
A obra cumprida por Cristo chegou realmente até a raiz do nosso problema e o resolveu. Para o Senhor não existem meios termos. Ele assumiu provisões completas para que o domínio do pecado fosse completamente destruído. "Sabendo isto", disse Paulo, "que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado" (Rm 6:6). "Sabendo isto!" Sim, mas... Vocês sabem mesmo? "Ou não sabeis?" (Rm 6:3). Que o Senhor, em sua graça, abra os nossos olhos!


CAPÍTULO 4 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: FAZER DE CONTA DE ESTAR MORTOS

Toquemos agora um tema sobre o qual existe uma certa confusão de pensamento entre os filhos de Deus.
Vamos deter-nos sobre tudo nas palavras de Romanos 6:6: "Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado".
O tempo deste verbo é dos mais preciosos, porque localiza o fato exatamente no passado. Este fato é definitivo, cumprido de uma vez por todas. A coisa foi feita e não pode ser anulada. O nosso velho homem foi crucificado de uma vez por todas, e nunca mais pode ser tirado da Cruz. Eis aqui o que devemos saber.
Quando sabemos isto, o que mais temos a fazer? Voltemos a ler novamente nosso texto. O seguinte passo encontra-se no versículo 11: "Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado". Estas palavras são claramente a continuação natural do versículo 6. Vamos lê-las de novo juntos: "Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado (...) Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor". Esta é a ordem natural. Uma vez que sabemos que o nosso velho homem foi crucificado em Cristo, o passo seguinte é considerá-lo como morto. Apesar disso, apresentando a verdade de nossa união com Cristo, demasiadas vezes foi colocado o acento sobre este segundo ponto —considerar-nos como mortos—, como se fosse o ponto de partida, enquanto a ênfase deveria melhor ser colocada sobre o "saber-nos mortos". A Palavra de Deus mostra claramente que "saber" deve preceder a "reconhecer-se". "Sabendo que... façam de conta que..." o fato de "considerar-se" deve estar baseado sobre uma revelação divina, de outra forma a fé não terá fundamento sobre o que se apoiar. Quando sabemos, então espontaneamente nos consideramos como mortos.
Assim, tratando este argumento, não será preciso remarcar demasiadamente a exigência de considerar-nos mortos. Fomos demasiado tentados a nos considerar sem antes saber. Se não temos recebido primeiro uma revelação do fato pelo Espírito e tentamos considerar-nos, nos veremos arrastados em todo tipo de dificuldade. Quando chegue a tentação, começaremos a repetir febrilmente: "Eu estou morto, estou morto, estou morto!" Mas pelo mesmo esforço acabaremos por irritar-nos; e então dizemos: "Isto não serve de nada. Romanos 6:11 não pode ser realizado". E devemos admitir que o versículo 11 não pode ser compreendido sem o versículo 6.
Chegaremos, então, à seguinte conclusão: até não sabermos que o estar mortos com Cristo é um fato, mais nos esforçaremos para nos considerarmos assim, e mais intenso será o conflito, e mais segura a queda.
Durante anos após a minha conversão eu fui ensinado a me considerar como morto em Cristo. Eu tentei fazê-lo desde 1920 até 1927. Mais me reconhecia morto para o pecado, mais me manifestava vivo. Não podia simplesmente acreditar-me morto, e não podia procurar a morte. Quando procurei ajuda dos outros, me disseram para ler Romanos 6:11, e mais eu lia esse versículo, tentando aplicá-lo a mim mesmo, mais a morte parecia se distanciar; eu não conseguir chegar. Estava intensamente desejoso de obedecer àquele ensino, de considerar-me morto, mas não conseguia compreender por que não podia conseguir. Devo confessar que este pensamento atormentou-me por longos meses. Disse ao Senhor: "Se eu não consigo compreender claramente, se não consigo chegar a ver esta verdade fundamental, não farei mais nada. Não mais predicarei; não poderei mais te servir; devo, antes que nada, ser iluminado sobre estas coisas".
Durante meses continuei a minha busca, às vezes jejuei, mas sem nenhum resultado.
Lembro-me de uma manhã: foi uma manhã tão real que nunca poderei esquecê-la. Eu estava em meu escritório, sentado em minha escrivaninha, lendo a Palavra de Deus e orando, e disse: "Senhor, abri os meus olhos!" Então, num raio de luz, vi. Vi a minha união com Cristo. Vi que eu estava nEle e que quando Ele morreu, também eu morri. Vi que a questão da minha morte era um fato do passado e não do futuro, e que eu tinha morrido verdadeiramente como Ele, porque eu estava nEle quando Ele morreu. A luz tinha finalmente esclarecido as minhas trevas e mi iluminava completamente. Esta grande revelação inundou-me de tal gozo que pulei da minha cadeira e gritei: "O Senhor seja louvado, eu estou morto!" Desci as escadas à carreira e me deparei com um dos meus irmãos que ajudavam na cozinha; eu o peguei do braço e lhe disse: "Irmão, você sabe que eu estou morto?" Devo admitir que a sua expressão foi de estupefação. "O que você quer dizer?", perguntou-me. Continuei: "Você não sabe que Cristo morreu? Não sabe que eu morri com Ele? Não sabe que a minha morte é um fato tão verdadeiro quanto à dEle?" Oh, eu estava tão seguro! Tinha vontade de correr por todas as ruas de Xangai e proclamar a todos a minha nova descoberta. Daquele dia, nunca mais duvidei, nem por um único instante, da importância definitiva destas palavras: "Já estou crucificado com Cristo" (Gl 2:20).
Não quero dizer que não devamos pô-las em prática. Existem certas aplicações desta morte que consideraremos por um instante, mas temos aqui, antes que qualquer coisa, o fundamento. Eu fui crucificado: este é um fato cumprido.
 Qual é, então, o segredo que nos conduz a considerar-nos como mortos? Para dizê-lo numa palavra, é uma revelação. É uma revelação do próprio Deus.
"Não foi carne e sangue que to revelou, mas meu Pai, que está nos céus" (Mt 16:17); Ef 1:17-18). É necessário que os nossos olhos se abram a esta realidade da nossa união com Cristo; isto é mais que conhecê-la como uma doutrina. Uma semelhante revelação não tem nada de vago ou indefinido. Quase todos nós podemos nos lembrar do dia em que vimos claramente que Cristo morreu por nós; e deveremos estar igualmente seguros do momento no qual vimos que estamos mortos com Cristo. Isto não deve ser nebuloso ou incerto, mas bem preciso, porque é sobre esta base que avançaremos. Não é me considerando morto que eu o serei. Mas é porque já estou morto —porque vejo o que Deus tem feito de mim em Cristo— que posso mi considerar morto. Este é o modo justo de considerar-se. Não se trata de fazê-lo para chegar à morte, mas considerar-se morto para avançarmos.

O SEGUNDO PASSO: ASSIM, VOCÊS CONSIDEREM-SE COMO...
O que significa "considerar-se como"? "Considerar-se" significa, em grego, levar as contas, fazer a contabilidade. Fazer contas é a única coisa no mundo que nós seres humanos podemos fazer com precisão. Um pintor pinta uma paisagem. Pode fazê-lo com precisão matemática? O historiador pode garantir a exatidão absoluta de um tema, ou, o geógrafo, a fidelidade precisa de um mapa? Podem chegar a fazer as melhores aproximações. Também na conversação de todos os dias, quando tentamos contar um incidente com a melhor intenção de honestidade e fidelidade, somos incapazes de narrar com perfeita exatidão. É tão fácil exagerar ou diminuir os fatos, dizer uma palavra a mais ou uma a menos. O que pode fazer o homem que seja essencialmente digno de confiança? A aritmética! Nela não há lugar para erros. Uma cadeira mais uma cadeira somam duas cadeiras. Isto é verdade tanto em Londres como em São Paulo. Embora vocês vão para o Oeste ou para o Leste, será sempre a mesma coisa.
Em tudo o mundo, em todas as épocas, um mais um são dois. Um e um são dois nos céus, sobre a terra e no inferno.
Por que Deus disse para nos considerarmos mortos? Porque estamos mortos. Prossigamos a analogia com a contabilidade. Suponhamos que eu tenha R$ 800 no bolso, o que escreverei no meu livro de contas? Posso escrever R$ 700 ou R$ 900? Não! Deverei escrever no meu livro aquilo que realmente tenho no bolso. Levar a contabilidade significa reconhecer os fatos, não é fantasia. Assim, porque eu realmente morri, Deus me diz para me considerar morto. Deus não poderia pedir-me para considerar-me morto se eu estivesse ainda vivo. Para uma similar ginástica mental, a palavra "considerar-se" não seria apropriada; deveria, melhor, dizer: "não se considerar". Considerar-se não é uma forma de pretensão. Isso não significa que se eu tenho somente R$ 600 no bolso, reportando erroneamente R$ 700 no meu livro de contabilidade, conseguirei de um modo ou outro compensar a diferença. Para nada! Se não tenho mais que R$ 600, e trato de me persuadir repetindo: "Tenho R$ 700; tenho R$ 700; tenho R$ 700", vocês acreditam que este esforço da mente conseguirá aumentar a soma que tenho no bolso?
De jeito nenhum! Nenhum esforço de persuasão poderá trocar R$ 600 em R$ 700. De forma similar, não pode registrar-se falso e fazê-lo aparecer como verdadeiro. Mas, se da outra parte, é um fato que eu tenho R$ 700 no bolso, posso, com absoluta certeza, registrar R$ 700 no meu livro. Deus nos pede para nos considerarmos mortos, não porque morramos se nos consideramos assim, senão porque já estamos realmente mortos. Ele nunca nos pediu para acreditar em uma coisa que não seja verdadeira.
Dizemos que a revelação nos conduz naturalmente a considerar-nos mortos; mas não devemos perder de vista que é uma ordem que nos é dada: "Fazei de conta, considera-vos". É uma atitude definitiva para assumir. Deus nos pede para que façamos as contas e registremos: "Estou morto", e de ficarmos firmes ali. Por quê? Porque é um fato. Quando o Senhor Jesus foi colocado na Cruz, eu estava com Ele. Por isso reconheço que é verdade. Reconheço e confirmo que morri nEle. Paulo diz: "Considerai-vos como mortos para o pecado e como vivos para Deus". Como é isto possível? "Em Jesus Cristo". Não esqueçamos nunca que isto é verdade sempre e somente em Cristo. Se olharem para vocês mesmos, pensarão que não estão mortos; é uma questão de fé não em vocês, mas nEle. Olhem para o Senhor e reconheçam aquilo que Ele tem realizado. "Senhor, eu creio em Ti. Me afirmo em Ti". Permaneçamos neste estado de fé em cada momento da nossa vida.

CONSIDERAR-SE PELA FÉ
Os primeiros quatro capítulos e meio da carta aos Romanos falam de fé, de fé e de fé. Somos justificados pela fé em Cristo (Rm 3:28-5:1). A justiça, o perdão dos nossos pecados, a paz com Deus, tudo nos chega pela fé e sem a fé na obra perfeita de Jesus Cristo, não se pode obter nada. Mas na segunda parte da carta aos Romanos, não achamos mais repetida a mesma teoria da fé, e poderia parecer, a primeira vista, que a ênfase fosse colocada sobre outras coisas. Porém, não é assim, porque onde falta a palavra "fé" e "crer" achamos, em seu lugar, a palavra "considerai-vos"; e "considerar-se" e "crer" praticamente têm o mesmo significado.
O que é a fé? A fé é a aceitação de um fato de Deus. Ela sempre tem seu fundamento no passado. O que diz respeito ao futuro é esperança mais que fé; ainda que seja verdade que a fé tem como objetivo e fim o futuro, como vemos em Hebreus 11. Talvez por esta razão a palavra aqui escolhida é "considerar-se". Este é um termo que se refere exclusivamente ao passado: a tudo aquilo que vemos cumprido no passado, e não como um acontecimento que deva se repetir no futuro. Este é o tipo de fé que descreve Marcos em 11:24: "Tudo o que pedirdes em oração, crede que o recebereis, e tê-lo-eis". O que aqui se afirma é que se acreditamos de ter já obtido aquilo que pedimos (em Cristo, naturalmente), nos será concedido. Crer que o poderemos obter, ou que o obteremos não é fé no sentido aqui entendido. Crer que já o obtivemos, eis a verdadeira fé. A fé, neste sentido, apóia-se sobre o que já foi cumprido no passado. Aqueles que dizem: "Deus pode", ou bem "Deu poderia", ou ainda "Deu deve" e "se Deus quiser", não acreditam nada. A fé afirma sempre: "Deus o fez".
Quando é, então, que eu tenho fé para tudo o que concerne à minha crucifixão? Não certamente quando digo: "Deus pode" ou "se Deus quiser", ou "Ele deve crucificar-me", mas quando afirmo, com alegria: "Deus seja louvado, eu fui crucificado em Cristo!"
Em Romanos 3, vemos como o Senhor Jesus carregou os nossos pecados até morrer em nosso lugar, como o nosso substituto, para que nós sejamos perdoados. Em Romanos 6 nos vemos incluídos na morte com a qual Cristo cumpriu a nossa liberação. Quando nos foi revelado o primeiro fato, acreditamos nEle para a nossa justificação. Agora Deus nos pede para reconhecer o segundo fato para a nossa liberação. Assim, praticamente, na segunda parte da carta aos Romanos, "considerar-se" tomou o lugar de "crer". O sentido é o mesmo, e a ênfase não é diferente. Como entramos na vida cristã normal, a vivemos progressivamente pela fé numa realidade divina: em Cristo e em sua Cruz.



AS TENTAÇÕES E AS QUEDAS, DESAFIO À FÉ
As duas maiores realidades da história para nós são, então, estas: todos os nossos pecados foram cancelados pelo sangue, e nós mesmos fomos relacionados com a Cruz. Mas o que há, entretanto, com o problema da tentação? Qual deve ser o nosso comportamento quando, depois de ter visto e crido nestes fatos, achamos que em nós ressurgem os velhos desejos? O que acontece se nos iramos ou coisa pior? Não provará isto que tudo o que dissemos era falso?
Lembremos que uma das maneiras principais que o maligno sempre utiliza é a de nos fazer duvidar dos fatos divinos (Pensemos em Gênesis 3:4). Depois de ter visto, pela revelação do Espírito de Deus, que estamos verdadeiramente mortos em Cristo, e que o temos reconhecido, o inimigo virá com as suas insinuações: "Há alguma coisa que se agita interiormente. O que é? Pode dizer que isso está morto?" No momento em que este ataque aconteça, qual será a nossa resposta? É justamente este o ponto crucial. Acreditamos nos fatos tangíveis, de domínio natural, os quais claramente se explicam aos olhos de todos, ou bem acreditamos na realidade invisível do domínio espiritual, a qual não pode nem se tocar, nem se provar com a ciência?
Devemos vigiar atentamente. É indispensável lembrar o que foi estabelecido na Palavra de Deus, e saber o que não está ali. De que modo Deus declara que a liberação aconteceu? Não nos foi dito que a natureza do pecado que há em nós tenha sido destruída. Se nos apoiamos sobre isto, nos acharemos sobre uma base completamente errada, e na falsa posição do homem de quem falamos precedentemente, o qual, apesar de possuir no bolso R$ 600, procura registrar no livro R$ 700. Não, o pecado não foi erradicado, está dentro de nós e, se a ocasião se apresenta, triunfa sobre nós fazendo-nos cometer novos pecados, conscientemente ou inconscientemente. E por isto que sempre teremos necessidade de saber como opera o precioso sangue de Cristo.
Mas existe a diferença entre o problema do pecado e o dos pecados. Sabemos que Deus trata de maneira direta no que respeita aos pecados cometidos: Ele cancela sua lembrança por meio do sangue. Entretanto, quando se trata do princípio do pecado e de nos livrar do seu poder, vemos que Ele o faz de forma indireta. Não coloca aparte o pecado, mas o pecador. Nosso velho homem foi crucificado com Cristo; por isto o corpo, que antes era instrumento do pecado, ficou inoperante (Romanos 6:6) [4]. O pecado, o antigo padrão, está sempre perto, mas o escravo que o serve foi morto, assim foi liberado de seus ataques e seus membros não são mais utilizados. A mão do jogador é inoperante, a língua do blasfemador é inativa, e estes membros foram desarmados, liberados e ocupados pelo Senhor "como instrumentos de justiça" (Rm 6:13).
Podemos então dizer que "liberação do pecado" é uma definição mas escritural que "vitória sobre o pecado". As expressões "liberados do pecado" e "mortos para o pecado" de Romanos 6:7 e 11 implicam a liberação de um poder ainda bem presente e muito real, e não de uma coisa que já não existe mais.
O pecado está sempre ali, porém nós conhecemos a liberação do seu poder, numa medida que cresce dia a dia.
Esta liberdade é tão real que João pode escrever francamente: "Aquele que é nascido de Deus não peca habitualmente... não pode continuar no pecado" (1 Jo 3:9). Semelhante declaração, se mal compreendida, pode induzir-nos a erro. João não diz com isto que o pecado não existe mais para nós e que não cometeremos mais pecados. Diz que o pecado não está na natureza daqueles que nasceram de Deus. A vida de Cristo foi implantada em nós pelo novo nascimento, e esta nova natureza é liberada do poder do pecado. Contudo, existe uma grande diferença entre a natureza e o comportamento prático de uma coisa, como existe uma grande diferença entre a natureza da vida que está em nós e o nosso comportamento. Para ilustrar este pensamento (ainda que o exemplo seja inadequado), podemos dizer que a madeira não pode afundar na água, porque isso seria contrário à natureza; porém, na prática podemos ver que isso pode chegar acontecer se uma mão a mantém debaixo da água. O comportamento é um fato, assim como os pecados em nossa vida são fatos históricos; mas a natureza é também um fato, e o novo nascimento que recebemos em Cristo é igualmente um fato. Aquele que está "em Cristo" não pode pecar; aquele que está "em Adão" pode pecar e pecará cada vez que Satanás tenha a oportunidade de exercer seu poder sobre ele. Devemos, então, escolher os fatos sobre os que queremos basear-nos e sobre os que queremos viver: ou a realidade tangível de nossas experiências cotidianas, ou os fatos mais poderosos de que agora fazemos parte "em Cristo". O poder de sua ressurreição é nosso, e todo o poder de Deus está operando em nossa salvação. "O evangelho... é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê" (Rm 1:16). Mas tudo depende agora da medida com que se manifeste como real e verdadeira a obra de Deus em nossa própria história.
"A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem" (Hebreus 11:1). "As (coisas) que se não vêem são eternas" (2 Coríntios 4:18). Penso que todos sabem que Hebreus 11:1 é a única definição de fé que temos no Novo Testamento e, ainda mais, em todas as Escrituras. É muito importante que compreendamos realmente essa definição. Vocês estão acostumados à versão comum que descreve a fé como "certeza das coisas esperadas". Porém, o termo grego tem o sentido de uma ação, e não somente de um estado interior, de uma "certeza". Confesso que demorei anos para achar a expressão que, em nossa língua, deixasse claro e preciso o termo. Mas a nova versão de J. N. Darby é particularmente feliz nesta tradução: "a fé é a apropriação das coisas que esperamos".
Como nos "apropriaremos" de alguma coisa? O fazemos a cada dia. Não podemos viver neste mundo sem fazê-lo. Conhecem a diferença que existe entre "objeto" e "apropriação"? Um objeto é uma coisa que está diante de mim. Para me apropriar dele, devo ter uma faculdade ou um poder que o faça real para mim. Vejamos um exemplo simples. Por meio de nossos sentidos podemos escolher coisas que existem no reino da natureza e fazê-las entrar em nossa consciência. A vista e o ouvido, por exemplo, são duas de minhas faculdades que me permitem de apropriar-me da luz e do som. Existem as cores: o vermelho, o amarelo, o verde, o azul, o roxo; estas cores são coisas reais. Mas se fecho os olhos não são mais reais, elas já não são nada para mim.
Com a faculdade da vista tenho o poder de "apropriar-me" deles. A realidade está no poder; o amarelo é amarelo para mim. Não é somente que a cor existe, mas que eu tenho o poder a apropriar-me dela. Tenho o poder de fazer verdade para mim esta cor, e de ter realmente consciência. Isto é o que significa "apropriação" ou "possessão".
Se eu fosse cego, não poderia distinguir as cores, e se fosse surdo não poderia nunca desfrutar da música. Apesar disso, as cores e a música são coisas completamente reais; a sua realidade não está sujeita à minha capacidade ou incapacidade de apreciá-las. Ora, consideramos assim as coisas que, ainda que invisíveis, são eternas e, em conseqüência, reais. Evidentemente não podemos nos apropriar ou tomar posse das coisas divinas por meio dos nossos sentidos naturais, mas existe uma faculdade com a qual podemos nos apropriar das "coisas que se esperam", das coisas de Cristo: a fé. A fé faz reais para mim a realidade de Cristo. Milhares e milhares de pessoas lêem Romanos 6:6: "o nosso homem velho foi crucificado com ele". Pela fé esta é uma grande verdade e realidade; pelo simples arrazoamento mental fica a dúvida e pode não ser verdade, porque falta a luz espiritual.
Lembremos ainda que estamos aqui lidando não com promessas, mas com fatos. As promessas de Deus nos são reveladas mediante o seu Espírito, para possamos confiar nelas. Mas os fatos são fatos, e permanecem fatos, quer acreditemos, quer não. Se não cremos para nada na Cruz, ainda assim ela permanece verdadeira, mas não tem valor para nós. A fé não faz reais as coisas em si, mas a fé pode "tomar posse" delas e torná-las reais em nossa experiência.
É necessário considerar como uma invenção diabólica aquilo que contradiz a verdade da Palavra de Deus, porque, embora não seja um fato real para os nossos sentidos, Deus estabeleceu uma realidade maior, diante da qual todo acabará por inclinar-se. Eu fiz, um dia, uma experiência que, se não é aplicável à nossa questão em todos os seus particulares, pode ilustrar este princípio.
Alguns anos atrás eu enfermei. Tive durante seis noites uma febre fortíssima que me impedia de dormir. Finalmente o Senhor me deu sobre as Escrituras uma palavra particular de cura que me fez esperar que os sintomas do mal desapareceriam imediatamente. Ao contrário, meus olhos não queriam fechar-se e uma agitação molesta enchia meu ser. A temperatura cresceu ainda mais, as minhas pulsações eram mais freqüentes e a cabeça me doía terrivelmente. O médico me atormentava: "Cadê a promessa de Deus? Cadê a sua fé? O que há de suas orações?" Assim fui tentado para levar novamente a minha situação em oração, mas essa não foi ouvida, e em vez disso me viram à mente estas palavras da Escritura: "A tua palavra é a verdade" (João 17:17). Se a Palavra de Deus é verdade, pensei, o que significam todos estes sintomas? São somente invenções! Então, respondendo ao inimigo, declarei: "Esta insônia é uma mentira, esta dor de cabeça é uma mentira, esta febre é uma mentira, este pulso acelerado é uma mentira. Diante do que Deus me disse, todos os sintomas da enfermidade não são mais que invenções de parte tua, e a Palavra de Deus é a verdade para mim". Cinco minutos depois adormeci e durmi, e na manhã seguinte, quando acordei, estava bem.
É evidente que num fato pessoal como este eu pude errar ao interpretar o que Deus queria me dizer; mas no que se refere ao fato da Cruz não pode haver qualquer dúvida. Devemos acreditar em Deus, por muito que os argumentos de Satanás possam parecer-nos convincentes.
Um hábil mentiroso não age somente com as palavras, mas também com os comportamentos e as ações; pode passar facilmente tanto uma moeda falsa quanto uma mentira. O diabo é um hábil mentiroso, e nós não devemos esperar que as suas mentiras se limitem às palavras.
Ele recorre a sinais, sentimentos e enganos no esforço de esfriar a nossa fé na Palavra de Deus. Fique bem claro que não contesto a realidade da "carne". Teremos muito para dizer sobre este tema no curso do nosso estudo. Mas aqui se trata do que pode nos fazer vacilar da nossa posição em Cristo, a qual nos foi revelada. Devido a que temos aceitado de estarmos mortos com Cristo como um fato cumprido, Satanás fará de tudo para nos convencer, valendo-se das nossas experiências cotidianas, que não morremos completamente, mas estamos bem vivos ainda. Devemos então escolher. Acreditaremos nas mentiras de Satanás ou na verdade de Deus? Nos deixaremos levar pelas aparências o ficaremos firmes no q d disse?
Eu sou W. Nee. Eu sei que sou W. Nee. É um fato sobre o qual não tenho dúvidas. Poderei perder a memória e esquecer que sou W. Nee, ou ainda sonhar que sou uma outra pessoa. Porém, quaisquer sejam meus sentimentos, enquanto durmo sou W. Nee, e quando estou desperto sou W. Nee. Se me lembro, sou W. Nee, e se mi esqueço, igualmente sou W. Nee.
Mas naturalmente, se pretendo ser uma outra pessoa, tudo será muito mais diferente. Se tentasse de me apresentar como o Sr. C..., deverei repetir-me a cada minuto: "Você é o Sr. C..., Lembra, não esqueça que é o Sr. C...", e apesar de todos os meus esforços, é muito provável que não fique muito seguro de conservar esta personalidade; penso que se alguém me chamasse: "Sr. Nee!" eu responderia em seguida ao meu nome verdadeiro. A lealdade triunfaria sobre a ficção, e tudo quanto eu tiver feito para sustentar uma personalidade cairia no momento crucial da prova. Mas eu sou W. Nee, não tenho portanto nenhuma dificuldade em considerar-me W. Nee. É um fato, uma realidade e nada de quanto eu faça ou deixe de fazer a pode mudar.
Sendo assim, quer eu o sinta ou não, eu estou morto com Cristo. Como posso estar seguro? Porque Cristo morreu e: "se um morreu por todos, logo todos morreram" (2 Coríntios 5:14). Que eu possa prová-lo ou que possa tentar de provar o contrário, o fato persiste igualmente. Enquanto defenda este fato, Satanás não pode me vencer. Lembremos que os seus ataques são sempre dirigidos à nossa segurança. Se pode conseguir nos fazer duvidar da Palavra de Deus, ele terá conseguido seu objetivo e nos tem na mão; mas se ficarmos firmes na certeza de quanto Deus tem estabelecido, seguros que Ele não pode trair sua obra ou sua palavra, pouco importam, então, as táticas de Satanás; poderemos muito bem rir dele. Se alguém tentasse me convencer que eu não sou W. Nee, eu poderia rir com razão.
"Andamos por fé, e não por vista" (2 Coríntios 5:7). Talvez vocês se lembrem da experiência destes três personagens: a Ação, a Fé e a Experiência em "O peregrino". Eles caminhavam juntos sobre o fio de um muro. A Ação avança resolutamente sem olhar para trás. A Fé a segue e tudo vai bem enquanto mantém os olhos fixos sobre a Ação; porém apenas se preocupa com a Experiência e se volta para ver como essa esta indo, perde o equilíbrio e cai, arrastando consigo a pobre Experiência.
Cada tentação começa com olhar dentro de nós mesmos, considerando as aparências e tirando o olhar do Senhor. A Fé encontra sempre uma montanha, considerando as aparências de evidências que parecem contradizer a Palavra de Deus, uma montanha de contradições no domínio dos fatos concretos. Assim, ou a fé, ou a montanha, uma das duas deve ceder. Ambas não podem subsistir juntas. O que é mais triste é que amiúde a montanha fica e a fé vai embora. Isto não deve acontecer. Se recorremos aos nossos sentidos para descobrir a verdade, veremos que as mentiras de Satanás estão freqüentemente de acordo com as nossas experiências; porém se nos negarmos a nos deixar convencer de tudo o que contradiz a Palavra de Deus, e se mantemos firme a nossa fé nEle sozinho, veremos que as mentiras de Satanás se dissolverão e a nossa experiência entrará progressivamente em harmonia com a Palavra de Deus.
Para alcançar este resultado é necessário que nos ocupemos de Cristo de modo que Ele vá se fazendo mais vivo em nós, na vida de todos os dias. Em cada ocasião o vemos como a verdadeira justiça, a verdadeira santidade, a verdadeira vida da ressurreição em nós. Aquilo que vemos nEle de maneira objetiva, age em nós de maneira subjetiva —porém real—, a fim que se manifeste em nós naquela precisa circunstância.
Esta é a marca da maturidade. Isto quer dizer Paulo quando escreve aos gálatas: "Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós" (Gl 4:19). A fé assimila as obras de Deus; e a fé é sempre a assimilação das coisas eternas, de tudo aquilo que é eternamente verdadeiro.

PERMANECER NELE
Ainda que já nos demoramos bastante neste tema, existe uma outra coisa que pode nos ajudar a entender mais claramente.
As Escrituras declaram que "estamos verdadeiramente mortos", mas não dizem que estejamos mortos em nós mesmos. Procuraremos em vão a morte em nós mesmos; é justamente aqui que não a acharemos. Estamos mortos não em nós mesmos, mas em Cristo. Fomos crucificados com Ele porque estávamos nEle.
Conhecemos bem as palavras do Senhor Jesus: "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" (João 15:4). Meditemos nelas um instante. Elas nos recordam, em primeiro lugar, ainda mais uma vez, que não devemos lutar para entrar "em Cristo". Não nos é pedido entrar nEle, porque já estamos ali; mas nos é pedido de permanecer onde fomos colocados. É obra de Deus, Ele mesmo nos colocou em Cristo; nós devemos somente permanecer nEle. De fato, estas palavras colocam em nós um princípio divino, o de que Deus cumpriu a obra em Cristo e não em nós individualmente. A morte e a ressurreição do Filho de Deus que nos incluem a todos, foram completadas plenamente, na plenitude dos tempos, fora de nós. É a história de Cristo a que deve converter-se na experiência do crente, e nós não temos experiências espirituais fora dEle. As Escrituras nos dizem que fomos crucificados com Ele, com fomos vivificados, ressuscitados e sentados com Deus nos lugares celestiais (Rm 6:6, Ef 2:5-6, Cl 2:10). Esta não é simplesmente uma obra que deve ser completada em nós (ainda que seja assim, naturalmente), mas uma obra que já foi cumprida em união com Ele.
Vemos nas Escrituras que nenhuma experiência existe por si mesma. O que Deus completou em seu desígnio de graça é a associação com Cristo. O que Deus cumpriu em Cristo, o cumpriu no cristão; o que cumpriu na cabeça, o cumpriu também nos membros. É então um erro pensar que podemos alcançar qualquer experiência espiritual simplesmente por nós mesmos, fora de Cristo. Deus não deseja que nós adquiramos nada exclusivamente pessoal em nossa experiência. Ele não fará nada neste sentido, nem por vocês, nem por mim. Toda a experiência espiritual do crente está já em Cristo (ver o fim do capítulo 5). Ela já foi vivenciada por Cristo. O que chamamos de "nossa" experiência é somente o nosso ingresso em sua história e em suas experiências.
Seria estranho que uma vara de videira dê uvas brancas, enquanto uma outra vara produza uvas verdes, e ainda uma outra, pretas; que cada galho produzisse um fruto de sim mesmo, sem ter relação com a videira. Isto é impossível, inconcebível. É a videira que determina a natureza dos galhos. E ainda assim, alguns cristãos procuram as experiências simplesmente como experiências. Pensam na crucifixão como em um acontecimento, na ressurreição como em um outro acontecimento, na ascensão como em um outro ainda, sem nunca perceber que tudo isso está ligado a uma Pessoa. Somente quando o Senhor abre os nossos olhos para ver a Pessoa, nós podemos ver verdadeiramente.
Toda a verdadeira experiência espiritual significa que tomamos um dato cumprido em Cristo e que começamos a fazer parte dele; tudo o que não provém dEle neste modo é uma experiência destinada a se dissolver muito pronto. Eu tive esta revelação em Cristo; então, Deus seja louvado, ela é minha! A possuo, Senhor, porque está em Ti. Que coisa grande é o conhecer a realidade de Cristo como fundamento da nossa experiência!
Assim, o princípio fundamental sobre o qual Deus nos dirige em nossas experiências, não consiste em dar-nos coisas. Não consiste em nos fazer passar por um certo caminho para colocar em nós, como resultado, alguma coisa que possamos chamar de "nossa experiência". Deus não cumpriu em nós uma obra que nos permitirá dizer: "Eu morri em Cristo no passado março", ou "Eu ressuscitei em 1º de janeiro de 1937", nem "Quarta-feira passada pedi uma experiência precisa e a obtive". Não, não é assim. Eu não procuro a experiência em si mesma, neste tempo de graça. A noção de tempo não pode conduzir o meu pensamento quando considero a história do espírito. Mas, dirá alguém, o que devemos pensar das crises que muitos de nós têm atravessado? É verdade, alguns de nós temos atravessado verdadeiras crises em suas vidas. George Muller, por exemplo, pode dizer, dobrando-se até o chão: "Houve um dia em que George Muller morreu". O que significa isso? Não, não duvidamos da realidade das experiências espirituais que atravessamos, nem da importância das crises pelas quais Deus nos conduz em nosso caminho com Ele; já ressaltamos a necessidade de sermos bem precisos sobre o motivo central das crises que atravessamos em nossas vidas. Porém o fato que nos interessa é que Deus não nos dá experiências simplesmente individuais. Tudo aquilo que experimentamos é somente a entrada naquilo que Deus já cumpriu. É a "realização" no tempo das coisas eternas. A história de Cristo se converte em nossa história espiritual; nós não temos a nossa história separada da dEle. Toda a obra que nos abrange não é assim feita em nós, senão em Cristo. Ele não separa a obra que cumpre no individuo daquele cumprida sobre a Cruz. Nem a vida eterna nos é entregue separadamente; a vida está no Filho e "quem tem o Filho tem a vida" (1 Jo 5:12): Deus cumpriu todo em seu Filho e nos colocou nEle; nós estamos incorporados em Cristo. Ora, o ponto importante nisso tudo é o valor prático e real da aplicação da fé que diz: "Deus me colocou em Cristo, portanto, tudo aquilo que é verdade dEle é verdade de mim. Eu quero permanecer nEle". Satanás procura sem parar de nos fazer desviar da nossa posição em Cristo, de ter-nos fora dEle, de nos convencer que estamos longe, e com tentações, erros, sofrimentos, provas, nos fazer cruelmente sentir que não estamos em Cristo. O nosso primeiro pensamento é que, se estivéssemos em Cristo, não estaríamos nesse estado de debilidade, e portanto, a julgar pelo que estamos passando, devemos estar separados dEle; assim começamos a orar: "Senhor, coloca-me em Cristo". Não! Deus nos pede para "permanecer" em Cristo; este é o caminho da liberdade. Por quê? Porque isto abre a Deus a via para intervir em nossa vida e cumprir a sua obra em nós. Isto permite a ação do seu poder divino, o poder da ressurreição (Rm 6:4 - 9:10), a fim que as realidades que se encontram em Cristo se tornem progressivamente as realidades da nossa experiência cotidiana, e porque lá, onde primeiro "reinava o pecado" (Rm 5:21), podemos constatar com alegria que já não somos mais "escravos do pecado" (Rm 6:6).
Quando nos apoiamos firmemente sobre a base daquilo que Cristo é para nós, achamos que tudo o que é verdade dEle, transforma-se em verdade em nós, em nossa vida. Se, ao contrário, voltarmos sobre a base daquilo que somos que de nossa velha natureza, repetimos as mesmas experiências de desconforto e escravidão (ver capítulo 6). Se estamos em Cristo, temos tudo; se voltamos onde estávamos antes, já não temos nada.
Amiúde nos colocamos no ponto errado para achar a morte em nós mesmos. Ela está em Cristo. Nós não temos que olhar em nós para ver que estamos bem vivos para o pecado; porém, no momento em que fixamos o olhar por cima de nós, no Senhor, Deus vê que a morte opera aqui, mas que a "novidade de vida" opera em nós. Estamos "vivos em Deus" (Rm 6:4-11).
"Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós". Estas palavras testemunham duas coisas: um mandamento acompanhado de uma promessa. Isto significa que há na obra de Deus um aspecto objetivo e um subjetivo, e que o aspecto subjetivo depende do objetivo; o "Eu permanecerei em vós" é a conseqüência do "permanecei em mim". Devemos estar atentos a não preocupar-nos demasiado com a parte subjetiva, para não voltar-nos de mais em nós mesmos. Devemos afirmar-nos na parte objetiva "permanecei em mim", deixando que Deus se ocupe da parte subjetiva. Isto é o que Ele começou a fazer.
Podemos parangonar tudo isto com a luz elétrica. Vocês estão num quarto onde escurece, o dia declina. Desejariam ter luz para poder ler. Há uma luminária sobre a mesa. O que vocês farão? Olharão fixo para que ela ligue? Ou pegarão um pano para poli-la? Não, vocês se levantarão, cruzarão a habitação até o interruptor e então ligarão a luz. A vossa atenção vá até a fonte da energia e quando fazemos o necessário, a luz brilhará no quarto. Assim é no nosso caminho com o Senhor: a nossa atenção deve estar fixa em Cristo. "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós". Esta é uma ordem divina. A fé nos fatos objetivos transforma estes fatos verdadeiros subjetivamente. Como diz o apóstolo Paulo: "Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem..." (2 Coríntios 3:18). O mesmo princípio é verdadeiro no que diz respeito ao fruto da nossa vida: "quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto" (João 15:5). Nós não devemos tentar produzir fruto, nem concentrar a nossa mente em nossos produtos. O que devemos fazer é manter firme o nosso olhar sobre Ele. E enquanto o fazemos, Ele é fiel para cumprir a sua Palavra em nós.
Como permanecer nEle? "Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor" (1 Coríntios 1:9). Era assunto de Deus colocar-nos nEle e Ele o fez. Assim, estamos nEle! Não voltamos sobre o nosso ser particular. Não olhamos mais a nós mesmos, como se não estivéssemos em Cristo. Olhamos para Jesus com a certeza que estamos nEle. Permanecemos nEle. Repousamos sobre o fato que Deus nos colocou em seu Filho, a avançamos com a confiança que Ele cumprirá a sua obra em nós. É Ele que realiza em nós a gloriosa promessa de que "o pecado não terá domínio sobre vós" (Rm 6:14).


CAPÍTULO 5 – O PODER DE SEPARAÇÃO DA CRUZ

O Reino deste mundo não é o Reino de Deus. Ele estabeleceu um sistema universal, um universo de Sua criação que devia ter como cabeça Cristo, seu Filho. "Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele." (Colossenses 1:16-17). Mas Satanás, operando através da carne do homem, estabeleceu em vez disso um sistema rival, que as Escrituras chamam "o mundo", um sistema no qual estamos envolvidos e sobre o qual ele domina, porque se converteu no "príncipe deste mundo" (João 12:31).

DUAS CRIAÇÕES
Assim, por obra de Satanás, a primeira criação se converteu na velha criação, que já não tem interesse para o Senhor. O interesse de Deus está agora concentrado na segunda e nova criação, um novo reino e um novo mundo, no qual nada da velha criação, do antigo reino do antigo mundo poderá ser transferido. É necessário agora considerar dois reinos rivais, e ver a qual deles nós pertencemos.
Em verdade, o apóstolo Paulo não nos deixa dúvidas de qual destes dois domínios seja, hoje, o nosso. Ele diz que Deus, na redenção, "nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor" (Colossenses 1:12-13). A nossa cidadania de agora em diante pertence a este reino.
 Mas para nos fazer entrar nele, Deus deve cumprir em nós alguma coisa nova. Deve fazer de nós novas criaturas. Não podemos pertencer ao novo reino sem sermos criados de novo. "O que é nascido da carne é carne" (João 3:6), e "carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção" (1 Coríntios 15:50). Seja qual for o nível de seu desenvolvimento, de sua cultura ou de seu valor, a carne permanece sempre carne. A nossa possibilidade de pertencer ao novo reino dependa da criação à qual pertencemos. Somos da velha ou da nova? Nascemos da carne ou do Espírito? A condição definitiva para pertencer ao novo mundo depende da nossa origem. Não depende "do bom ou do mau", mas "da carne e do Espírito". Aquele que nasceu da carne é carne, e nunca será outra coisa. Aquilo que pertence à velha natureza não poderá jamais passar para a nova... desde que compreendemos realmente o que Deus procura, ou seja, alguma coisa profundamente nova para Ele sozinho, vemos claramente que nós não podemos aportar, neste novo nascimento, nenhum elemento da antiga natureza.
Deus queria nos ter para si mesmo, mas não podia nos fazer entrar em seu plano assim como nós éramos; então, antes que nada nos fez morrer por meio da Cruz de Cristo, e depois, com a sua ressurreição, nos deu nova vida. "Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo" (2 Coríntios 5:17).
Sendo agora novas criaturas, com uma nova natureza e um conjunto de novas faculdades, podemos entrar no novo reino e no novo mundo. A Cruz foi o meio pelo qual Deus se serviu para pôr fim às "velhas coisas", deixando inteiramente de lado o nosso "velho homem", e a ressurreição é o meio pelo qual Deus nos deu tudo aquilo que necessitávamos para viver neste novo mundo. "De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida" (Rm 6:4).
A grande negação do universo é a Cruz, porque por meio dela Deus cancelou tudo aquilo que não era dEle: o fato mais positivo no universo é a ressurreição, porque por ela Deus deu existência a tudo aquilo que desejava ter no novo mundo. Assim, a ressurreição é a fonte do novo nascimento. É uma bênção ver que a Cruz dá fim a todo aquilo que pertencia ao primeiro regime e que a ressurreição introduz aquilo que se adapta ao segundo. Tudo o que teve inicio antes da ressurreição deve ser cancelado. A ressurreição é o novo ponto de partida de Deus.
Estamos agora diante da presença de dois mundos, o antigo e o novo. Sobre o antigo Satanás exerce soberania absoluta. Vocês podem ser homens bons na velha natureza, mas enquanto permaneçam estarão sob uma sentença de morte, porque nada do velho pode passar para o novo. Através da Cruz, Deus declara que tudo aquilo que é da velha natureza deve morrer. Nada do que esteve no primeiro Adão pode ultrapassar a Cruz; tudo acaba lá. Quanto antes o vejamos, melhor será, porque através da Cruz Deus abriu a via para liberar-nos desta velha natureza. Ele reuniu tudo aquilo que era de Adão na pessoa de seu Filho e o crucificou; tudo o que era de Adão foi, portanto, destruído nEle. Assim Deus proclamou diante de todo o universo: "por meio da Cruz destruí todos aqueles a não são meus; vocês que pertencem à velha natureza estão compreendidos nesta obra: também vocês foram crucificados com Cristo!" Ninguém pode fugir a este veredicto.
Isto nos leva à questão do batismo.
"Ou, porventura, ignorais que todos quantos fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele pelo batismo na morte..." (Rm 6:3-4). Devemos agora nos perguntar o que significam estas palavras.
Nas Escrituras o batismo está associado à salvação: "Quem crer e for batizado será salvo" (Marcos 16:16). Não podemos falar, segundo as Escrituras, de "regeneração pelo batismo", mas podemos falar de "salvação pelo batismo". O que é a salvação? Ela está em relação não com os nossos pecados nem com o poder do pecado, mas com o cosmos, vale dizer, com o sistema deste mundo. Nós estamos no sistema do mundo satânico. Estar salvos significa sair deste sistema para entrar naquele de Deus.
Pela Cruz do Senhor Jesus Cristo, diz Paulo: "o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gálatas 6:14). Este é o tema desenvolvido por Pedro quando fala das oito pessoas que "se salvaram através da água" (1 Pedro 3:20). Entrando na arca, Noé e os seus saíram, pela fé, deste velho mundo corrupto para passar a um novo mundo. A coisa essencial não é que foram pessoalmente salvos do dilúvio, mas que saíram deste sistema corrupto. Esta é a salvação.
Pedro continua a seguir:
"...que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo..." (versículo 21). Em outras palavras, por este aspecto da Cruz que está representado pelo batismo, vocês são liberados deste presente mundo malvado, e o confirmam com a sua imersão na água. Este é o batismo "em sua morte", que põe fim a uma criação; mas é também o batismo "em Jesus Cristo" que faz uma nova criatura (Romanos 6:3). Vocês entram na água e o seu mundo, simbolicamente, desce com vocês. Vocês ressurgem em Cristo, porém o seu mundo permanece submergido. "Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa. E lhe pregavam a palavra do Senhor, e a todos os que estavam em sua casa. E, tomando-os ele consigo naquela mesma hora da noite, lavou-lhes os vergões; e logo foi batizado, ele e todos os seus" (Atos 16:31-33). Com este ato o carcereiro e os que estavam com ele deram testemunho diante de Deus, ao seu povo e às potencias espirituais que estavam realmente salvos de um mundo condenado. Como resultado, lemos, se alegraram grandemente porque "haviam acreditado em Deus".
Portanto está claro que o batismo não é uma simples questão relativa a um copo de água ou a um batistério. É uma coisa muito maior, ligada à morte e à ressurreição do nosso Senhor Jesus Cristo, tendo em vista dois mundos. Todos os que têm trabalhado em países pagãos conhecem quão tremendas discussões são provocadas pelo batismo.

A SEPULTURA SIGNIFICA UM FIM
Pedro continua no ponto que citamos acima e descreve o batismo como "a indagação de uma boa consciência para com Deus" (1 Pedro 3:21). Ora, nós não podemos responder se não há alguém que nos fale. Se Deus não nos tivesse falado nada, não teríamos nada para responder. Mas Deus falou; nos falou com a Cruz. Com ela nos disse que o seu juízo está sobre nós, sobre a velha natureza e sobre o antigo reino. A Cruz não concerne somente a Cristo pessoalmente; ela não é uma Cruz "individual". É uma Cruz que nos abraça a todos, uma Cruz "corporativa", uma Cruz que inclui você e eu. Deus nos colocou a todos em seu Filho e nos crucificou com Ele. No último Adão cancelou aquilo que estava no primeiro Adão.
Qual será agora a minha resposta à sentença que Deus pronunciou sobre a velha criação? Respondo, pedindo o batismo. Por quê? Em Romanos 6:4, Paulo explica que batismo significa sepultura: "De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte". O batismo, evidentemente, está associado à morte e à ressurreição, ainda que não seja, em si mesmo, nem morte nem ressurreição: é uma sepultura. Mas, quem está qualificado para ser sepultado? Somente aqueles que estão mortos! Se, então, eu peço de ser batizado, declaro que estou morto, vale dizer, bom somente para o túmulo.
Infelizmente, certas pessoas foram adestradas para considerar a tumba como um meio para morrer: elas procuram morrer fazendo-se sepultar! Permitam-me dizer formalmente que, se os nossos olhos não foram abertos por Deus para ver que já estamos mortos em Cristo e que fomos sepultados com Ele, não temos direito de sermos batizados. A razão pela qual descemos na água é que temos reconhecido de sermos, aos olhos de Deus, já mortos. A isto nós rendemos testemunho. A pergunta de Deus é clara e simples: "Cristo morreu e Eu incluí você neste fato. O que você tem a dizer a este respeito?" Qual será a minha resposta? "Senhor, eu creio que Tu cumpriste a crucifixão. Eu digo sim à morte e à sepultura à qual me ligas". Ele me consignou à morte e à tumba; quando eu Lhe peço de ser batizado, declaro publicamente o meu consenso com este fato.
Uma mulher da China, havendo perdido seu marido, enlouqueceu da dor e refutou-se decididamente a sepultá-lo. Durante quinze dias ele permaneceu na casa. "Não", falava a mulher, "Ele não está morto; eu falo com ele todas as noites". Ela não queria sepultá-lo porque, coitadinha, não acreditava que estivesse morto. Quando consentimos que sepultem os nossos seres queridos? Até que tenhamos a mínima esperança de que estejam ainda vivos, não teremos nunca o pensamento de sepultá-los. Assim, em que momento eu pedirei pelo batismo? Quando eu veja que os caminhos de Deus são perfeitos e que eu mereci a morte; e quando acredite realmente que Deus já me crucificou. Quando eu esteja bem persuadido, diante de Deus, que estou verdadeiramente morto, solicitarei ser batizado. Direi: "Deus seja louvado, eu estou verdadeiramente morto! Senhor, Tu me deixaste morto; é hora que eu seja sepultado!"
Na China temos dois serviços de socorro, uma "Cruz Vermelha" e uma "Cruz Azul". A primeira assiste aqueles que foram feridos em combate, mas que estão ainda vivos, e leva a eles ajuda e cura. A segunda se ocupa das vítimas que sucumbem pela fome, a inundação ou a guerra, e dá a eles sepultura. Deus age, a nosso respeito, por meio da Cruz de Cristo, de forma mais severa que a da "Cruz Vermelha". Ele não si esforça para reparar a velha criação. Os sobreviventes mesmos são condenados à morte e ao sepultamento, a fim que revivam numa nova vida. Deus cumpriu a obra da crucifixão, e assim agora estamos entre o número dos mortos; mas devemos aceitar isto e submeter-nos à obra da "Cruz Azul", que leva a termo a obra da morte com o sepultamento. Existe um mundo velho e um mundo novo e entre os dois há uma tumba. Deus me crucificou, mas eu devo consentir em ser colocado no túmulo. O meu batismo confirma a sentença de Deus, que caiu sobre mim por meio da Cruz do seu Filho. Isso confirma a minha separação do antigo mundo, e testifica que agora pertenço ao novo. O batismo não é, então, uma pequena coisa. Significa para mim uma clara e consciente ruptura com o velho modo de viver. É aqui o significado de Romanos 6:2: "Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?". Paulo diz, em realidade: "Se desejam continuar a viver no velho mundo, para que se batizam? Não deveriam nunca ser batizados se desejam continuar a viver no antigo reino." Somente quando estejamos persuadidos disto, estaremos prontos a preparar o terreno para a nova criação, consentindo em sepultar a velha.
Em Romanos 6:5, escrevendo ainda para aqueles que "fomos batizados" (versículo 3), Paulo mostra que "fomos convertidos numa mesma planta com Cristo por uma morte similar à dEle". Porque, por meio do batismo, reconhecemos que Deus estabeleceu uma união íntima entre nós e Cristo graças à morte e a ressurreição. Um dia procurei sublinhar esta verdade a um irmão crente. Estávamos juntos bebendo chá, e eu peguei um pedacinho de açúcar e o coloquei em minha xícara. Depois de alguns instantes, perguntei: "Pode me dizer agora cadê o açúcar e cadê o chá?". "Não", respondeu ele, "você os misturou, um se perdeu no outro e já não podem mais ser separados". Foi uma figura simples, mais o ajudou a ver o caráter íntimo e decisivo da nossa união com Cristo na morte. Deus nos colocou lá e o que Deus cumpre não pode ser anulado.
O que implica, de fato, esta união? O real significado do batismo é que na Cruz fomos "batizados" na morte histórica de Cristo, de forma que sua morte se converteu na nossa. A nossa morte e a sua estão assim tão profundamente identificadas que é impossível distingui-las. É a este "batismo" histórico, a esta união com Deus que Ele mesmo cumpriu, que nós damos o nosso consenso enquanto descemos às águas do batismo. O testemunho público que rendemos hoje com o batismo demonstra a nossa aceitação do fato que a morte de Cristo, dois mil anos atrás, foi uma morte tão poderosa e tão profunda que pode nos levar nela, destruindo em nós tudo aquilo que não é de Deus.

A RESSURREIÇÃO EM NOVIDADE DE VIDA
"Se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição" (Rm 6:5).
No que diz respeito à ressurreição o símbolo é diferente, porque há um novo elemento introduzido. Eu sou "batizado em Sua morte", mas não entro na mesma forma em sua ressurreição, porque (Deus seja louvado!) a sua ressurreição entra em mim para me dar nova vida. Na morte do Senhor a ênfase está colocada sobre "eu em Cristo" somente. Na ressurreição, ainda que isto permaneça verdadeiro, um novo acento é colocado sobre "Cristo em mim". Como pode Cristo me fazer participar de sua vida de ressurreição? Como é que eu recebo esta nova vida? Creio que Paulo apresente um ótimo exemplo com as palavras que adota: "convertidos numa mesma coisa com Ele", "convertidos num com Ele" (tradução literal do texto original), porque as palavras traduzidas em "convertidos numa mesma coisa com Ele" têm em grego o sentido de "enxertada" [5], e descrevem maravilhosamente a imagem da vida de Cristo que vem a nós com a ressurreição.
Visitei um dia, em Fukin, um homem proprietário de um pomar de "Long-Ien" [6]. Possuía algumas centenas de hectares de terra e perto de trezentas árvores frutíferas. Perguntei-lhe se aquelas árvores tinham sido enxertadas ou eram plantas naturais. "Você acha", me disse, "que eu desperdiçaria a minha terra não cultivando plantas enxertadas? Que valor poder esperar de obter com árvores naturais?". Pedi-lhe, então, que me explicasse o procedimento do enxerto, o que ele fiz de boa vontade.
"Quando uma árvore tem atingido uma certa altura, corto o topo e faço o enxerto", me disse. Depois, assinalando uma árvore, continuou: "Vê aquela árvore? Eu a chamo de 'árvore-pai', porque todos os enxertos necessários para as outras árvores precedem desta. Se as outras árvores tivessem sido abandonadas simplesmente ao seu desenvolvimento natural, os seus frutos seriam menores e estariam constituídos principalmente de uma casca grossa e sementes. Esta árvore, da qual eu tiro os enxertos para todas as outras, produz um fruto gostoso, grosso como uma ameixa, com uma superfície fina, de pequena semente, e naturalmente todas as árvores enxertadas produzem o mesmo fruto". "Como é que isso pode acontecer?", perguntei. "Pego simplesmente um pouco da natureza desta árvore para transmiti-la aos outros", explicou-me. "Faço um corte na árvore selvagem e insiro nela um elemento daquela boa. Então a amarro e a deixo crescer". "Mas como cresce?" perguntei. "Não sei", respondeu, "mas cresce". A continuação me mostrou uma arvore que produzia frutos pequenos, miseráveis, de um velho tronco, por debaixo do enxerto, enquanto um gostoso e suculento fruto crescia do novo tronco, acima do enxerto. "Eu deixei os velhos brotos com seu fruto inútil para mostrar a diferença", disse.
 "Destes pode se apreciar o valor do enxerto. Você entende agora a razão pela qual não cultivo senão árvores enxertadas?"
Como pode uma árvore produzir o fruto de uma outra? Como pode uma árvore selvagem produzir bons frutos? Somente com o enxerto. Somente se se transplanta nele a vida de uma árvore boa. Mas se um homem pode enxertar o galho de uma árvore numa outra árvore, Deus não pode tomar a vida de seu Filho e enxertá-la em nós?
Uma mulher chinesa queimou-se gravemente os braços e foi transportada no hospital. Para evitar uma forte contração dos tecidos após a cicatrização é necessário enxertar um pedaço de pele nova sobre a parte afetada, mas o médico tentava em vão transplantar a pele da mulher mesma nos braços. A causa da idade e de uma má alimentação, o transplante da própria pele demonstrou ser demasiado fraco e não "afixava".
Uma enfermeira estrangeira ofereceu então um pedaço de pele e a operação foi um sucesso. A pele nova se grudou à velha e a mulher deixou o hospital com os braços perfeitamente curados; permaneceu, porém, sobre os seus braços amarelos uma seção de pele branca estrangeira, para lembrá-la da história passada. Vocês perguntarão como podia a pele de um outro crescer sobre os braços daquela mulher? Eu não sei, só sei que aconteceu.
 Se um cirurgião deste mundo pode enxertar um fragmento de pele de um ser humano para transplantá-lo em outro, o Divino Cirurgião não poderá transplantar a vida de seu Filho em mim? Eu não sei como Ele faz. "O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito" (João 3:8). Nós não podemos fazer nada e não temos nada a fazer para contribuir, porque com a ressurreição Deus já fez tudo.
Deus já cumpriu tudo. Existe uma única vida fecunda no mundo, e essa foi enxertada em milhões de outras vidas. Nós a chamamos "novo nascimento". O novo nascimento é a infusão de uma vida que eu não possuía antes. Não é uma transformação da minha vida natural, é uma outra vida, inteiramente nova, absolutamente divina e que se transformou em minha vida.
Deus deu fim à velha criação com a Cruz de seu Filho, para poder introduzir, com a ressurreição, uma nova criação em Cristo. Ele fechou a porta ao antigo reino de trevas e me fez entrar no reino de seu amado Filho. Eu exulto pelo fato que tudo foi cumprido; que, pela Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, este velho mundo foi crucificado em mim, e eu fui crucificado para o mundo" (Gl 6:14). O meu batismo é o testemunho público que eu rendo deste fato. "Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação" (Rm 10:10).




CAPÍTULO 6 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: APRESENTAR-SE A DEUS

O nosso estudo nos conduziu ao ponto em que podemos considerar a verdadeira natureza da consagração. Temos diante dos olhos a segunda metade do capítulo sexto da carta aos Romanos, do versículo 12 até o fim. Em Romanos 6:12-13 lemos: "Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça". A palavra chave, neste parágrafo é "apresentar-se", e volta aparecer cinco vezes no capítulo, nos versículos 13, 16 e 19 [7].
Esta palavra "apresentar" é considerada por muitos com um sentido de consagração, sem levar em conta cuidadosamente o seu significado. Evidentemente significa isto, mas não no sentido no qual estamos acostumados a compreendê-la. Não se trata da consagração ao Senhor do nosso "velho homem" com os seus instintos e recursos, a sua sagacidade natural, a nossa força e outros dons para que Ele os utilize. Isto está claramente manifestado no versículo 13. Notamos a expressão "como vivos dentre mortos". Paulo diz: "doem-se a vocês mesmos a Deus como mortos vivificados". Isto nos indica o ponto onde começa a consagração. Porque do que aqui se trata não é da consagração de alguma coisa que pertence à velha criação, mas somente de aquilo que, através da morte, passou à ressurreição. O "apresentar" aqui expressado é o resultado do conhecimento que tenho do fato que o meu velho homem foi crucificado. Saber, reconhecer, apresentar-se a Deus: esta é a ordem divina.
Quando reconheço com certeza que fui crucificado com Ele, me reconheço espontaneamente como morto (versículos 6 e 11); e quando sei que ressuscitei com Ele dos mortos, analogamente, reconheço de estar "vivo para Deus em Cristo Jesus" (versículos 9 e 11), porque os dois aspectos da Cruz, o da morte e o da ressurreição, devem ser aceitos por fé. Quando cheguei a este ponto, o me dar a mim mesmo a Deus é uma conseqüência natural. Na ressurreição Ele é a fonte da minha vida, é a minha vida; assim posso doá-Lhe tudo, porque tudo é dEle, nada é meu. Porém se não passo através da morte, não tenho nada para consagrar a Ele, e não há nada em mim que Deus possa aceitar, porque Ele condenou sobre a Cruz tudo aquilo que pertence ao "velho homem". A morte eliminou tudo aquilo que não pode ser consagrado e só a ressurreição permite a consagração. Dar-me a Deus significa, de agora em diante, que considero a minha vida inteira como pertencente ao Senhor.

O TERCEIRO PASSO: "APRESENTAI-VOS..."
Observemos que este "apresentar-se" concerne aos membros do nosso corpo, daquele corpo que, como vimos, está agora fora de ação no que diz respeito ao pecado.
"Apresentai-vos a Deus... e os vossos membros...", diz Paulo, e ainda: "assim apresentai agora os vossos membros" (Rm 6:13,19). Deus me pede de considerar todos os meus membros, todas as minhas faculdades como pertencentes inteiramente a Ele.
É uma grande coisa descobrir que não pertenço mais a mim mesmo, mas que sou dEle. Se os R$ 500 que tenho no bolso são meus, eu posso dispor deles livremente. Mas se pertencem a uma outra pessoa que os confiou a mim, não posso pensar em gastá-los para comprar qualquer coisa que eu deseje, tratarei de não gastá-los. A verdadeira vida cristã começa com saber isso. Quantos de nós sabemos que, pela ressurreição de Cristo, estamos vivos "para Deus" e não para nós mesmos? Quantos de nós não ousamos usar o próprio tempo, o próprio dinheiro ou os próprios talentos para nós mesmos, porque temos compreendido que pertencemos ao Senhor e não mais a nós mesmos? Quantos de nós temos um senso tão forte de pertencermos a um Outro, que não ousamos pegar R$ 100 do nosso dinheiro, nem uma hora de nosso tempo, nem algumas das próprias forças físicas e mentais?
Uma vez, um irmão chinês viajava em trem e se achou num compartimento junto com três incrédulos que queriam jogar cartas para matar o tempo. Como faltava um quarto jogador para a partida, convidaram o irmão para unir-se a eles. "Lamento rejeitar", disse a eles, "mas não posso ter parte no jogo, porque não trouxe comigo as minhas mãos". "O que você quer dizer?" perguntaram desconcertados os viajantes. "Estas duas mãos não me pertencem", respondeu, e explicou a eles a mudança de proprietário que tinha acontecido nEle. Este irmão considerava os membros de seu corpo como pertencentes totalmente ao Senhor. Esta é a verdadeira santidade.
Paulo diz: "Apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação" (Rm 6:19). Façam um ato definitivo: "Apresentai-vos a Deus".

SEPARADO PARA O SENHOR
O que é a santidade? Muitas pessoas pensam que se torna santo extirpando tudo aquilo que existe de mau no homem. Não, nos tornamos santos sendo separados para o serviço do Senhor. Nos tempos do Antigo Testamento, quando um homem tinha sido pré-selecionado por Deus para ser inteiramente seu, era ungido com óleo publicamente, e declarado "santificado". Desde esse momento era considerado como colocado de lado para o Senhor. Da mesma maneira, os animais ou as coisas materiais, um cordeiro, ou o ouro do Templo, podiam ser santificados, não eliminando qualquer coisa que houvesse de mau neles, ma pondo-os aparte exclusivamente para o Senhor. Santidade no sentido hebraico significa alguma coisa separada, e toda a verdadeira santidade é santidade "para o Senhor" (Êxodo 28:36). Eu me dou inteiramente a Cristo: eis a santidade.
 Entregar-me a mim mesmo a Deus significa que reconheço ser inteiramente Seu. Este donativo de mim mesmo é um ato definitivo, tão definitivo quanto o fato de "considerar-me como...". Deve haver um dia, em minha vida, em que eu coloquei as minhas próprias mãos nas dEle, e a partir daquele dia eu lhe pertenço: pertenço a Ele e não mais a mim mesmo. Existem, apesar disso, muitos missionários que não são verdadeiramente consagrados a Deus, no verdadeiro sentido que consideramos acima. Tem "consagrado", como costumam dizer, alguma coisa bem diferente, ou seja, suas qualidades naturais, não crucificadas, para serem usadas na obra de Deus; mas esta não é a verdadeira consagração. A que coisa devemos, então, nos consagrar? Não à obra cristã, mas à vontade de Deus, para ser e fazer tudo aquilo que Ele quer de nós.
Davi tinha em seu exercito muitos homens fortes. Alguns eram generais e outros, soldados, segundo as tarefas que o rei tinha assinado para eles. Devemos preparar-nos para sermos generais ou soldados, cumprindo o nosso serviço exatamente como Deus quer, e não segundo a nossa escolha. Se somos crentes, Deus tem traçado um caminho para nós, uma "carreira", como a chama Paulo em 2 Timóteo 4:7. Não somente o caminho de Paulo, mas aquele de cada crente foi claramente assinalado por Deus, e é de importância extrema conhecer o caminho que Deus traçou para cada um de nós e transitar nele. "Senhor, eu me dou a Ti com este único desejo, de conhecer bem o caminho que traçaste para mim, para andar por ele". Eis o verdadeiro donativo de nós mesmos. Se, no fim de nossa vida, poderemos dizer como Paulo: "acabei a carreira", seremos verdadeiramente abençoados. Por outra parte, não há nada mais tremendo que alcançar o fim da própria existência e perceber ter andado por um caminho errado. Temos somente uma vida para viver aqui embaixo e somos livres de fazer o que desejamos, mas se procuramos a nossa própria satisfação, não poderemos nunca glorificar a Deus com a nossa vida. Um dia ouvi um pio crente dizer: "Eu não quero nada para mim mesmo; desejo que tudo seja para o Senhor". Existe alguma coisa que desejemos fora de Deus, ou todos os nossos desejos estão concentrados em Sua vontade? Podemos realmente confessar que a vontade de Deus é "boa, aceitável e perfeita" para nós (Rm 12:2)?
De fato, é de nossa vontade que aqui estamos falando. Esta minha vontade forte, prepotente, deve ser colocada sobre a Cruz e é necessário que eu me entregue inteiramente a mim mesmo ao Senhor. Não podemos pedir a um alfaiate de confeccionar-nos um vestido se não lhe damos o tecido, nem a um construtor de fazer-nos uma casa se não lhe procuramos o material necessário; também não podemos esperar do Senhor que viva a Sua vida em nós, se não Lhe entregarmos a nossa vida para que Ele nos faça permanecer. Sem reservas, sem contestações, devemos dar-nos ao Senhor dia após dia, até que Ele faça de nós o que Ele deseja. "Apresentai-vos a Deus" (Rm 6:13).

SERVO OU ESCRAVO?
Se nos damos sem reservas a Deus, muitas modificações acontecerão em nossa vida, em nossa família, em nosso trabalho, em nossas relações de igreja e nas nossas opiniões pessoais. Deus não permitirá que subsista nada de nós mesmos. Os seus dedos tocarão ponto por ponto tudo aquilo que não provém dEle e nos dirá: "Isto deve desaparecer". Estamos prontos para isso? É uma loucura resistir a Deus e é sempre sábio submeter-se a Ele. Reconheçamos que muitos de nós temos ainda contrastes com o Senhor. Ele quer uma coisa, enquanto nós queremos outra. Existem coisas que nós não ousamos sondar, pelas quais não nos atrevemos a orar, às quais não ousamos nem sequer pensar por medo de perder a nossa paz. Podemos assim subtrair-nos a certos problemas, mas isto nos faz evadir a vontade de Deus. É sempre tão fácil evadir-nos de Sua vontade, mas que precioso é que voltemos a colocar-nos em Suas mãos para que Ele possa agir em nós como Ele deseja!
Como é precioso sermos conscientes de pertencermos ao Senhor e não a nós mesmos! Não existe nada de mais precioso no mundo! É isso que nos dá a certeza de Sua presença contínua e a razão é clara. Devo, antes que nada, ter a certeza de pertencer a Deus para ter, a seguir, consciência de Sua presença em mim. Quando sinto que Lhe pertenço, não posso mais fazer nada em meu interesse pessoal, porque sou de Sua exclusiva propriedade. "Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?" (Rm 6:16). A palavra "servo" é, de fato, muito apropriada. A encontramos repetidamente nesta segunda parte de Romanos 6.
Qual é a diferença entre um servo e um escravo? Um servo pode servir um outro, mas o direito de propriedade não passa àquele outro. Se um servo gosta do seu patrão ele o serve, mas se não gosta, pode desligar-se dele e procurar um outro patrão. Como eu me converti em escravo do Senhor? Eu fui comprado por Ele e me entreguei a Ele. Em virtude da redenção eu sou propriedade de Deus, mas para ser seu escravo devo doar-me voluntariamente a Ele, porque Ele nunca vai me constranger. O que mais nos entristece hoje é que muitos cristãos têm idéias demasiado restritas a respeito do que Deus exige deles. Com quanta leviandade dizem: "Senhor, eu estou pronto para tudo". Sabemos que Deus nos pede a nossa própria vida? Há sonhos prediletos, fortes vontades, relações preciosas, um trabalho muito amado que devem ser abandonados; porém, se nos negamos a desapegar-nos inteiramente, não podemos doar-nos a Deus. porque Deus tomará a sua palavra, ainda quando vocês não a cumpram seriamente.
 O que fez o Senhor quando o rapaz da Galiléia lhe entregou seu pão? O partiu. Deus partirá sempre o que Lhe é oferecido. Ele rompe aquilo que pega, mas depois de tê-lo rompido o abençoa e o adota para responder às necessidades dos outros. Depois que vocês tenham se entregado ao Senhor, Ele começará partir o que vocês Lhe ofereceram. Tudo parece então andar mal e vocês protestam e acreditam ver erros nas vias de Deus. Mas desta forma serão somente um vaso quebrado, sem utilidade alguma para o mundo, pois se distanciaram demasiado dEle e assim não pode servir-se de vocês. Não estão mais de acordo com o mundo e, ao mesmo tempo, estão em contraste com Deus. Esta é a tragédia de muitos crentes.
O donativo de mim mesmo ao Senhor deve ser um ato inicial e fundamental. A seguir, dia após dia, devo continuar no oferecimento de mim mesmo, sem achar injusta a forma da qual Ele se serve de mim; mas aceitando com agradecimento também aquilo pelo qual a carne se rebela. Eu sou do Senhor e não considero mais a minha vida como própria, mas de propriedade e direito dEle. Este é o comportamento interior que Deus exige, e mantê-lo é a verdadeira consagração.
"Eu não me consagro para ser um missionário ou um predicador; me consagro a Deus para fazer a Sua vontade, lá onde eu estou, seja na escola, no trabalho ou no escritório, seja na cozinha aceitando tudo aquilo que Ele me confia como o melhor, porque somente aquilo que é bom pode ser a parte daqueles que são inteiramente dEle. Esperamos ser sempre conscientes de não pertencemos mais a nós mesmos, mas ao Senhor.


CAPÍTULO 7 – O DESÍGNIO ETERNO

Temos constatado que para viver a verdadeira vida cristã necessitamos revelação, fé, consagração. Mas se não vemos o objetivo que Deus tem se fixado, não compreenderemos nunca claramente como estas experiências sejam necessárias para conduzir-nos a este fim. Portanto, antes de considerar mais profundamente a questão da experiência interna, prestemos atenção principalmente sobre o grande ponto divino que está diante de nós.
Qual é o desígnio de Deus na criação? E qual é seu desígnio na redenção? Pode ser resumido em duas frases, e cada uma trata de uma das duas partes em que dividimos a carta aos Romanos: "a glória de Deus" (Rm 3:23) e "a glória dos filhos de Deus" (Rm 8:21). Lemos em Rm 3:23: "Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus". O fim que Deus tinha previsto para o homem era a glória, mas o pecado obstaculizou este desígnio e impediu o homem de alcançar a glória de Deus. Quando pensamos no pecado, pensamos instintivamente no juízo que produziu; o associamos invariavelmente à condena e ao inferno. O pensamento do homem gira sempre em volta do castigo que terá aquele que pecar; mas o pensamento de Deus está sempre voltado à glória que o homem perderá se pecar.
O resultado do pecado é que nós somos privados da glória de Deus; o resultado da redenção é que estamos de novo no caminho para a glória. O objetivo de Deus na redenção é a glória, a glória, a glória.

O PRIMOGÊNITO DE MUITOS IRMÃOS
Esta consideração nos conduz ao capítulo 8 de Romanos, onde o tema é desenvolvido desde o versículo 16 ao 18 e ainda nos versículos 29 e 30. Paulo diz: "O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada" (Rm 8:16-18). E ainda: "Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou" (Rm 8:29-30). Qual foi o objetivo de Deus? Foi que seu Filho Jesus Cristo fosse o primogênito de muitos irmãos, devendo ser todos feitos conforme à sua imagem. Como realiza Deus seu plano? "Aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou". O desígnio de Deus na criação e na redenção foi, portanto, fazer de Cristo o Filho primogênito de muitos filhos glorificados. Talvez isto não significa grande coisa, no princípio, para muitos de nós, porém detenhamo-nos a refletir atentamente.
Em João 1:14 nos é dito que o Senhor Jesus é o único Filho de Deus: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade". O fato que Ele fosse o Filho unigênito de Deus significa que Ele não tinha outros filhos, mas somente esse. Ele está perto do Pai desde a eternidade. Porém, nos é dito, Deus não estava satisfeito com que Cristo fosse seu único filho: desejava sim que Ele fosse seu primogênito. Como pode um filho único converter-se num primogênito? A resposta é simples. Necessita que o pai tenha outros filhos, e então o filho único se converterá em primogênito.
O desígnio de Deus na criação e na redenção foi o de ter muitos filhos. Ele os desejou e não podia se sentir satisfeito sem nós. Um tempo atrás eu fiz uma visita ao Sr. George Cutting, o autor de um opúsculo bem conhecido: "Segurança, certeza e gozo". Quando fui introduzido na presença daquele santo homem, de idade de 93 anos, ele pegou a minha mão na dele e me disse com seu tom tranqüilo e firme: "Irmão, você sabe que eu não posso fazer nada sem Ele? E sabe que Ele não pode fazer sem mim?"
Lendo a história do filho pródigo, a maior parte dos leitores permanece impressionada por todas as dificuldades que ele achou; eles concentram o pensamento nos momentos penosos que ele deveu atravessar. Mas este não é o objetivo da parábola. "Meu filho estava perdido e achou-se", eis o centro essencial do conto. Não é importante o que o filho sofreu, mas aquilo que o Pai tem perdido. É Ele quem sofre; é Ele quem perde. Se uma ovelha é perdida, quem sofre a perda? O pastor. Se uma moeda é perdida, quem sofre a perda? A dona. Se um filho é perdido, quem suporta a perda? O pai. Eis a explicação do capítulo 15 de Lucas.
O Senhor Jesus era o Filho unigênito e enquanto era unigênito não tinha irmãos. Mas o Pai envia o Filho, a fim que o unigênito se converta em primogênito, e o Filho dileto tenha muitos irmãos. Temos aqui toda a história da Encarnação e da Cruz; aqui achamos, enfim, o cumprimento do desígnio de Deus que é conduzir muitos filhos à glória (Hebreus 2:10).
Em Romanos 8:29 lemos: "muitos irmãos"; em Hebreus 2:10: "muitos filhos". Desde o ponto de vista do Senhor Jesus, esses são "irmãos"; desde o ponto de vista de Deus, são "filhos". Os dois termos, em seu contexto, sugerem a idéia da maturidade. Deus procura filhos adultos, mas não fica por aqui. Porque não quer que seus filhos vivam numa garagem, ou no campo; Ele os quer em sua morada; Ele quer que pertençam à sua glória. Esta é a explicação de Romanos 8:10: "Aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou". O estado de filho —a plena expressão de seu Filho— é que o fim de Deus seja alcançado em muitos filhos. E como pode ser alcançado este fim? Justificando-os e glorificando-os. Em cada Sua ação a respeito deles, tem sempre presente este fim. Ele quer filhos maduros e responsáveis com Ele em Sua glória. Fez tudo o que era necessário para que o céu fosse enchido de filhos glorificados. Tal foi o Seu desígnio na redenção da humanidade.

O GRÃO DE TRIGO
Mas como pode o Filho unigênito de Deus se converter em Seu Filho primogênito? Isto está explicado em João 12:24: "Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto". A quem representa este grão de trigo? Ele representa o Senhor Jesus. Em todo o universo, Deus não possuía senão um único "grão de trigo"; não tinha um segundo. Deus colocou este grão de trigo em terra; Ele morreu e na ressurreição o grão único tornou-se o grão primogênito; porque deste único grão nasceram muitos outros.
No que diz respeito à sua divindade, o Senhor Jesus fica sozinho: "o Filho unigênito de Deus". Existe porém um outro sentido no qual, da ressurreição e durante toda a eternidade, Ele é também o primogênito e sua vida, partindo daquele momento, se encontra em muitos irmãos. Porque nós que somos nascidos do Espírito nos tornamos, por isso, em "participantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). Não porém de nós mesmos, mas, como veremos dentro de pouco, só porque isso depende de Deus em virtude da nossa posição "em Cristo". Nós temos "recebido o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba! Pai! O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Rm 8:15-16). É pela encarnação e a Cruz que o Senhor Jesus rendeu isso possível. Assim o coração paterno de Deus ficou satisfeito, porque pela obediência de seu Filho até a morte, o Pai conseguiu muitos filhos.
O primeiro e o vigésimo capítulo de João são, a este respeito, muito preciosos. No início de seu Evangelho, João nos fala de Jesus como do Filho unigênito que veio do lado do Pai (João 1:14). No fim do seu Evangelho, João nos lembra que o Senhor Jesus, depois de sua morte e ressurreição, disse a Maria Madalena: "Vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus" (Jo 20:17). Até aqui, neste Evangelho, o Senhor tinha dito freqüentemente: "o Pai" ou bem "meu Pai"; ora, na ressurreição, Ele agrega: "o vosso Pai". É o Filho maior, o primogênito quem fala. Graças à sua morte e à sua ressurreição, muitos irmãos foram introduzidos na família de Deus; por isso, no mesmo versículo, Ele os chama "meus irmãos". Assim fazendo Ele afirma que "não me envergonho de chamá-los meus irmãos" (Hebreus 2:11).

A ESCOLHA QUE ADÃO DEVEU ENFRENTAR
Deus tinha plantado um grande número de árvores no jardim do Éden mas, "no meio do jardim", num lugar de particular evidência, tinha plantado duas árvores: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Adão, criado inocente, não tinha conhecimento do bem e do mal. Imaginemos um homem adulto, de uns trinta anos por exemplo, que não tenha nenhuma noção do bem e do mal, nem faculdade alguma para discernir! Não diremos que um homem assim não está desenvolvido? Bem, é mesmo exatamente o que era Adão. Deus o fez entrar no jardim e lhe disse, em substância: "O jardim está cheio de árvores de fruta e você pode comer, livremente, o fruto de cada árvore do jardim. No meio do jardim existe uma árvore chamada 'árvore do conhecimento do bem e do mal'; não coma o seu fruto, porque no dia que o coma, certamente você morrerá". O que significam, então, estas duas árvores? Adão foi criado, por assim dizer, moralmente neutro; nem pecador, nem santo, mas inocente. Deus o colocou diante destas duas árvores para que ele pudesse livremente exercer a sua escolha. Podia escolher a árvore da vida, ou bem podia escolher a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Ora, o conhecimento do bem e do mal, ainda que proibido a Adão, não era mau em si mesmo. Não o conhecendo, Adão estava num certo sentido limitado, porque era incapaz de decidir por si mesmo as conseqüências morais de seus atos. O discernimento do bem e do mal não residia nele, mas em Deus somente, e a única linha de ação a seguir por Adão enquanto estava frente ao problema, era apresentá-lo a Deus. Adão no jardim representa uma vida completamente dependente de Deus. Estas duas árvores simbolizavam dois princípios profundos; elas representavam duas ordens de vida; a divina e a humana. A árvore da vida é Deus mesmo porque Deus é a vida. Ele o é na forma mais elevada, é a fonte e o fim. E o fruto, qual é? É o nosso Senhor Jesus Cristo. Ninguém pode comer a árvore, mas pode comer o fruto. Ninguém pode receber Deus como Deus, mas podemos receber o Senhor Jesus. O fruto é a parte comestível, a parte da árvore que pode ser recebida. Assim, posso então dizer, com o devido respeito: o Senhor Jesus é verdadeiramente Deus sob uma forma que pode ser recebida. Em Cristo nós podemos receber Deus.
Se Adão tivesse escolhido a árvore da vida, teria tido parte na vida de Deus, teria então se tornado num "filho" de Deus, porque teria tido nele uma vida derivada de Deus. Teríamos a vida de Deus em união com o homem; uma raça de homens que têm em si mesmos a vida de Deus e que vivem numa contínua dependência de Deus para manter essa vida. Em vez disso, Adão, tomando o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, desenvolveu a própria humanidade, sobre uma linha natural fora de Deus. Ele tornou-se auto-suficiente, conquistou em si mesmo a possibilidade de exercer um juízo independente, mas não teve em si a vida de Deus.
Essa foi a alternativa colocada diante dele. Escolhendo o caminho da obediência, o caminho do Espírito, podia tornar-se um "filho" de Deus, recebendo a sua vida de Deus; em vez disso, seguindo o curso natural, pode dar o último toque à sua estrutura, permanecendo aquilo que era, tornando-se um ser autônomo, agindo e julgando fora de Deus. A história da humanidade é o resultado da escolha de Adão.

A ESCOLHA DE ADÃO, RAZÃO DA CRUZ
Adão escolheu a árvore do conhecimento do bem e do mal, colocando-se de tal forma dobre uma base de independência. Assim fazendo tornou-se (como aparecem hoje os homens aos próprios olhos) num homem "plenamente evoluído". Ele pode dispor de sua inteligência, pode assumir pessoalmente as suas próprias decisões, pode prosseguir ou parar. Partindo deste ponto, a sua "inteligência foi aberta" (Gênesis 3:6). Mas a conseqüência de seu ato foi para ele a morte mais que a vida, porque essa escolha significou uma cumplicidade com Satanás e o colocou sob o juízo de Deus. Eis por que a seguir lhe foi proibido o acesso à árvore da vida.
Duas ordens de vida tinham sido propostas a Adão: aquela da vida divina, em dependência de Deus, e aquela da vida humana, com seus recursos "independentes". A escolha desta última, realizada por Adão, foi "pecado" porque ele se aliou com Satanás para opor-se ao desígnio eterno de Deus. Isto ele fez escolhendo desenvolver a sua humanidade para se tornar talvez um homem muito diferente, aliás, um homem "perfeito" desde o seu ponto de vista, porém longe de Deus. Mas o fim devia ser a morte, porque não tinha em si a vida divina, necessária à realização do desígnio de Deus em sua existência, e porque ele tinha preferido se tornar, com "a independência", um agente do inimigo. É assim que em Adão todos nós nos convertemos em pecadores, dominados como ele por Satanás, sujeitos como ele à lei do pecado e da morte e merecendo, como ele, a cólera divina.
Aqui vemos a razão divina da morte e da ressurreição do Senhor Jesus. Vemos, também, a razão divina da verdadeira consagração, da necessidade de considerar-nos como mortos para o pecado, mas como vivos para Deus em Jesus Cristo, e de apresentar-nos a Deus como vivificados, feitos vivos dos mortos que éramos. Devemos ir todos à Cruz, porque aquilo que está em nós é por natureza uma vida egoísta em vez de uma vida divina; assim Deus deveu ajuntar tudo o que havia em Adão e deixá-lo de lado. O nosso "velho homem" foi crucificado. Deus nos colocou a todos em Cristo e o crucificou como o último Adão, assim tudo o que era de Adão foi cancelado. Depois, Cristo ressuscitou sob uma nova forma, tendo ainda um corpo, mas no espírito e não mais na carne. "O último Adão em espírito vivificante" (1 Coríntios 15:45). O Senhor Jesus tem agora um corpo ressuscitado, um corpo espiritual, um corpo glorioso e, como não está mais na carne, pode ser agora recebido por todos; "quem de mim se alimenta, também viverá por mim" (João 6:57), disse Jesus.
Os judeus indignavam-se diante do pensamento de comer sua carne e de beber o seu sangue, e de fato não podiam recebê-lo então porque ainda estava literalmente presente na carne. Agora que está no Espírito, cada um de nós pode recebê-Lo; e é participando de sua ressurreição que nos convertemos em filhos de Deus. "Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (João 1:12-13).
Deus não está operando na reformação de nossa vida. O seu objetivo não é o de levar a nossa vida até um grau de afinamento, porque isto significaria colocar esta vida sobre um plano inteiramente errado. Sobre tal plano Deus não poderia, agora, levar o homem è glória. Ele deve criar um novo homem; um homem nascido de novo, nascido de Deus. A regeneração e a justificação vão a passos juntos.

QUEM TEM O FILHO TEM A VIDA
Existem diversos graus da vida. A vida humana se encontra entre a vida dos animais inferiores e a vida de Deus. É impossível superar o abismo que nos separa do grau superior, tanto como do grau inferior, e a distância que nos separa da vida de Deus é infinitamente maior que aquela que nos separa da vida dos animais inferiores.
Fiz uma visita, um dia, a um crente que estava em cama com uma doença, e a quem eu chamarei de "Sr. Wong" (ainda que este não seja o seu verdadeiro nome). Era um homem muito culto, doutor em filosofia, estimado em toda a China pelos seus princípios morais muito elevados, e tinha estado por bastante tempo empenhado na obra cristã. Não acreditava na necessidade de regeneração, anunciava unicamente um Evangelho "social". Quando entrei em casa do Sr. Wong, seu cachorro preferido estava deitado ao lado dele. Depois de ter falado com ele das coisas de Deus e da natureza de Sua obra em nós, indiquei o seu cão e perguntei como se chamava. "Se chama Fido", me disse. "Fido é o seu nome ou sobrenome?" repliquei. "É o seu nome simplesmente", respondeu ele. "Você quer dizer que é o seu nome de batismo? Posso então chamá-lo Fido Wong?" insisti. "Certamente não!", exclamou ele. "Mas ele vive em sua família", agreguei ainda, "por que não o chamam Fido Wong?". Depois, indicando suas duas filhas, perguntei: "As suas filhas são as senhoritas Wong?". "Sim". "Então, por que não posso chamar o vosso cachorro de Senhor Wong?". O doutor riu e eu continuei: "Você vê aonde eu quero chegar?" As suas filhas nasceram em sua família e portanto levam seu nome porque você mesmo comunicou a elas a sua vida. O seu cão pode ser inteligentíssimo, bem educado, fiel, pode ter todas as boas qualidades sob cada ponto de vista, mas a pergunta não é: 'É um cachorro bom ou mau?' a pergunta é simplesmente: 'É um cão?' Não precisa ser mau para ser excluído de sua família, é suficiente que seja um cachorro. O mesmo princípio pode se aplicar à sua relação com Deus. a coisa importante não é que você seja um homem mais ou menos bom, mais ou menos ruim, mas simplesmente 'Você é um homem?'. Se a sua vida se encontra num plano inferior ao da vida de Deus, você não pode pertencer à família de Deus. Durante toda a sua vida o seu objetivo foi o de transformar homens maus em homens bons por meio de sua predicação; porém os homens, como tais, sejam bons ou maus, não podem ter com Deus nenhuma relação vital. A única esperança para nós homens é a de receber o Filho de Deus e quando o recebemos sua vida em nós nos transforma em filhos de Deus". O doutor viu a verdade e se converteu naquele dia num membro da família de Deus, recebendo o Filho em seu próprio coração.
Aquilo que possuímos hoje em Cristo é mais do que Adão perdeu. Adão foi somente um homem desenvolvido. Permaneceu neste plano e não teve jamais a vida de Deus. Porém nós que recebemos o Filho de Deus, recebemos não somente o perdão dos pecados, mas também a vida divina, prefigurada no jardim do Éden com a árvore da vida. Recebemos pelo novo nascimento, aquele que Adão perdeu, porque temos uma vida que ele nunca teve.

TODOS NASCERAM DE UM HOMEM SÓ
Deus quer dos filhos que sejam co-herdeiros com Cristo na glória; este é o Seu objetivo. Mas como poderá alcançá-lo? Leiamos Hebreus 2:10-11: "Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas, e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse pelas aflições o príncipe da salvação deles. Porque, assim o que santifica, como os que são santificados, são todos de um; por cuja causa não se envergonha de lhes chamar irmãos"
Temos diante de nós dois protagonistas, ou seja: "muitos filhos" e "o príncipe da salvação deles"; ou, em outros termos, "aquele que santifica" e "os que são santificados". Mas é dito que são "todos nascidos de um só". O Senhor Jesus, como homem, trouxe a sua vida de Deus.; num sentido diferente, mas não menos real, nós recebemos a nossa nova vida de Deus. Ele foi "concebido pelo Espírito Santo" (Mateus 1:20), e nós somos "nascidos do Espírito", "nascidos de Deus". Assim,diz Deus, nós nascemos de Um só. A preposição "de" em grego exprime a idéia de "nascidos de". O Filho primogênito e os numerosos outros filhos são todos (ainda que em um sentido diferente) "nascidos" da única fonte de vida.
Percebemos hoje que temos a mesma vida que Deus possui? A vida que Ele tem no céu é a vida que nos deu aqui embaixo, sobre a terra. É o precioso "dom de Deus" (Rm 6:25). É graças a esta verdade que podemos viver, desde agora, uma vida de santidade, porque esta não é a nossa própria vida que foi mudada, mas a vida de Deus que nos foi dada.
Vocês perceberam que nesta consideração do desígnio eterno, tudo quanto concerne ao pecado desapareceu? Na existe mais lugar para isso. O pecado entrou com Adão no mundo e então, quando foi cancelado, como devia ser, nós fomos re-conduzidos ao ponto onde estava Adão. Mas considerando novamente o desígnio de Deus —abrindo-se assim o acesso à árvore da vida—, a redenção nos foi entregue em medida maior do que Adão a tenha possuído. Essa nos fez partícipes da vida de Deus mesmo.


CAPÍTULO 8 – O ESPÍRITO SANTO

Falamos do desígnio de Deus como da razão e da explicação de todas as vias de Deus que se referem a nós. Antes de retomar o nosso estudo sobre as fases da experiência cristã como nos a apresenta Paulo em sua carta aos Romanos, precisamos considerar ainda um fator que se encontra no centro de todas as nossas experiências e que é o poder da verdadeira vida e do serviço cristão. Estou me referindo à presença pessoal e ao ministério do Espírito Santo de Deus.
Tomemos ainda, como ponto de partida, dois versículos de Romanos, extraídos de cada uma das nossas duas seções: "O amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5:5). "Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele" (Rm 8:9).
Deus não confia seus dons ao acaso, e não os distribui de forma arbitrária. Eles são entregues gratuitamente a todos, mas sobre uma base bem definida. Deus verdadeiramente "nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo" (Efésios 1:3). Mas, a fim que estas bênçãos que são nossas em Cristo o sejam em nossa experiência, devemos saber sobre que base podemos obtê-las.
Quando estudamos o dom do Espírito Santo, é bom considerá-lo sob dois aspectos: o Espírito derramado sobre nós e o Espírito que permanece em nós. O objetivo que nos propomos é o de compreender sobre qual base este duplo dom do Espírito Santo pode se tornar nosso. Sem dúvida fazemos bem em distinguir assim entre as manifestações externas e internas de sua ação, e a medida que procederemos, acharemos útil esta distinção. De qualquer forma, se o comparamos, chegaremos inevitavelmente à conclusão que a atividade interior do Espírito Santo é a mais preciosa. Mas, assim falando, não queremos diminuir o valor de sus atividade externa, porque Deus doa aos seus filhos somente coisas excelentes.
Certamente somos induzidos a negligenciar o verdadeiro valor dos nossos privilégios, com motivo de sua extrema abundância. Os santos do Antigo Testamento, os quais foram menos favorecidos que nós, sabiam apreciar mais o valor dos dons do Espírito derramado sobre eles. Naqueles tempos, era um dom entregue unicamente a algum eleito, principalmente aos sacerdotes, os juizes, os reis e os profetas, enquanto hoje é a dote de cada filho de Deus. Pensemos nisso! Nós que somos somente nulidades, podemos ter o mesmo Espírito Santo que permaneceu em Moisés, o amigo de Deus, em Davi o rei armadíssimo, em Elias, o poderoso profeta.
Recebendo o dom do Espírito Santo, derramado sobre nós, alcançamos o grau de servos escolhidos de Deus na dispensação do Antigo Testamento. Apenas vemos o valor deste dom de Deus, e compreendemos também a imensa necessidade de possuí-lo, perguntamos em seguida: "Como posso receber o Espírito Santo de forma de ser abastado de seus dons e ser consagrado ao serviço de Deus? Sobre que base foi entregue o Espírito Santo aos Seus filhos?"

A EFUSÃO DO ESPÍRITO
Antes que nada tomemos o livro dos Atos dos Apóstolos, 2:32-36, e consideremos brevemente este parágrafo:
(32) Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos testemunhas.
(33) De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis.
(34) Porque Davi não subiu aos céus, mas ele próprio diz: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita,
(35) Até que ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés.
(36) Saiba, pois com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.
Deixemos de lado, por um instante, os versículos 34 e 35 (que são uma citação do Salmo 110 e constituem um parêntese), e consideremos juntos os versículos 33 e 36 para poder discernir melhor a força do discurso de Pedro, não levando em conta o início. Pedro declara, no versículo 33, que o Senhor Jesus foi "exaltado pela destra de Deus". Qual foi o resultado? Recebeu do Pai o Espírito Santo que tinha sido prometido. O que veio depois? O prodígio do Pentecoste!
O resultado de sua ascensão foi "isto que vós agora vedes e ouvis".
Sobre qual base, então, foi entregue o Espírito Santo pela primeira vez ao Senhor Jesus, a fim que o derramasse sobre seu povo? Fui o fato de sua ascensão ao céu. Este passo esclarece completamente que o Espírito Santo foi derramado porque o Senhor Jesus foi exaltado. A efusão do Espírito Santo não tem nenhuma relação com seus méritos, nem com os meus, mas unicamente com os méritos do Senhor Jesus.
Não nos interessa considerar aquilo que somos, mas somente o que "Ele é". Ele é glorificado; por isso o Espírito foi derramado. Porque o Senhor Jesus morreu sobre a Cruz, eu recebi o perdão dos meus pecados; porque o Senhor Jesus ressuscitou dos mortos, eu recebi a nova vida; porque o Senhor Jesus foi elevado à destra do Pai, eu recebi o Espírito que Ele espalhou. Tudo foi a cauda dEle; nada a causa de mim. A remissão dos pecados não está baseada sobre méritos humanos, mas sobre a crucifixão do Senhor; e o revestimento do Espírito Santo não está baseado em méritos humanos, mas sobre a exaltação do Senhor. O Espírito Santo não foi derramado sobre vocês ou sobre mim para demonstrar como somos grandes, mas para mostrar a grandeza do Filho de Deus.
Agora tomemos o versículo 36. Há aqui uma palavra que deve atrair a nossa atenção: a palavra "pois". Quando usamos geralmente esta palavra? Não para introduzir uma declaração; mas como conseqüência de uma declaração que já foi formulada. Sua utilização se refere sempre a alguma coisa que já foi mencionada. Ora, de que foi precedido este "pois" no nosso texto? Com que coisa está relacionado? Não pode estar ligado logicamente ao versículo 34 nem ao 35, mas está claramente ligado ao versículo 33. Pedro faz menção da efusão do Espírito sobre os discípulos; "isto que vós agora vedes e ouvis" e agrega: "Saiba, pois com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo". Pedro, em substância, disse aos seu ouvintes: "Esta efusão do Espírito, da qual vocês foram testemunhas com seus olhos e ouvidos, é a prova de que Jesus de Nazaré, a quem vocês crucificaram, é agora Senhor e Cristo". O Espírito Santo foi derramado sobre a terra para demonstrar aquilo que aconteceu nos céus, a ascensão de Jesus de Nazaré à destra de Deus Pai. O fato do Pentecoste prova a soberania de Jesus Cristo.
Havia um jovem chamado José que era ternamente amado pelo seu pai. Um dia chegou ao pai a notícia de que seu filho tinha morrido, e por muitos anos Jacó chorou a morte de José. Mas José não tinha morrido; havia, pelo contrário, obtido uma posição de glória e poder. Depois de ter chorado por anos o filho morto, chega de improviso a Jacó a notícia que não só José estava vivo, mas ocupava também uma posição muito elevada no Egito. No princípio pareceu-lhe uma coisa incrível. Era demasiado belo para ser verdade. Mas finalmente se persuadiu da veracidade da notícia. E como foi possível fazê-lo acreditar? Saiu, e viu os carros que José tinha lhe enviado do Egito.
O que representam esses carros? Prefiguram certamente o Espírito Santo, enviado como prova de que o Filho de Deus está na glória, para transportar também nós. Como sabemos que Jesus de Nazaré, crucificado dois mil anos atrás por homens malvados, não morreu simplesmente como mártir, mas está sentado à destra do Pai, na glória? Como podemos ter a certeza que é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis? Podemos ter esta certeza incontestável, porque Ele derramou o seu Espírito sobre nós. Aleluia! Jesus é o Senhor! Jesus é o Cristo! Jesus de Nazaré é de vez o Senhor e o Cristo!
A ascensão do Senhor Jesus é a base sobre a qual foi enviado o Espírito Santo. É possível, então, que o Senhor Jesus tenha sido glorificado e que vocês não tenham recebido o Espírito? Sobre que base tiveram o perdão dos seus pecados? E por que oraram com tanta seriedade, ou por que leram a Bíblia de uma ponta até a outra, ou por que assistiram regularmente à Igreja? É pelos seus méritos? Não! Um milhão de vezes não! Sobre que base os seus pecados foram perdoados? "Sem derramamento de sangue não há remissão" (Hebreus 9:22). O único meio de perdão é o derramamento do sangue; e como o sangue precioso foi vertido, os seus pecados estão perdoados.
Ora, o princípio pelo qual estamos revestidos do Espírito Santo é exatamente o mesmo pelo qual recebemos o perdão dos pecados. O Senhor foi crucificado e por isso fomos perdoados; o Senhor foi glorificado e por isso o Espírito Santo foi derramado sobre nós. Será possível que o Filho de Deus tenha vertido seu sangue e que os pecados de vocês, amados filhos de Deus, não tenham sido perdoados? Jamais! Então, é possível que o Filho de Deus tenha sido glorificado e que vocês não tenham recebido o seu Santo Espírito? Jamais!
Mas talvez algum dirá: "Eu estou de acordo com isso todo, mas nunca tive esta experiência. Posso adotar uma atitude serena e declarar que possuo tudo, quando sei perfeitamente de não ter nada?". Não, não devemos contentar-nos com um conhecimento objetivo da verdade. Temos absolutamente necessidade de um conhecimento subjetivo; mas teremos tal experiência somente na medida em que repousemos sobre as realidades divinas. Os feitos de Deus e a obra por Ele cumprida, constituem o fundamento de nossa vida.
Retornemos um momento ao fato da justificação. Como fomos justificados? Não é certamente procurando fazer alguma coisa, mas aceitando simplesmente o fato que o Senhor já cumpriu, Ele mesmo, tudo. Nós recebemos o Espírito Santo exatamente da mesma forma, não contando com as nossas boas ações, mas tendo fé absoluta naquilo e o Senhor tem já realizado.
Se não tivemos esta experiência, devemos pedir a Deus somente uma revelação deste fato eterno, que o batismo do Espírito Santo é o dom do Senhor glorificado para a sua Igreja. Quando tenhamos compreendido isto, cessará todo esforço, e a nossa oração mudará em louvor. Uma revelação daquilo que o Senhor cumpriu para o mundo deu fim aos nossos esforços para achar o perdão dos pecados; da mesma forma, uma revelação daquilo que o Senhor tem feito pela sua Igreja, porá fim a cada esforço nosso para obter o batismo do Espírito Santo. Se nos esforçamos é porque não temos compreendido a obra de Cristo. Mas uma vez que a tivermos entendido, a fé jorrará dos nossos corações e a medida que acreditamos, a experiência da vida nova si efetuará.
Faz um tempo um jovem, novo crente de somente cinco semanas, e que tinha sido antes um violento opositor do Evangelho, assistiu a uma série de reuniões que eu presidia em Xangai. Depois de uma destas reuniões, na qual eu tinha falado sobre o tema que nos ocupamos agora, foi a sua casa e começou orar intensamente: "Senhor, eu quero o poder do Espírito Santo. Já que Tu és agora glorificado, não desejas derramar o teu Espírito sobre mim?". Depois se corrigiu: "Oh, não, Senhor, não é isso!". E recomeçou a orar: "Senhor Jesus, nós estamos unidos numa mesma vida, Tu e eu, e o Pai nos prometeu duas coisas: a glória para Ti e o Espírito para mim. Tu, Senhor, tens recebido a glória; portanto, não é possível que eu não tenha recebido o Espírito. Senhor, eu te louvo. Tu tens já recebido a glória, e eu o Espírito". Daquele dia, o poder do Espírito entrou na consciência daquele jovem.

A FÉ É AINDA A CHAVE
Como no perdão, a vinda do Espírito Santo sobre nós é inteiramente uma questão de fé. Apenas vemos o Senhor Jesus sobre a Cruz, sabemos que os nossos pecados são perdoados, e apenas vemos o Senhor Jesus sobre o Trono, sabemos que o Espírito Santo foi derramado sobre nós. A base sobre a qual recebemos o revestimento do Espírito Santo não consiste nas nossas orações, nem no jejum, nem na esperança, mas unicamente na ascensão de Cristo ao Trono. Aqueles que insistem sobre a esperança organizando "reuniões de esperança", somente erram, porque o dom não está reservado a "algum privilegiado", mas é para todos, sendo que não foi acordado sobre a base daquilo que somos, mas sobre a base daquilo que é Cristo. O Espírito foi derramado para provar a Sua bondade e a Sua grandeza, não a nossa. Temos recebido o perdão porque Cristo foi crucificado: fomos revestidos do poder do Alto, porque Ele foi glorificado. Só pelo Seu mérito possuímos tudo. Suponhamos que um incrédulo expresse o desejo de ser salvo. Depois de lhe ter explicado o caminho da salvação, oramos com ele. Suponhamos agora que ele ore assim: "Senhor Jesus, eu acredito que Tu morreste por mim e que pode cancelar todos os meus pecados. Eu creio verdadeiramente que vás me perdoar".
Vocês têm a certeza de que aquele homem é salvo? Quando terão a certeza de que ele seja realmente nascido de novo? Não será quando ore: "Senhor, eu acredito que Tu desejas perdoar os meus pecados", mas quando diga: "Senhor, eu te agradeço porque Tu perdoaste os meus pecados. Tu morreste por mim; e por isso os meus pecados estão cancelados". Nós acreditamos que uma pessoa seja salva quando sua oração se transforma em louvor, quando cessa de pedir ao Senhor que a perdoe, e o louva porque Ele já o fez quando o sangue foi vertido.
Podem também orar da mesma forma durante anos, sem nunca realizar a experiência do Espírito Santo; porém, quando cessem de suplicar ao Senhor para que derrame o seu Espírito sobre vocês, louvando-O em vez disso com plena fé, tendo já recebido o Espírito, porque o Senhor Jesus já foi glorificado, descobrirão que o seu problema já foi resolvido. Deus seja louvado! Nenhum de seus filhos necessita desfalecer, nem esperar para que o Espírito lhe seja entregue. Jesus não deve ser feito Senhor; Ele já é o Senhor! Assim, não devo esperar para receber o Espírito: eu já o recebi! É toda uma questão de fé, que nos chega pela revelação. Assim que os nossos olhos são abertos para ver que o Espírito já foi derramado, porque Jesus já foi glorificado, a oração muda em nossos corações em louvor.
Todas as bênçãos espirituais nos são entregues sobre uma base bem determinada. Os dons de Deus nos são oferecidos gratuitamente, mas de nossa parte devemos responder a certas condições para receber aqueles dons. Existe um passo, na Palavra de Deus, que nos mostra claramente quais são as condições de nossa parte para poder receber o dom do Espírito Santo: "Pedro então lhes respondeu: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. Porque a promessa vos pertence a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar" (Atos 2:38-39).
Quatro coisas são mencionadas neste passo: o arrependimento, o batismo, o perdão e o Espírito Santo. As primeiras duas são condições, as últimas duas são dons. Quais são as condições impostas para termos o perdão dos pecados?. Segundo a Palavra são duas: o arrependimento e o batismo.
A primeira condição é o arrependimento, que significa uma mudança de pensamento. Antes pensava que pecar fosse agradável, mas agora mudei de pensamento a esse respeito; outras vezes achava que o mundo era atraente, mas agora compreendo mas claramente o que é; antes pensava que teria sido uma coisa piedosa me converter num crente, mas agora penso tudo o oposto. Houve uma época em que eu achava certas coisas deliciosas, agora as vejo com desgosto; havia outras que julgava de nenhum valor, agora as observo e as considero como as mais preciosas. Nenhuma vida pode ser realmente transformada, se não passa por uma semelhante conversão de pensamento.
A segunda condição é o batismo. O batismo é a expressão externa da fé interna. Assim que eu acredito sinceramente em meu coração que eu estou morto com Cristo, que fui sepultado e ressurreto com Ele, então peço o batismo. Por meio dele declaro publicamente aquilo em que creio com todo o meu coração. O batismo é a fé em ação.
O perdão dos pecados é, então, submetido a duas condições fixadas por Deus: o arrependimento e a fé expressada publicamente. Estão arrependidos? Deram testemunho de sua união com o Senhor? Receberam então a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo? Vocês dizem ter recebido somente o primeiro destes dons e não o segundo. Contudo, amigo meu, Deus ofereceu dois dons se você cumpriu com estas duas condições. Por que você pegou um só? O que você faz com o segundo?
Supunham que eu entre numa livraria e que escolha um livro em dois volumes pelo preço de R$ 500, que pague o preço inteiro, mas saia da loja com um volume só, deixando o segundo sobre o balcão. Reparando na distração, o que eu deveria fazer, segundo vocês? Deveria voltar à livraria para pegar o volume que completa a obra sem minimamente pensar em pagar o que eu já paguei. Explicaria simplesmente ao lojista de ter já pago os dois volumes e lhe pediria para me entregar o segundo volume; assim, sairia feliz da loja com meu livro debaixo do braço, sem ter pago nenhum suplemento. Nem fariam também vocês o mesmo numa situação análoga?
 Mas vocês estão nessa mesma condição. Se já cumpriram as condições, têm o direito a receber os dois dons e não somente um. Vocês já retiraram o primeiro, por que não pegam em seguida também o outro? Digam ao Senhor: "Senhor, eu me submeti às condições necessárias para receber a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo, mas, em minha ignorância, somente peguei o perdão dos pecados. Agora venho a Ti para receber o dom do Teu Santo Espírito e te agradeço e te louvo por isso".

A DIFERENÇA DA EXPERIÊNCIA
Talvez vocês se perguntem: "Como saberei que o Espírito Santo desceu sobre mim?" Eu não posso dizer como vocês saberão. A Palavra de Deus não nos descreve a sensação e a emoção que experimentaram os discípulos naquele momento, no dia de Pentecoste. Nós não sabemos exatamente o que sentiram, mas sabemos que seus sentimentos e seu comportamento foram uma coisa fora do comum, porque quem os viu disse que estavam bêbados. Quando o Espírito Santo desce sobre os filhos de Deus, acontecem coisas que o mundo não sabe explicar-se. Podem ser manifestações sobrenaturais, ainda que não sejam mas que um sentimento perturbador da presença de Deus. Nós não podemos, nem devemos nunca descrever as formas particulares dos fenômenos que acompanham a experiência, mas uma coisa é verdade: que todos aqueles sobre quem desce o Espírito Santo, o sentem infalivelmente.
Enquanto o Espírito Santo descia sobre os discípulos em Pentecoste, houve alguma coisa extraordinária na sua conduta, e Pedro deu uma prova àqueles que estavam presentes com uma poderosa explicação extraída da Palavra de Deus. Eis aqui, em substância, o que ele disse: "Assim que o Espírito Santo desce sobre os crentes, alguns profetizam, outros têm sonhos, outros, visões. Isto é o que Deus declarou por boca do profeta Joel". Mas Pedro profetizou? Em realidade não no senso que entendia Joel. Os cento e vinte profetizaram e tiveram visões? Isto não foi dito. Tiveram sonhos? Como poderiam tê-los quando estavam todos acordados? O que queria dizer então Pedro citando um parágrafo que parece ter pouco a ver com respeito ao advento? No fragmento citado (Joel 2:28-29) se diz que a efusão do Espírito será acompanhada de profecias, sonhos e visões, enquanto estas demonstrações parecem faltar no dia de Pentecoste.
Por outra parte, a profecia de Joel não fala de "um som, como de um vento veemente e impetuoso" nem de "línguas repartidas, como que de fogo", como sinais que acompanhassem a efusão do Espírito Santo; contudo, estas coisas se manifestaram "na sala de cima". E onde se menciona, no profeta Joel, o falar em línguas? Ainda assim, em Pentecoste, o fizeram.
O que queria dizer então Pedro? Imaginemos enquanto cita a Palavra de Deus para provar que a experiência do Pentecoste é a efusão do Espírito anunciado por Joel, enquanto nem um único signo visível dos mencionados pelo profeta foi manifestado. O que o livro menciona os discípulos não o experimentaram e o que eles experimentaram o livro não o menciona! A citação feita no discurso de Pedro parece desmentir sua demonstração antes que confirmá-la. Qual é a explicação deste mistério?
Lembremos que Pedro mesmo falava sob o controle do Espírito Santo. O livro de Atos dos Apóstolos foi escrito sob a inspiração do Espírito Santo e nem uma única palavra foi escrita ao acaso. Na existe nenhum erro, mas uma harmonia perfeita. Notem atentamente que Pedro não disse: "O que vocês vêem e ouvem é a mostra daquilo que foi dito pelo profeta Joel" (At 2:16). Não se trata do cumprimento, mas de uma experiência da mesma ordem. "Isto é o que foi dito" quer dizer: "o que vocês vêem e ouvem é da mesma ordem do que foi predito". Quando se trata de um cumprimento, cada experiência se repete e a profecia é profecia, os sonhos são sonhos, as visões são visões; mas quando Pedro diz "Isto é o que foi dito", não significa que aquilo que foi anunciado se repita exatamente igual agora, mas que a experiência atual é da mesma ordem à da profecia antiga. "Isto" é como "aquilo"; "isto" é o equivalente de "aquilo"; "isto" é "aquilo". O que fica em evidência pelo Espírito Santo por meio de Pedro é a diversidade das experiências. Os signos externos podem ser inumeráveis e diversos e devemos admitir que, talvez, sejam estranhos; mas o Espírito é Um, e é o Senhor (1 Coríntios 12:4-6).
Qual foi a experiência de R. A. Torrey quando o Espírito Santo desceu sobre ele, depois de anos de ministério? Deixemos que ele mesmo o diga em suas próprias palavras:
"Lembro perfeitamente o lugar onde estava ajoelhado em meu escritório... Era um momento muito tranqüilo, um dos momentos de maior calma que eu tenha conhecido... Então Deus me disse, simplesmente, não de forma audível, mas dentro de meu coração: o Espírito está em você. Agora vá a predicar. Já o tinha dito em 1 João 5:13-14, mas então não conhecia bem a minha Bíblia como a conheço agora e Deus teve piedade da minha ignorância e falou diretamente a minha alma... Fui a predicar e depois daquele dia, até hoje, fui um servo novo... Algum tempo depois desta experiência (não me lembro bem de quando), enquanto eu estava sentado em meu quarto... improvisamente... comecei a gritar (não estou habituado a semelhantes manifestações e não tenho um temperamento barulhento), mas gritei como o mais entusiasta dos metodistas: 'Glória a Deus, glória a Deus, glória a Deus!', sem poder parar... Mas não foi aquele o momento em que fui imerso no Espírito Santo. Fui imerso no Espírito Santo no instante em que o recebi com a simples fé na Palavra de Deus" [8].
As manifestações externas, no caso de Torrey, não foram as mesmas descritas por Joel e por Pedro, mas "isto é aquilo". Não é uma imitação, ainda assim é a mesma coisa.
E o que sentiu D. L. Moody, como se comportou quando o Espírito Santo desceu sobre ele?
"Eu gritava sem repouso a Deus para que me enriquecesse com o Seu Espírito. Então, um dia, em Nova Iorque —que dia!—, não posso descrevê-lo e falo disso raramente; é uma experiência quase demasiado sagrada para falar dela. Paulo teve uma experiência da qual não falou durante quatorze anos. Posso somente dizer que Deus se revelou a mim, e eu tive uma semelhante consciência de Seu amor que tive de pedi-Lhe de deter a Sua mão. Continuei a predicar. Os sermões não eram diferentes, não apresentavam novas verdades; porém centenas de pessoas se convertiam. Eu não gostaria de voltar aonde estava antes de ter tido esta experiência abençoada, ainda que me oferecessem o mundo inteiro —não seria senão um minúsculo peso sobre a balança" [9].
As manifestações externas que acompanharam a experiência de Moody não se correspondem exatamente com a descrição de Joel ou com a de Pedro ou que a de Torrey, mas quem poderia duvidar que "esta" experiência de Moody não foi senão o mesmo que "aquela" experimentada pelos discípulos em Pentecoste? Não foi a mesma manifestação, mas a essência a certamente a mesma.
E qual foi a experiência do grande Charles Finney, quando o poder do Espírito Santo desceu sobre ele?
"Recebi um poderoso batismo do Espírito Santo, sem nenhuma particular espera, sem ter havido antes a mínima idéia que uma tal coisa fosse para mim, sem a lembrança de ter jamais ouvido alguém falar disso sobre a terra; o Espírito Santo desceu sobre mim de tal forma que me pareceu que penetrou o corpo e a alma. Nenhuma palavra poderia expressar o amor maravilhoso que se espalhou em meu coração. Chorei de gozo e de amor" [10].
A experiência de Finney não foi certamente uma reprodução do Pentecoste, nem a experiência de Torrey, nem a de Moody; mas "esta" certamente foi "aquela".
 Conquanto o Espírito Santo foi derramado sobre os filhos de Deus, as suas experiências são muitos diferentes umas das outras. Alguns recebem uma nova visão; outros conhecem uma nova liberdade para conquistar as almas; outros proclamam a Palavra de Deus com nova energia, outros ainda são cheios de gozo celestial ou de entusiasmo desbordante. "Isto", e "isto" e "isto"... é "aquilo"! louvemos o Senhor por cada nova experiência que está em relação com a exaltação de Cristo, da qual se possa verdadeiramente dizer que "isto" é uma evidência de "aquilo". Não há nada de estereotipado nas vias de Deus com respeito a seus filhos. Não devemos, então, com as nossas prevenções e preconceitos, encerrar dentro de um compartimento fechado a obra do Espírito, tanto em nossas vidas como nas vidas dos outros. Isto se aplica também àqueles que exigem particulares manifestações do Espírito, como o "falar em línguas" como prova da vinda do Espírito sobre eles, e àqueles que negam a existência de qualquer manifestação. Devemos deixar a Deus a liberdade de agir como Ele quer, e de dar a expressão que deseja às obras que cumpre. Ele é o Senhor, portanto não está em nós Lhe impormos a nossa vontade.
Alegremo-nos que Jesus está no Trono e louvemo-Lo porque, desde o momento de sua glorificação, o Espírito foi derramado sobre todos nós. Quando o contemplamos lá encima, e aceitamos a realidade divina em toda a sua simplicidade de fé, O reconheceremos com tal segurança em nossos corações que ousaremos proclamar com confiança: "isto" é "aquilo".

A PERMANÊNCIA DO ESPÍRITO EM NÓS
Nos deteremos, agora, no segundo aspecto do dom do Espírito Santo que, como veremos no próximo capítulo, é mais particularmente o tema de Romanos 8. É do que falamos, do Espírito que permanece em nós. "Se é que o Espírito de Deus habita em vós..." (Rm 8:9). "Se o Espírito daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós..." (Rm 8:11).
No que diz respeito à efusão do Espírito, tanto como no que concerne à presença do Espírito em nós, se queremos conhecer na prática o que é nosso de fato, necessitamos, antes que nada, da revelação divina.
Quando vemos, objetivamente, Cristo como o Senhor glorioso —ou seja, como elevado sobre o trono do céu—, experimentamos o poder do Espírito sobre nós. Quando vemos a Cristo nosso Senhor, subjetivamente —ou seja, como Senhor real de nossa vida—, conhecemos o poder do Espírito sobre nós. O remédio oferecido por Paulo aos crentes de Corinto contra a debilidade espiritual era a revelação do Espírito que permanece neles. É importante observar que os crentes de Corinto estavam preocupados com os sinais visíveis das efusões do Espírito Santo, e faziam grande caso às "línguas" e aos milagres, enquanto ao mesmo tempo a sua conduta estava cheia de contradições e constituía uma ofensa ao nome do Senhor. Eles tinham sem dúvida recebido o Espírito Santo, mas não tinham conquistado a maturidade espiritual; e o remédio que Deus oferecia a eles para esta carência é exatamente o mesmo que hoje oferece à sua Igreja para o mesmo inconveniente.
Em sua carta Paulo escrevia: "Não sabeis vós que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?" (1 Coríntios 3:16). Para outros crentes ele pedia a seus corações fossem iluminados "...para que saibais..." (Efésios 1:18). O conhecimento dos fatos divinos era necessário aos crentes de então, e não o é menos para os crentes de hoje. Temos necessidade que os olhos de nossa inteligência se abram, a fim que saibamos que Deus mesmo, com Seu Espírito Santo, veio a morar em nossos corações. Deus, então, está presente neles por meio do Espírito, e Cristo não está menos presente. Assim, se o Espírito Santo habita em nossos corações, também o Pai e o Filho habitam. Esta não é uma simples teoria ou uma doutrina, é uma preciosa, abençoada realidade. Talvez agora tenhamos compreendido que o Espírito mora realmente em nossos corações, mas sabemos que Ele é uma pessoa? Temos entendido que possuir o Espírito em nós significa ter em nós o Deus vivo?
Para muitos crentes o Espírito Santo é completamente irreal. Eles o consideram como uma simples influência, boa sem dúvida, mas nada mais que uma influência. Em seu pensamento confundem mais ou menos a consciência com o Espírito, como "alguma coisa" que os adverte e repreende quando tem agido errado, e que se esforça em mostrá-lhes como podem ser bons. A dificuldade para os crentes de Corinto não consistia no fato que o Espírito não habitasse neles, mas em não perceber a Sua presença. Assim, não compreendiam a grandeza de Aquele que tinha vindo morar em seus corações; por isso Paulo escreveu a eles: "Não sabeis vós que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?". Sim, aqui estava o remédio contra a sua falta de espiritualidade: simplesmente "saber" quem era Aquele que habitava neles.

O TESOURO NO VASO DE BARRO
Sabem, meus queridos amigos, que o Espírito que mora em vocês é Deus mesmo? Oh, se os nossos olhos se abrissem para ver a grandeza do dom de Deus! Oh, se pudéssemos compreender a riqueza dos recursos escondidos em nossos corações! Eu poderia gritar de júbilo diante do pensamento que "O Espírito que habita em mim não é uma simples influência, mas uma pessoa viva; é Deus mesmo! O Deus infinito está em meu coração!". Eu me sinto incapaz de fazê-lhes compreender a alegria gloriosa deste descobrimento, que o Espírito Santo que mora em meu coração é uma pessoa. Posso somente repetir: "É uma pessoa!" Oh, amigos meus, gostaria de dizer cem vezes: "O Espírito de Deus que está em mim é uma pessoa! Eu sou somente um vaso de barro, mas levo um tesouro inestimável: o Senhor da glória! Todas as penas e os tormentos dos filhos de Deus cessariam se seus olhos se abrissem para ver a grandeza do tesouro escondido em seus corações. Sabem que em seu coração estão todos os recursos necessários para responder às exigências de todas as circunstâncias nas quais podem se encontrar? Sabem que é suficiente poder para remover a cidade onde moram? Sabem que é suficiente poder para incendiar o universo? Deixem-me dizê-lo mais uma vez —e o digo com o respeito mais profundo—: vocês nasceram de novo para o Espírito de Deus, levam a Deus em seu coração!"
Ainda todas as leviandades dos filhos de Deus cairiam se eles compreendessem a grandeza do tesouro que foi colocado neles. Se vocês têm somente R$ 2 no bolso, podem caminhar alegremente pela rua e conversar com o coração ligeiro. De fato, não lhes importaria perder seu dinheiro, porque tem bem pouco valor. Mas se levam R$ 100.000, o seu comportamento será completamente diferente, porque a situação será muito diferente. Estarão muito contentes, mas não passearão distraidamente pela rua; de tanto em tanto deixarão deslizar sua mão sobre o vosso tesouro para assegurar-se que existe sempre, e prosseguirão com satisfação no caminho.
Nos tempos do Antigo Testamento, existiam centenas de tendas no campo de Israel, mas uma dessas era diferente das outras. Dentro das tendas comuns cada um podia fazer o que desejava —comer ou jejuar, trabalhar ou repousar, ser felizes ou estar tristes, ser barulhentos ou silenciosos-. Mas a outra tenda inspirava reverência e temor. Os filhos de Israel podiam entrar nas tendas comuns ou sair delas, falando barulhentamente e rindo com alegria, mas quando se aproximavam daquela particular tenda, instintivamente caminhavam com respeito, e assim que se achavam diante dela abaixavam a testa num silencio solene. Ninguém podia tocá-la impunemente. Se um homem ou um animal ousavam fazê-lo, a morte era a punição segura. O que havia de particular naquela tenda? Ela era o templo do Deus vivo.
A tenda em si mesma não tinha nada de extraordinário, estava construída exteriormente com material ordinário como as outras, mas o Deus Altíssimo a tinha escolhido para fazer sua morada.
Vocês compreendem o que aconteceu no momento da nossa conversão? Deus entrou em nosso coração para fazer seu templo.
No tempo de Salomão Deus habitava num templo feito de pedra; hoje Ele mora num templo formado de crentes vivos. Quando nos persuadamos verdadeiramente que Deus tem feito do nosso coração a sua habitação, qual sentimento de profunda reverência encherá a nossa vida! Todas as leviandades, todas as frivolidades desaparecerão assim como toda busca de satisfação pessoal, quando saibamos que somos o templo de Deus e que seu Espírito mora em nós. Estão convencidos que para onde vão, sempre, levam com vocês o Espírito Santo de Deus? Não levam somente a Bíblia, e nem um rico ensinamento sobre Deus, mas Deus mesmo.
A razão pela qual muitos crentes não conhecem o poder do Espírito em suas vidas, ainda que Ele more realmente em seus corações, é que são desrespeitosos. Desrespeitam porque seus olhos não foram ainda abertos para constatar a sua presença. A realidade existe, mas eles não a vêem. Como é que certos crentes vivem uma vida de vitória, enquanto outros conhecem somente derrotas? A definição não reside no fato da presença ou da ausência do Espírito (porque Ele habita no coração de cada filho de Deus), mas no fato que os primeiros reconhecem possuí-Lo e os outros, não. A revelação explícita do fato que o Espírito habita em seus corações pode revolucionar a vida de cada crente.

A SOBERANIA ABSOLUTA DE CRISTO
"Ou não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que habita em vós, o qual possuís da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço; glorificai pois a Deus no vosso corpo" (1 Coríntios 6:19-20).
Estes versículos nos conduzem agora um passo adiante, porque ao nosso conhecimento de sermos a morada de Deus, deve necessariamente seguir o nosso abandono total nEle. Quando vemos que somos o templo de Deus, reconhecemos imediatamente que já não pertencemos mais a nós mesmos. A consagração seguirá à revelação. A diferença entre os crentes vitoriosos e aqueles que ficam na derrota não é devida ao fato que os primeiros têm o Espírito e ou outros não, mas ao fato que os primeiros sabem que Ele habita neles enquanto os outros ainda o ignoram: em conseqüência, os uns reconhecem a Deus seu direito, ao passo que os segundos se sentem ainda donos de si mesmos.
A revelação é o primeiro passo rumo à santidade, e a consagração é o segundo. Deve chegar um dia em nossa vida tão preciso quanto o dia de nossa conversão, no qual abandonemos cada direito sobre nós mesmos para submeter-nos à soberania absoluta de Jesus Cristo. Deus pode provar a realidade de nossa consagração com manifestações práticas mas, aconteça isso ou não, dever haver um dia em que, sem reservas, abandonemos a Ele tudo: nós mesmos, a nossa família, os nossos bens, os nossos assuntos e o nosso tempo. Tudo o que nós somos, tudo o que temos, é agora dEle, sem reservas, inteiramente à sua disposição. Daquele dia não somos mais donos de nós mesmos, mas somente mordomos, administradores. Até que a soberania de Jesus Cristo não seja estabelecida em nosso coração, o Espírito não pode agir eficazmente em nós. Não pode dirigir a nossa vida até que não tenhamos confiado em suas mãos todo controle sobre ela. Se não lhe entregamos plena autoridade sobre nossa vida, Ele pode estar presente, mas sem poder. A ação do Espírito está obstaculizada. Vivemos para o Senhor ou para nós mesmos? Esta pergunta é talvez demasiado genérica; permitam-me então, ser mais preciso. Existe alguma coisa que Deus vos pede e que vocês Lhe rejeitam? Há algum ponto de atrito entre vocês e Deus? Somente quando cada contraste seja eliminado e o Espírito Santo tenha recebido plena liberdade de ação, Ele poderá reproduzir a vida de Cristo em cada crente.
Um amigo americano, que chamaremos Paulo e que agora está com o Senhor, acariciava desde a sua juventude o sonho de ser chamado, um dia, "doutor" Paulo. Muito jovem ainda, sonhava com o momento de entrar na Universidade e imaginava a si mesmo, primeiro estudante e depois conseguindo se laurear em filosofia. Finalmente teria chegado o dia em que todos o teriam saudado como "doutor Paulo".
O Senhor o salvou e o chamou a predicar o Evangelho e muito rapidamente foi pastor de uma grande igreja. Contemporaneamente tinha terminado seus estudos no primeiro nível e se preparava para se doutorar mas, apesar dos brilhantes resultados obtidos nos estudos e o sucesso que tinha em seu ministério, não estava satisfeito. Ele era um crente, mas a sua vida não se parecia com a de Cristo; tinha o Espírito de Deus nele, mas não gozava de sua presença nem experimentava seu poder. Dizia a si mesmo: "Sou predicador do Evangelho e pastor de uma Igreja. Recomendo aos meus ouvintes amar a Palavra de Deus, mas eu mesmo não a amo realmente. Os exorto a orar mas eu mesmo não encontro prazer em orar. Os exorto a viver uma vida santa, mas a minha vida não é santa. Os aviso contra as tentações e o amor pelo mundo, mas ainda evitando-o exteriormente existe, no fundo de meu coração, um desejo muito forte por isso". Neste estado de ânimo ele gritou ao Senhor para conduzi-lo a conhecer o poder do Espírito que morava nele, mas embora orasse por meses não teve nenhuma resposta. Então jejuou e suplicou ao Senhor que lhe mostrasse se existia algum obstáculo em sua vida. Esta vez a resposta não demorou e foi a seguinte: "Eu desejo que você conheça o poder de meu Espírito, mas seu coração está apegado alguma coisa que eu não gosto. Abandonou-se a mim, mas não completamente; você reteve uma coisa para você e acaricia ainda a ambição de ser 'doutor'". Talvez nem vocês, nem eu atribuiríamos demasiada importância ao fato de sermos chamados "doutor Paulo" antes que "senhor Paulo", mas para ele representava a vida mesma.
O tinha sonhado desde a infância e tinha estudado por isso durante toda a juventude, com grande custo e esforço, e agora quase tinha alcançado, porque faltavam menos de dois meses para se doutorar. Ele se pus, então, a discutir com o Senhor: "É um inconveniente para mim ser 'doutor em filosofia'? Não haverá mais glória para Teu nome se em vez de senhor Paulo existe um doutor Paulo a predicar o Evangelho?". Porém Deus não muda de opinião e todos os argumentos do senhor Paulo não podiam modificar sua decisão. Todas as vezes que orava sobre este assunto recebia a mesma resposta. Quando viu que todas as discussões eram vãs, recorreu a uma espécie de compromisso com o Senhor. Prometeu servi-lo indo aqui e lá, fazer isto e aquilo, se Ele lhe concedesse somente se tornar doutor; mas o Senhor também não aceitou isso. E durante todo este tempo o senhor Paulo tinha uma sede sempre crescente da plenitude do Espírito. Este estado de coisas continuou até o dia precedente ao último exame.
Era uma sábado e o senhor Paulo dispunha-se a preparar seu sermão. Apesar do seu empenho não tinha nenhuma inspiração. Estava a ponto de alcançar o objetivo de sua vida, mas Deus lhe mostrou claramente que devia escolher entre o poder que teria podido dar-lhe o título de doutor e aquele que teria podido dar-lhe o Espírito de Deus. aquela noite se rendeu. "Senhor", disse, "eu estou pronto a ser simplesmente Paulo pelo resto de minha vida, mas necessário conhecer o poder de teu Espírito em minha vida". Levantou-se do oratório e escreveu uma carta aos seus examinadores, pedindo ser dispensado do exame da seguinte segunda-feira, explicando o motivo. Depois deitou dormir muito feliz, mas sem ter consciência de ter realizado uma experiência singular. A manhã depois disse à assembléia que, pela primeira vez depois de seis anos de ministério, não tinha um sermão para predicar e explicou a causa. O Senhor abençoou aquele testemunho público mais abundantemente que todos os seus sermões preparados com cuidado e daquele momento se serviu dele de uma forma completamente nova. Ao conhecer a separação completa do mundo não já como uma coisa externa, mas como uma profunda realidade interna, o gozo da presença e do poder do Espírito converteram-se em sua experiência cotidiana.
Deus nos pede para regular as controvérsias que temos com Ele. Para o senhor Paulo tratava-se de uma forte ambição, mas para nós pode ser alguma coisa muito diferente. Geralmente o abandono absoluto de nós mesmos ao Senhor depende de um único ponto particular, e Deus nos pede justamente aquela coisa. Ele a quer porque deve possuir-nos completamente. Fique muito impressionado com a autobiografia que escreveu um grande chefe político: "Eu não desejo nada para mim mesmo, desejo tudo para o meu país". Se um homem pode chegar a desejar que todo seja para seu país e nada para si mesmo, não podemos nós dizer ao nosso Deus: "Senhor, eu não quero nada para mim, mas tudo para Ti. Eu quero aquilo que Tu desejas, e não quero nada fora de tua vontade". Até que não assumamos o nosso lugar de servos, Ele não poder tomar seu lugar de Senhor. Ele não nos chama para consagrar-nos a Sua causa, mas nos pede que nos abandonemos sem condições à Sua vontade. Estamos prontos para fazer isto?
Um outro amigo meu, como o senhor Paulo, tinha uma desarmonia com o Senhor. Antes de sua conversão tinha se apaixonado por uma jovem, e desde o momento em que foi salvo tentou conduzi-la ao Senhor que ele amava, mas ela não quis saber de coisas espirituais. O Senhor mostrou ao meu amigo que a relação com esta jovem não era boa e devia necessariamente acabar, mas ele estava profundamente apaixonado e quis que isso acontecesse, ainda que continuasse a servir o Senhor e a conduzir almas a Ele. Entretanto tornou-se sempre mais consciente e viva nele a necessidade de santidade, e este sentimento começou a marcar para ele o início de dias negros. Ele pedia a plenitude do Espírito para ser capaz de viver uma vida santa, mas parecia que o Senhor ignorasse continuamente seu pedido.
Uma manhã foi chamado a predicar numa outra cidade e seu tema foi o versículo 25 do Salmo 73: "A quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti". Quando ele voltou foi a uma reunião de oração, no curso da qual, sem saber, naturalmente, que ele tinha pregado esse mesmo dia sobre o mesmo versículo, uma irmã leu o versículo, e acabou fazendo esta pergunta: "Podemos nós verdadeiramente dizer: "e na terra não há quem eu deseje além de ti?". Havia uma força nestas palavras que foram diretamente ao seu coração, e ele deveu confessar de não poder dizer, com total sinceridade, de não desejar sobre a terra nem no céu outros senão o Senhor. Compreendeu imediatamente que, para ele, tudo dependia da sua obediência à renúncia da jovem que amava.
Para outros, talvez, uma renúncia similar não teria sido difícil, porém para ele foi muito duro, ela representava tudo para ele. Começou, então, a discutir com o Senhor: "Senhor, irei ao Tibet a trabalhar para Ti, se me permites casar com aquela jovem". Mas o Senhor pareceu importar-se muito mais de sua relação com aquela jovem do que com sua partida ao Tibet. A diferença prolongou-se por muitos meses e, como o rapaz orava novamente pela plenitude do Espírito, o Senhor colocou novamente seu dedo na chaga. Porém um dia o Senhor triunfou, e o jovem, alçando os olhos a Ele, disse: "Senhor, eu posso agora verdadeiramente dizer: "na terra não há quem eu deseje além de ti". Este foi para ele o início de uma nova vida.
Existe uma grande diferença entre um pecador perdoado e um pecador impenitente, e existe uma grande diferença entre um crente consagrado e um crente indiferente. Queira o Senhor conduzir a cada um de nós a um pleno reconhecimento de sua senhoria. Se nos abandonamos completam a Ele e pedimos o poder do Espírito que habita em nós, podemos simplesmente olhar para cima e agradecer o Senhor por aquilo que já tem cumprido. Podemos agradecê-Lhe com confiança porque a glória de Deus já encheu seu templo. "Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus?" (1 Coríntios 6:19).


CAPÍTULO 9 – O SIGNIFICADO E O VALOR DO SÉTIMO CAPÍTULO
DA CARTA AOS ROMANOS

Devemos agora voltar à carta aos Romanos. Nos detivemos no fim do capítulo 6 para considerar dois temas ligados àquele estudo, ou seja, o desígnio eterno de Deus, que é a razão e o objetivo de nosso caminho com Ele, e o Espírito Santo em quem achamos a força e os recursos necessários para perseguir este fim. Chegamos agora ao sétimo capítulo, um capítulo que muitos consideram quase supérfluo. Talvez seria assim, se os crentes tivessem compreendido que a antiga criação foi realmente colocada de lado pela Cruz de Cristo, e que uma nova criação completamente nova foi introduzida mediante a sua ressurreição. Se tivéssemos chegado ao ponto de "saber" realmente isto, de "reconhecer" isto, e de "apresentar nós mesmos" sobre este fundamento, então, talvez não teríamos necessidade do sétimo capítulo de Romanos
Outros sentiram que este capítulo não está em seu lugar. O teriam colocado entre o quinto e o sexto. Depois Del capítulo 6 tudo é tão perfeito, tão claro, tão límpido; e então este derrubamento e este grito: "Miserável homem que eu sou!". Pode se ver uma virada pior que essa? Porém, alguns pensam que Paulo descreve aqui a sua experiência precedente à conversão, e o seu insucesso em observar as leis do bom israelita. Precisamos admitir efetivamente que algumas das coisas aqui descritas não entram na experiência "cristã", e ainda muitos cristãos têm estas tristes experiências. Qual é, então, o ensino deste capítulo?
O capítulo 6 nos fala da liberação do pecado. O capítulo 7 trata da liberação da lei. No capítulo 6, Paulo nos ensina como podemos ser libertos do pecado, e concluímos que é tudo de que necessitamos. O capítulo 7 nos ensina que a liberação do pecado não é tudo, e que temos também necessidade de conhecer a liberação da lei. Se não formos completamente libertos da lei, não poderemos nunca conhecer a plena liberação do pecado. Mas qual é a diferença entre a liberdade do pecado e a liberdade da lei? Nós compreendemos bem o valor da primeira, mas nem sempre compreendemos qual é a necessidade da segunda. Para entender isto devemos, antes que nada, perguntar-nos o que é a lei e qual seja o seu valor especial para nós.

A CARNE E A DERROTA DO HOMEM
Romanos 7 é uma lição nova para aprender. É o descobrimento do fato que eu estou "na carne" (Rm 7:5), que eu "sou carnal" (Rm 7:14) e que "eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum" (Rm 7:18). Isto vai além das considerações do pecado, porque tem a ver também com o problema de agradar a Deus. Não se trata aqui do pecado sob as suas diversas formas, mas do homem em seu estado carnal. Este último inclui o outro, mas nos conduz também a um grau avançado porque nos faz conhecer que no domínio do pecado somos totalmente impotentes e que "os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8:8). Como chegamos, então, a este conhecimento? Por meio da lei.
Regressemos agora um instante sobre nossos passos para procurar poder descrever aquilo que, provavelmente, tenham experimentado muitos de nós. Muitos cristãos são verdadeiramente salvos, e apesar disso estão ainda amarrados às ligaduras do pecado.
Naturalmente não vivem continuamente sob o domínio do pecado, mas existem certos pecados particulares que os atacam de contínuo, e no final eles cedem sempre. Mas, um dia, ouvem a mensagem completa do Evangelho, compreendem que o Senhor Jesus não somente morreu para purificar-nos pó pecado, mas que quando morreu, incluiu todos nós pecadores em sua morte; assim não somente os nossos pecados foram cancelados, mas nós mesmos fomos crucificados. Seus olhos foram abertos, eles experimentaram ser crucificados com Cristo. Duas coisas vêm após esta revelação. Em primeiro lugar o pecador reconhece de estar morto e ter ressuscitado com seu Senhor; em segundo lugar, ouvindo o apelo que Deus lhe dirige, e reconhecendo de não ter mais direito algum sobre si mesmo, se apresenta a Deus como um morto que voltou viver. Este é o início de uma bela vida cristã plena de gratidão ao Senhor.
 Mas a seguir começa a pensar: "Eu morri com Cristo e ressuscitei com Ele, me dei a Ele para sempre. Agora devo fazer alguma coisa para Ele, porque Ele fez tudo por mim. Eu desejaria agradá-Lo e fazer a Sua vontade". Assim, depois do passo da consagração, ele tenta de conhecer a vontade do Senhor para obedecê-Lo. Então, faz um estranho descobrimento. Pensava de poder cumprir a vontade de Deus, porque acreditava que o amava, mas, pouco a pouco se persuade que não o ama sempre. Tenta, as vezes, uma clara resistência à vontade divina e, freqüentemente, quando se esforça para cumpri-la, se encontra na impossibilidade de fazê-lo. Começa então a duvidar de sua experiência. Se pergunta: "Será que verdadeiramente tive uma revelação? Sim. Percebi realmente? Sim. Me entreguei em verdade ao Senhor? Sim. Terei talvez renegado da minha consagração? Não. Então, de onde provém a dificuldade?" E, mais o homem tenta fazer a vontade de Deus, mais parece se distanciar. Acaba então por concluir que nunca amou verdadeiramente a vontade de Deus. Começará então a orar para ter o desejo e o poder de cumpri-la. Confessa a sua desobediência e promete não desobedecer mais. Mas, apenas volta se levantar, depois de ter orado, recai ainda uma vez; antes de chegar à vitória é consciente da derrota. Ele se diz então: "Talvez a minha última decisão não foi suficientemente firme. Esta vez desejo ser absolutamente forte". Tenta concentrar toda a sua força de vontade para alcançar a obediência, mas somente para achar uma maior derrota, a qual deverá seguir uma nova escolha. Ecoarão então em seu coração as palavras de Paulo: "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; com efeito o querer o bem está em mim, mas o efetuá-lo não está. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico" (Rm 7:18-19).

O QUE ENSINA A LEI
Muitos crentes se encontram de repente lançados na experiência de Romanos 7, sem compreender o motivo. Eles imaginam que Romanos 6 seja absolutamente suficiente. Porque o aceitaram, pensam que já não pode existir mais perigo de quedas, e a sua maior surpresa é a de encontrar-se na frente Romanos 7. Como se explica isto?
Acontece, principalmente, que um ponto está bem claro para nós, ou seja, que a morte com Cristo, como descrita em Romanos 6, é plenamente suficiente para responder a cada nossa necessidade. É a explicação desta morte, com todo aquilo que se segue no capítulo 6, que está agora incompleta em nós. Ignoramos ainda a verdade descrita no capítulo 7. De fato, este capítulo está destinado a explicar-nos e avivar em nós a declaração feita em Romanos 6:14: "o pecado não terá domínio sobre vós, porquanto não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça". Estamos em dificuldades porque não conhecemos bem ainda a liberação da lei. Qual é então o significado da lei? a graça significa que Deus faz alguma coisa para mim; a lei significa que eu faço alguma coisa para o Senhor. Deus tem exigências de santidade e de justiça às quais sou chamado a responder: esta é a lei. Ora, se a lei significa que Deus me pede para cumprir certas coisas, a liberação da lei significa que fui dispensado, porque proveu Ele mesmo. A lei é uma exigência de parte de Deus que eu devo cumprir; a liberação da lei significa que fui isento do cumprimento, porque, pela Sua graça, cumpriu Ele mesmo o que esperava de mim. Eu (ou seja, o homem "carnal" de Romanos 7:14) não necessito fazer nada para o Senhor: esta é a liberação da lei. A dificuldade de Romanos 7 consiste no fato que o homem com a sua natureza pecaminosa se esforça para fazer alguma coisa para o Senhor. Se procurarmos gostar a Deus por este meio, nos colocamos sob a lei, e a experiência de Romanos 7 se converte na nossa. Enquanto procuramos compreender isso, deve ficar bem claro, desde o princípio, que o erro não está na lei. Paulo diz: "a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" (Rm 7:12). Não há nada de mau na lei, mas existe alguma coisa decididamente malvada em mim. As exigências da lei são justas, mas o homem a quem é imposto o dever de cumpri-las é injusto. A dificuldade não reside no fato que as exigências da lei sejam injustas, mas no fato que eu sou incapaz de cumpri-las. Seria natural que o governo me impusesse uma taxa de R$ 50.000, mas seria injusto se eu tivesse somente R$ 50 para pagá-lo.
Eu sou um homem "vendido sob o pecado" (Rm 7:14). O pecado domina sobre mim. Em verdade, enquanto me deixa em paz posso parecer um homem bom. Mas quando me é pedido fazer alguma coisa, então a minha natureza de pecado se manifesta.
Suponhamos que tenham um servo doente e que ele fique simplesmente sentado sem fazer nada; a sua indisposição não será vista. Se não faz nada em todo o dia, será pouco útil, em verdade, mas não causará dano algum. Mas se vocês lhe pedem: "Vamos, não perca mais tempo, levante e faça algo", então as dificuldades começarão. Alçando-se, fará cair a cadeira, tropeçará num banquinho, quebrará um vaso precioso apenas o toque. Se não lhe pedem para fazer nada, a sua enfermidade não se manifestará; mas desde o momento em que vocês lhe dêem uma ordem, a sua indisposição será evidente. As ordens eram justas, mas o homem não estava em condições de executá-las. Estava doente tanto quando estava sentado como quando trabalhava, mas quando lhe foi pedido de servir foi revelado o seu estado de saúde.
Nós somos todos pecadores por natureza. Se Deus não nos pede nada, todo parece andar bem, mas apenas Ele exige alguma coisa de nós, é a ocasião para demonstrar a nossa miserável natureza. A lei deixa em evidência a nossa debilidade. Enquanto fico tranqüilo, pareço em perfeito estado, mas apenas se apresenta a exigência de cumprir alguma coisa, não existe em mim a possibilidade de fazê-lo. Uma lei santa e justa não pode ser respeitada e cumprida por um homem pecador. No momento em que esse homem deva observá-la escrupulosamente, se manifestará plenamente a sua incapacidade e seu estado de pecado.
Deus sabe quem eu sou; Ele sabe que da cabeça aos pés estou cheio de pecado; Ele sabe que sou a debilidade em pessoa, que não posso fazer nada. O problema é que eu não o sei. Admito, sim, que todos os homens são pecadores, e que, em conseqüência, também eu sou pecador, mas penso de não ser tão malvado quanto os outros. Deus nos deve conduzir ao ponto no qual possamos ver que somos profundamente fracos e impotentes. Podemos reconhecer isto sem acreditá-lo completamente; assim Deus deve fazer alguma coisa para nos convencer.
Sem a lei não teremos nunca conhecido a medida de nossa debilidade. Paulo chegou a compreendê-lo. Ele nos mostra claramente quando diz em Romanos 7:7: "eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás". Qualquer tenha sido a sua experiência a respeito dos outros mandamentos, foi o décimo (que traduzido literalmente significa: "Não desejarás") o que o fez conhecer a sua verdadeira natureza. Aqui ele percebeu a sua total incapacidade!
Mais nos esforçamos em observar a lei, mais a nossa debilidade se manifestará e afundaremos mais profundamente em Romanos 7, enquanto não fiquemos plenamente convencidos de nossa desastrosa debilidade. Deus sabia tudo isso, mas nós o ignorávamos, e por isso Ele deve conduzir-nos através de experiências dolorosas até que reconheçamos esta verdade. Devemos ter a prova incontestável de nossa debilidade.
Por isto Deus nos deu a lei. Assim podemos dizer, com respeito, que Deus não nos deu a lei para que a observemos, mas para que a transgredíssemos. Ele sabia bem e éramos incapazes de cumpri-la. Nós somos tão malvados que Ele não nos pede nenhum favor nem espera nenhum serviço. Nunca homem algum conseguiu agradar a Deus por meio Deus da lei. No Novo Testamento não está escrito de observar a lei, mas é dito que a lei foi dada para que houvesse transgressão. "Sobreveio, porém, a lei para que a ofensa abundasse" (Rm 5:20). A lei nos foi dada para fazer-nos conhecer que éramos transgressores! Sem dúvida alguma, eu sou um pecador em Adão, mas "eu não conheci o pecado senão pela lei... porquanto onde não há lei está morto o pecado... mas assim que veio o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri" (Rm 7:7-9). Por meio da lei se revela a nossa verdadeira natureza. Apesar de tudo, somos tão orgulhosos e nos cremos tão fortes que Deus deve fazer-nos atravessar uma prova para mostrar-nos quão fracos somos. Quando finalmente o percebemos, confessamos: "Eu sou um pecador da cabeça aos pés, e não posso próprio fazer nada por mim mesmo para gostar a Deus".
Não, a lei não foi entregue com a esperança que nós pudéssemos observá-la. Ela foi dada com a plena certeza que seria violada; e quando a transgredimos tão plenamente a ponto de ficarmos convencidos de nossa extrema miséria, a lei alcançou seu objetivo. Ela foi o nosso pedagogo (aio) para conduzir-nos a Cristo, a fim que Ele mesmo a cumprisse por nós. "A lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados" (Gálatas 3:24).

CRISTO, ATÉ A LEI
Vimos em Romanos 6 como Deus nos liberou do pecado; depois, em Romanos 7 como nos libera da lei. No cap 6, a liberação do pecado está explicada com a figura de um patrão e o ser escravo; no capítulo 7, a liberação da lei está mostrada com a figura de dois maridos e de uma única esposa.
A relação entre o pecado e o pecador é aquela do patrão e o escravo; a relação entre a lei e o pecador é aquela do marido e a mulher.
Consideremos, antes que nada, este texto: "Ou ignorais, irmãos (pois falo aos que conhecem a lei), que a lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo que ele vive? Porque a mulher casada está ligada pela lei a seu marido enquanto ele viver; mas, se ele morrer, ela está livre da lei do marido. De sorte que, enquanto viver o marido, será chamada adúltera, se for de outro homem; mas, se ele morrer, ela está livre da lei, e assim não será adúltera se for de outro marido. Assim também vós, meus irmãos, fostes mortos quanto à lei mediante o corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, àquele que ressurgiu dentre os mortos a fim de que demos fruto para Deus" (Rm 7:1-4).
Nesta figura que ilustra a nossa liberação da lei, há uma única mulher, enquanto há dois maridos. A esposa está numa posição muito difícil, porque não pode ser mulher senão de um só dos dois, e desgraçadamente está unida àquele menos agradável dos dois. Não nos enganemos, o homem ao qual ela está ligada é um homem bom e se aqui existe uma dificuldade, é porque o marido e a mulher não foram feitos o um para a outra. Ele é um homem muito meticuloso, correto no modo mais elevado; ela, ao contrário, é completamente desprezível. Nele tudo é definido e preciso, nela tudo é desordenado e abandonado. Ele deseja que todo esteja em seu lugar; ela deixa as coisas assim mesmo, onde caem. Como poderá haver harmonia numa tal casa?
E depois, o marido e tão exigente! Sempre reclama de alguma coisa à mulher. E ninguém pode dizer que esteja errado, porque como marido tem o direito de ser lei, tanto mais que suas reclamações são perfeitamente legítimas. Não existe nada de mau neste homem, não há nada de errado em suas exigências; mas o problema é que não tem a mulher justa para satisfazê-lo. São dois seres que não poderão se entender nunca: as suas naturezas são demasiadamente contrastantes. A pobre mulher encontra-se assim numa grande angústia. Ela é plenamente cônscia de continuamente cometer falhas; porém vivendo com semelhante marido, parece que todo o que ela faz esteja errado. Que esperanças há para ela? Se somente estivesse casada com outro homem, talvez todo iria melhor. Ele não seria menos exigente que este marido, mas saberia ajudá-la mais. Ela estaria feliz de desposá-lo, mas seu marido ainda está vivo. Como poderia fazer? Ela está "ligada pela lei a seu marido enquanto ele viver" e, a menos que ele morra, não pode legitimamente casar que o outro homem.
Esta figura não é minha, mas do apóstolo Paulo. O primeiro marido representa a lei, o segundo, Cristo; e nós somos a mulher. As exigências da lei são infinitas, mas não oferecem nenhuma ajuda para serem cumpridas. As exigências do Senhor Jesus são igualmente grandes, sim, e ainda maiores (Mateus 5:21-48), mas o que nos pede Ele mesmo o tem realizado em nós. A lei nos dá ordens e nos deixa incapazes de obedecê-las; Cristo nos dá ordens, mas Ele mesmo já cumpriu as suas prescrições.
Não devemos surpreender-nos se a mulher deseja liberar-se do primeiro marido para unir-se com este outro homem! A sua única esperança de liberação está na morte do primeiro marido; mas ele está firmemente apegado à vida. Não existe nenhuma possibilidade de que morra. "Até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido" (Mateus 5:18).
A lei existe para toda a eternidade. Mas se a lei não desaparecerá nunca, como posso eu estar unido a Cristo? Como posso desposar meu segundo marido, se o meu primeiro se recusa energicamente a morrer? Não há mais que uma saída. Se ele não quer morrer, posso morrer eu, e se eu morro a ligação do matrimônio será rompida. Este é exatamente o meio pelo qual Deus nos libera da lei. O ponto mais importante a notar em Romanos 7 é a passagem do versículo 3 ao versículo 4. Nos versículos 1 a 3 nos foi mostrado que o marido deve morrer, mas no versículo 4, em realidade vemos que é a mulher quem morre. A lei não acaba, sou eu que morro e pela morte sou liberado da lei. Entendamos bem, com claridade, que a lei não passará nunca. As exigências justas de Deus existem sempre e se eu vivo devo responder a estas exigências; mas se morro a lei perde os seus direitos sobre mim. Ela não pode me seguir além do túmulo.
Assim exatamente o mesmo princípio tem cumprido a nossa liberação da lei e a nossa liberação do pecado. Quando eu morri, o meu velho patrão, o pecado, continua a viver, mas o poder que tem sobre seu escravo chega até o túmulo e ali acaba. Pode me empurrar a fazer cem coisas enquanto eu tenho vida, mas quando estou morto me chama em vão. Agora estou livre de sua tirania. É a mesma coisa à respeito da lei. Enquanto a mulher vive está ligada ao marido, mas, pela sua morte, o vínculo do matrimônio é revogado, e ela é "liberada da lei do marido". A lei pode ainda ter as suas exigências, mas já não tem mais o poder de as impor a ela.
Agora surge a pergunta vital: "Como posso morrer?" É aqui si vê tudo o valor precioso da obra do nosso Senhor: "Assim também vós, meus irmãos, fostes mortos quanto à lei mediante o corpo de Cristo" (Rm 7:4). Quando Cristo morreu, seu corpo foi destruído, e como Deus nos colocou nEle, também eu fui destruído. Quando Ele foi crucificado, eu fui crucificado com Ele. Diante de Deus, a sua morte incluía a minha. Sobre o monte do Calvário isso foi cumprido de uma vez e para sempre. O marido da mulher é talvez muito forte e cheio de vida, mas se ela morre, não poderá mais lhe impor as suas exigências; elas não terão mais poder sobre ela. A morte a libertou de todos os direitos do marido. Nós estávamos no Senhor Jesus quando Ele morreu; sua morte, que incluiu a nossa, nos liberou para sempre da lei. Mas não é tudo. O nosso Senhor não ficou no sepulcro. No terceiro dia Ele ressuscitou; e como nós ainda estamos nEle, ressuscitamos também nós. O corpo do Senhor Jesus fala não somente de sua morte, mas de sua ressurreição, porque a sua ressurreição foi uma ressurreição corpórea. Assim, "pelo corpo de Cristo" nós estamos não somente "mortos para a lei", mas vivos para Deus.
Unindo-nos a Cristo, Deus não tinha só um objetivo negativo: tinha um gloriosamente positivo. "Assim também vós... fostes mortos quanto à lei... para pertencerdes a outro" (Rm 7:4). A morte dissolveu a ligação do primeiro matrimônio, de forma que a mulher, empurrada à desesperação pelas contínuas exigências do primeiro marido, que nunca teria alçado um dedo para ajudá-la, está finalmente livre para desposar este outro homem, que para cada coisa que lhe peça, dará a ela a força necessária para cumpri-la.
E qual será o resultado desta nova união? "A fim de que demos fruto para Deus" (Rm 7:1-4). No corpo de Cristo, esta mulher insensata e pecadora está morta, mas como ela se uniu a Ele em sua morte, está da mesma forma ligada a Ele em sua ressurreição, e no poder da vida ressurreta leva frutos a Deus. A vida ressuscitada do Senhor nela a capacita para responder em tudo o que a santidade de Deus exige da lei. A lei de Deus não foi anulada, antes bem é perfeitamente cumprida, porque o Senhor ressurreto vive agora sua vida na lei e a sua vida é sempre agradável ao Pai. O que acontece quando uma mulher se casa? Ela deixa de levar seu nome de nascimento e toma o de seu marido; e herda não somente o nome, mas também seus bens. Tudo aquilo que pertence a ele pertence igualmente a ela. A mesma coisa acontece quando nós nos unimos a Cristo; todo o que é dEle passa também a ser nosso e, com seus recursos infinitos a nossa disposição, seremos capazes de responder a todos seus pedidos.

O FIM DE NÓS MESMOS É O PRINCÍPIO DE DEUS EM NÓS
Depois de ter definido o aspecto doutrinal do problema, devemos agora chegar às aplicações práticas, detendo-nos ainda um pouco sobre a parte negativa das experiências, para conservar a parte positiva do próximo capítulo. O que significa, na vida de cada dia, sermos liberados da lei? Significa que, agora, eu não tenho mais nada a fazer para agradar a Deus, mas me esforçarei cada vez mais para agradecê-Lhe. "Que doutrina!", exclamarão vocês: "Que tremenda heresia! Não é mesmo isso o que você quer dizer!"
Lembremo-nos que se eu tento de agradar a Deus "na carne", me coloco imediatamente sob a lei. Eu transgredi a lei; a lei pronunciou a sentença de morte; a sentença teve a sua execução e agora, mediante a morte do meu "eu" carnal, fui liberado de todos os seus tentáculos. Existe ainda uma lei de Deus, e existe, agora, verdadeiramente, um "mandamento novo", que é infinitamente mais severo que aquele antigo, mas —Deus seja louvado!—, estas exigências estão satisfeitas porque Cristo as cumpriu; é Cristo quem produz em mim aquilo que é agradável a Deus. "(Eu) vim... (para) cumprir (a lei)". Estas foram suas palavras (Mateus 5:17).
É assim que Paulo, apoiando-se sobre a certeza da ressurreição, pode escrever: "Efetuai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade" (Filipenses 2:12-13).
"É Deus que opera em vós". Liberação da lei não significa para nada que sejamos dispensados do cumprimento da vontade de Deus. Isso não significa certamente que viveremos sem lei. Ao contrário! O que significa agora é que nós estamos livres do esforço de cumpri-la por nós mesmos. Plenamente convencidos da incapacidade de obedecê-la, cessamos todo esforço de agradar a Deus sobre a base do nosso velho homem. Chegados, finalmente, o ponto de desconfiar das nossas capacidades, colocamos toda a nossa confiança no Senhor, para que Ele manifeste a Sua vida ressurreta em nós.
 Permitam-me ilustrar isto com uma cena da realidade de meu país. Na China, certos carregadores conseguem levantar sacolas com pesos de 120 kg, outros chegam até 250 kg. Vem um homem que tem a força para levantar 120 kg, e se encontra diante de um peso de 250 kg. Ele sabe perfeitamente que não poderá levantá-lo, e se é esperto dirá: "Eu não posso nem sequer tentar". Mas a tentação de provar faz parte da natureza humana, assim, ainda sabendo de sua incapacidade, ele tenta de levantar aquele peso. Quando eu era um rapaz me divertia amiúde observando dez ou vinte destes homens enquanto se esforçavam para demonstrar entre eles a sua força, ainda sabendo de não poder superar o limite; acabavam por ceder passo aos mais fortes, os que tinham a capacidade necessária.
Também nós devemos abandonar o antes possível as nossas tentativas de fazer as coisas sozinhos, porque enquanto monopolizarmos o trabalho, não deixamos espaço para o Espírito Santo. Mas se dizemos: "Senhor, eu não posso fazer isto e confio em Ti, para que Tu o faças por mim", acharemos uma força superior à nossa que age por nós.
Em 1923 encontrei um célebre evangelista do Canadá. Num discurso, eu tinha falado alguma coisa sobre o tema de que estamos nos ocupando. Enquanto voltávamos juntos à sua casa, depois da reunião, ele observou: "É raro, em nossos dias, que alguém fale de Romanos 7; é bom que este argumento seja lembrado. O dia em que eu fui liberto da lei, foi como se para mim tivesse descido o céu na terra. Depois de anos de vida cristã, eu fazia ainda todos os meus esforços para agradar a Deus, mas mais tentava de fazê-lo, menos conseguia. Considerava a Deus como a pessoa mais exigente do universo e me sentia impotente para corresponder os seus mínimos requerimentos. Improvisamente, um dia, enquanto lia Romanos 7, se fez a luz no meu espírito e vi que, não somente eu estava livre do pecado, mas também da lei. Na minha maravilha, me levantei de um pulo que exclamei: "Senhor, então é verdade que Tu não exiges nada de mim? Então não preciso fazer nada para Ti!"
As exigências de Deus não mudaram, mas nós continuamos sempre na impossibilidade de satisfazê-las. Deus seja louvado! Ele é o legislador e aquele que obedece no meu coração. Ele que deu a lei e também Ele que a observa. Ele faz os pedidos, mas Ele mesmo os responde.
O meu amigo podia verdadeiramente pular e gritar de alegria, quando entendeu que não tinha mais nada a fazer, e todos aqueles que fazem este descobrimento experimentarão o mesmo alívio. Enquanto nos esforcemos para fazer alguma coisa, Deus não pode agir em nós. E justamente a causa dos nossos esforços que caímos e voltamos cair. Deus quer nos mostrar que não sabemos que não podemos fazer nada por nós mesmos, e até que o reconheçamos plenamente, os nossos desapontos e as nossas desilusões não cessarão.
Um irmão que tentava de chegar à vitória lutando, me fez, um dia, esta confissão: "Eu não sei por que sou tão fraco". Eu respondi: "O seu mal é que você é demasiado fraco para cumprir a vontade de Deus, mas não é bastante fraco para não tentar de fazê-la. Você não é ainda bastante débil. Quando seja reduzido a uma debilidade extrema, e seja persuadido de sua absoluta incapacidade, então Deus fará tudo". Nós todos precisamos de chegar no ponto de dizer finalmente: "Senhor, sou incapaz de fazer a mínima coisa para Ti, mas confio em Ti, para que Tu faças cada coisa em mim".
Me achava, um dia, na China, com uma vintena de outros irmãos, numa casa cuja instalação do banheiro era insuficiente; íamos então, cada manhã, a mergulhar no mar na praia vizinha. Um dia, um irmão, enquanto nadava, sofreu uma câimbra e eu o vi subitamente desaparecer sob as águas; fiz então um sinal a um outro irmão, hábil nadador, para que se precipitasse em sua ajuda. Mas, ante o meu grande estupor, ele não se mexeu. Comecei a me preocupar seriamente e lhe gritei: "Não vê que o homem está se afogando?", e os outros irmãos, angustiados como eu, gritavam também eles a todo volume. Mas o bom nadador não se mexia. Calmo e tranqüilo, ele estava imóvel com o ar de quem se recusa a fazer uma coisa desagradável. Entanto, a voz do pobre irmão que se afogava era cada vez mais fraca, e seus esforços diminuíam. Eu pensei, em meu coração: "Este homem não tem coração! Pode deixar se afogar um irmão sob seu nariz sem socorrê-lo!"
Mas, no momento em que o irmão desapareceu sob as ondas, em poucas e rápidas braçadas o destemido nadador aproximou-se dele e os dois estiveram pronto a salvo sobre a praia. Apenas tive a ocasião, declarei-lhe os meus sentimentos: "Nunca vi um crente que pensasse em si mesmo como você. Pense um pouco no sofrimento que você poderia ter evitado àquele irmão se tivesse pensado menos em você mesmo e mais nele". Mas o nadador sabia melhor que eu o que era preciso fazer. "Se eu tivesse me lançado antes", me disse, "ele teria se pendurado de mim, e os dois teríamos nos afogado. Um homem que se afoga pode ser salvo somente quando está completam exausto, e já não pode fazer esforços para se salvar a si mesmo".
Vocês percebem? Nós paramos de tentar fazer uma coisa, Deus a pega em sua mão. Ele compreende que estamos no extremo de nossos recursos e que não podemos fazer mais nada por nós mesmos. Deus condenou tudo aquilo que fazia parte da velha criação, e o encravou sobre a Cruz. A carne não presta para nada! Deus disse que é digna só de morte. Se acreditarmos nisto, verdadeiramente devemos confirmar a sentença de Deus, abandonando todo esforço de vontade para agradá-Lo. Porque cada tentativa nossa de cumprir com a Sua vontade é uma desmentida que opomos àquilo que Ele declarou com a Cruz; ou seja, que somos completamente impotentes para fazê-lo.
Guardando a lei pensamos de devê-la cumprir, mas devemos lembrar-nos que, por muito que a lei seja perfeitamente boa em si mesma, já não o é quando aplicada a pessoas que não podem observá-la. O "miserável" de Romanos 7 se esforçava para cumprir ele mesmo o mandamento da lei, e essa era a causa do seu tormento.
O repetido uso do pronome "eu" neste capítulo nos deve fazer compreender a causa da falha. "Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico" (Rm 7:19). Havia um erro fundamental de conceito no pensamento deste homem. Ele imaginava que Deus lhe pedisse de observar a lei, e então tentava naturalmente de fazê-lo. qual era o resultado? Longe de fazer o que era agradável a Deus, achou-se tentando cumprir o que lhe desagradava. Em seu próprio esforço para cumprir a vontade de Deus, fazia exatamente o contrário daquilo que sabia ser essa vontade.

GRAÇAS SEJAM DADAS A DEUS!
Romanos 6 se ocupa do "corpo do pecado", Romanos 7 do "corpo da morte" (Rm 6:6; 7:24). No capítulo 6 todo o argumento é o pecado, no capítulo 7, a morte. Que diferença existe entre o corpo do pecado e o corpo da morte? No que concerne ao pecado (ou seja tudo o que desgosta a Deus), eu tenho um corpo de pecado, vale dizer, um corpo apegado ativamente ao pecado. Mas no que concerne à lei de Deus (ou seja aquilo expressa a vontade de Deus), eu tenho um corpo de morte. Toda a minha atividade que tem a ver com o pecado faz do meu corpo um corpo de pecado; o meu falho no que diz respeito à vontade de Deus faz do meu corpo um corpo de morte. Pela minha natureza, aceito tudo aquilo que é mau, tudo aquilo que é mundano e de Satanás, e rejeito tudo aquilo que pertence à santidade, ao céu, a Deus. O que significa a morte? Poderemos compreendê-lo com a ajuda de um fragmento bem conhecido da primeira epístola aos Coríntios: "Por causa disto há entre vós muitos fracos e enfermos, e muitos que dormem" (1 Co 11:30). A morte é a debilidade chegada ao seu limite extremo: debilidade, enfermidade, morte. A morte significa debilidade absoluta: ela significa que são fracos a ponto de não poder ficar mais fracos. O fato que eu tenha um corpo de morte, no que diz respeito à vontade de Deus, significa que sou tão débil quando devo servi-Lo, tão profundamente débil, que tenho caído no abandono mais terrível. "Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?" se lamenta Paulo (Rm 7:24); e é bom quando um homem emite semelhante brado. Não há nada mais doce aos ouvidos do Senhor. Este é o grito mais espiritual e mais coerente com as Escrituras. Efetua-se somente no momento em que já não pode se fazer mais nada e renuncia, então, a tomar qualquer outra resolução. Até aquele momento, depois de cada fracasso, decidia de forma diferente, redobrando sempre a sua força de vontade. Até que descobre que todo esforço é em vão, e grita com desesperação: "Miserável de mim!" Como um homem que acorda sobressaltado com a casa em chamas, ele grita para receber ajuda, porque chegou a ponto de desesperar de si mesmo.
Desesperaram de vocês mesmos, ou ainda acham que consagrando mais tempo à leitura da Palavra de Deus e à oração serão melhores crentes? A leitura da Palavra de Deus e a oração são necessárias, não queremos diminuir seu valor, mas é um erro acreditar que por meio delas alcançaremos a vitória. Nosso socorro está nAquele que é o objeto de nossa leitura e de nossa oração. A nossa confiança deve ser colocada somente em Cristo. Graças a Deus "o homem miserável" não deplora simplesmente sua miséria; faz uma boa pergunta: "Quem me livrará?"
Quem? Até aqui ele esperou alguma coisa, agora ele coloca a sua esperança numa pessoa. Ate aqui tinha tentado por si mesmo a solução de seu problema; agora olha além dele mesmo para achar um salvador. Não confia mais em seus esforços pessoais; todas as suas esperanças estão agora depositadas em Outro. Como recebemos o perdão dos pecados? Foi pela leitura, pela oração, pelas esmolas ou por alguma outra coisa? Não, nos voltamos para a Cruz e acreditamos em tudo o que fez o Senhor Jesus. A liberação do pecado se converte em nossa segundo o mesmo princípio, e não acontece diferentemente no que concerne a agradar de Deus. Para receber o perdão olhamos a Cristo sobre a Cruz; para sermos liberados do pecado e para poder cumprir a vontade de Deus, olhamos o Cristo em nosso coração. O nosso perdão depende daquilo que Ele cumpriu para nós; a nossa liberação, de aquilo que Ele fará em nós. Mas no que diz respeito a estes benefícios, devemos nos apoiar inteiramente nEle sozinho. Desde o princípio até o fim, Ele é o único a fazer tudo.
Na época em que foi escrita a epístola aos Romanos, o castigo que era infligido a um assassino era particular e terrível. O cadáver da vítima era amarrado ao corpo vivo do matador, cabeça com cabeça, mãos com mãos, pés com pés, e o vivo ficava ligado ao morto até sua própria morte. O assassino podia ir aonde queria, mas para onde fosse levava o corpo de sua vítima. Podemos imaginar uma punição mais horrível? Ainda assim, esta é a imagem que Paulo utiliza. Ele se vê ligado a um corpo morto, o seu próprio "corpo de morte", do qual não pode se livrar. Em qualquer lugar que ele esteja está paralisado a causa deste horrível fardo. No fim já não pode mais suportá-lo e grita: "Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?". E então, um, relâmpago de luz, o grito de desespero se transforma num cântico de louvor. Achou a resposta para seu problema. "Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor!" (Rm 7:25). Sabemos que a justificação nos chega pelo Senhor Jesus, que não nos pede nenhuma colaboração, mas pensamos que a santificação depende de nossos próprios esforços. Sabemos que obtemos o perdão colocando toda a nossa fé no Senhor; porém, acreditamos que obteremos a liberação fazendo também nós alguma coisa. Tememos, se não fazemos nada, não chegar a nenhum lugar. Depois da experiência da salvação, o nosso velho costume de "fazer" alguma coisa aflora, e recomeçamos os nossos esforços humanos.
Então a Palavra de Deus nos diz novamente: "Está consumado" (João 19:30). Ele cumpriu tudo sobre a Cruz pelo nosso perdão, e deseja cumprir tudo em nós para a liberação. É, sempre e em tudo, Ele quem atua. "É Deus quem opera em vós" (Filipenses 2:13). As primeiras palavras de um homem liberado são muito importantes: "Eu dou graças a Deus". Se alguém nos der um copo de água, agradeceríamos a ele, não a alguma outra pessoa. Por que motivo Paulo diz: "Graças a Deus"? Porque foi Deus quem cumpriu tudo. Se Paulo tivesse feito alguma coisa, teria falado: "Obrigado, Paulo"; mas tinha compreendido que Paulo era um "miserável" e que somente Deus podia liberá-lo de sua aflição; disse então: "Eu dou graças a Deus". Deus quer cumprir tudo porque toda a glória deve ir para Ele. Se nós colaborássemos na obra, teríamos parte da glória; mas toda a glória deve ir a Deus, porque completou toda a obra desde o princípio até o fim.
Se nos detivéssemos aqui, tudo aquilo que temos falado neste capítulo poderia parecer negativo e privado de sentido prático, como se a vida cristã consistisse em sentar-se tranqüilamente à espera de algum milagre. Ela está, em verdade, bem longe disso. Todos os que a vivem realmente sabem que é uma questão de fé, muito positiva e muito ativa em Cristo, e um princípio de vida inteiramente novo: a lei do espírito da vida. Consideremos agora os efeitos que este novo princípio de vida produz em nós.


CAPÍTULO 10 – O CAMINHO DO PROGRESSO: CAMINHAR SEGUNDO O ESPÍRITO

Chegamos ao oitavo capítulo da epístola aos Romanos.
Mas antes de iniciarmos o estudo, poderemos resumir o conteúdo da segunda seção em que dividimos a carta, do capítulo 5:12 até o fim do capítulo 8, em duas expressões, cada uma contendo dois elementos em oposição e que remarcam um aspecto da vida cristã. Estas são:
Romanos 5:12 a 6:23 = "em Adão" e "em Cristo"
Romanos 7:1 a 8:39 = "na carne" e "no Espírito".
É muito importante que compreendamos a relação que existe entre estes quatro termos. Os dois primeiros são "objetivos", e explicam a nossa posição, primeiramente como éramos segundo a natureza, depois como somos agora pela fé na obra redentora de Cristo. Os outros dois termos são "subjetivos" e se relacionam com o nosso caminho, ou seja, com a nossa vida prática.
As Escrituras nos mostram claramente que os dois primeiros termos são somente uma parte da verdade, e os outros dois são necessários para completá-la. Nós pensamos que seja suficiente estar "em Cristo", mas já aprendemos que é necessário caminhar também "no Espírito" (Rm 8:9). O uso freqüente da palavra "Espírito" na primeira parte de Romanos 8 serve para sublinhar esta outra importante lição da vida cristã.

A CARNE E O ESPÍRITO
A carne está ligada a Adão, o Espírito está ligado a Cristo. Deixaremos de lado a questão de saber se estamos em Adão ou em Cristo, que já foi discutida, e nos perguntaremos: Como vivo eu, na carne ou no Espírito?
Viver na carne é fazer alguma coisa "que provém" de mim mesmo e de Adão. É por extrair a minha força da velha fonte de vida que herdei dele, que provo nas minhas experiências todas as disposições para o pecado de Adão, das quais conhecemos bem os efeitos. Ora, é a mesma coisa para aqueles que estão em Cristo. Para experimentar em minha vida aquilo que é verdadeiramente meu, se estou nEle, devo saber o que quer dizer caminhar no Espírito. O fato que a minha velha natureza tenha sido crucificada com Cristo é já um fato do passado, enquanto é uma realidade do presente que eu seja abençoado com "todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo" (Ef 1:3). Se eu não vivo no Espírito, a minha vida estará em contraste com o fato que estou "em Cristo", mas devo também compreender que o meu velho caráter é ainda demasiado forte.
Como pode ser este dilema? É que eu aceitei a verdade somente de forma "objetiva", enquanto o que é verdadeiro objetivamente deve também converter-se em verdadeiro subjetivamente; e isso acontecerá na medida em que eu vivo no Espírito.
Não somente estou "em Cristo", mas Cristo está em mim. E da mesma forma que o homem não pode fisicamente viver e trabalhar na água, mas somente no ar, assim, espiritualmente, Cristo habita e se manifesta não na "carne", mas somente no "espírito". Porque, se eu vivo "segundo a carne", me persuado que aquilo que é meu em Cristo está, por assim dizer, suspendido em mim. Ainda que, na realidade, eu esteja em Cristo, se vivo na carne, vale dizer em minha natureza e segundo a minha própria vontade, acharei com dor que se manifesta ainda em mim a natureza de Adão. Se desejar verdadeiramente conhecer tudo aquilo que está em Cristo, devo aprender a viver no Espírito.
Viver no Espírito significa que confio no Espírito Santo para que cumpra em mim aquilo que eu não posso fazer por mim mesmo. Esta vida é completamente diferente daquela que eu viveria naturalmente por mim mesmo. Cada vez que enfrento um novo pedido do Senhor, olho para Ele a fim de que cumpra Ele mesmo o que pretende em mim. Não devo tentar, mas crer; não lutar, mas somente repousar nEle. Se tenho um caráter irritável, pensamentos impuros, uma língua demasiado comprida, ou um espírito crítico, não tentarei de me transformar com um esforço que me pareça apropriado, ao contrário, considerando-me como morto em Cristo para todas estas coisas, esperarei do Espírito de Deus a calma, a pureza, a humildade, a doçura de que preciso. Isto significa: "Estai quietos, e vede o livramento do Senhor, que ele hoje vos fará" (Êx 14:13).
Muitos de vocês tiveram sem dúvida uma experiência semelhante: lhes foi pedido de visitar um amigo muito pouco simpático, mas se confiaram com o Senhor a fim que ajudasse vocês a cumprir com este dever. Falaram com Ele, antes de sair de casa, que por vocês mesmos caminhariam inevitavelmente rumo ao fracasso e Lhe pediram tudo aquilo que era necessário para esse encontro. Depois, para sua surpresa, não se sentiram irritados para nada, ainda que seu amigo não tivesse sido amável. No regresso, repensando, se alegraram de terem permanecido tão calmos e procuraram uma explicação. É esta a explicação: o Espírito Santo guiou vocês nesta ação.
Apesar de tudo, realizamos esta experiência somente uma vez cada tanto, quando ela deveria ser contínua. Quando o Espírito Santo toma a nossa vida em suas mãos, não devemos opor-nos. Não se trata de apertar os dentes, pensando que assim estamos magnificamente controlados e conseguimos uma gloriosa vitória. Não! Onde há uma verdadeira vitória, não foram os esforço humanos os que a conseguiram, mas o Senhor.
O objetivo da tentação é sempre o de conduzir-nos a fazer alguma coisa. Durante os primeiros três meses da guerra da China contra Japão, perdemos um grande número de tanques e assim foi impossível enfrentar os tanques japoneses até que não foi aplicada a tática seguinte. Um de nossos melhores atiradores, apostado, devia tirar um único tiro de fuzil contra um tanque japonês. Depois de um intervalo de tempo bastante longo, este primeiro tiro devia ser seguido por um segundo, depois, um outro silencio, mais um tiro, até que o capitão do tanque, ansioso para descobrir a posição inimiga, tirasse fora do tanque a cabeça, para dar uma olhada em volta. O disparo seguinte, executado com precisão, devia pôr fim aos seus dias.
Enquanto ele ficava al reparo estava seguro. A estratagema foi planejada com o objetivo de fazê-lo sair. Da mesma maneira, as tentações de Satanás não têm por primeiro escopo fazer-nos cometer alguma coisa particularmente pecaminosa, mas simplesmente induzir-nos a agir com as nossas próprias faculdades; mas apenas deixamos o nosso reparo para agir desse modo, ele já tem a vitória sobre nós.
Enquanto permanecemos quietos e não deixamos o refúgio de Cristo para voltar ao domínio do nosso "eu", ele não pode nos atacar.
O caminho da vitória que Deus nos procura exclui tudo aquilo que queremos fazer por nos mesmos, ou seja, tudo aquilo que está fora de Cristo. Isto porque, apena damos um passo, coremos o perigo a causa de nossas inclinações naturais que nos empurram na falsa direção. Onde devemos então procurar auxílio? Leiamos Gálatas 5:17: "Porque a carne luta contra o Espírito, e o Espírito contra a carne". Em outras palavras, a luta contra a carne não é assunto nosso, mas do Espírito Santo, porque existe já essa tal oposição entre eles; e é o Espírito, não nós, a combater e triunfar sobre a carne. Qual é o resultado? "Para que não façais o que quereis".
Penso que amiúde não alcançamos a compreender o profundo significado da última parte deste parágrafo. Consideremos atentamente o que isso significa. O que "faríamos nós naturalmente"? Nos lançaríamos numa linha de ação ditada pelos nossos próprios instintos, fora de vontade de Deus. Em vez disso, a recusa de agir por nós mesmos permite ao Espírito Santo dominar a carne que nos tiraniza, portanto não fazemos aquilo que estaríamos inclinados a realizar por natureza. Ao invés de proceder pela via indicada pelas nossas inclinações naturais, acharemos o nosso gozo em permanecer em seu plano perfeito.
Porém, temos esta ordem bem concreta: "Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne" (Gálatas 5:16). Se vivermos no Espírito, se caminhamos pela fé em Cristo ressuscitado, podemos realmente "permanecer separados", enquanto o Espírito reporta cada dia novas vitórias sobre a carne. Nos foi entregue para que assumíssemos este encargo. A nossa vitória consiste em esconder-nos em Cristo, e em confiar com simples, mas absoluta certeza em seu Espírito Santo, para que supere as nossas paixões carnais com seus novos desejos. A Cruz foi entregue para nos procurar a salvação; o Espírito nos é dado para colocar esta salvação em nós. O Cristo ressuscitado e ascendido no céu é o fundamento de nossa salvação; o Cristo que mora em nossos corações pelo Espírito é seu poder, o que o faz efetivo.

CRISTO, A NOVA VIDA
"Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor!". Esta exclamação de Paulo é fundamentalmente a mesma que a que ele expressa em outros termos em Gálatas 2:20 e que tomamos como objeto de nosso estudo: "...e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim". Vimos o lugar proeminente que tem a palavra "eu" em todo o capítulo 7 da carta aos Romanos, que culmina num grito de angústia: "Miserável homem que sou!". Depois, eis o grito da liberação: ""Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor!". Está claro que a revelação que teve o apóstolo é esta: a verdadeira vida cristã que podemos viver é somente a vida de Cristo. Nós pensamos na vida cristã como uma "vida mudada", mas não é assim. Deus não nos oferece uma "vida mudada", mas uma "vida substituída": Cristo em nós é o substituto. "...E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim".
Esta vida não é alguma coisa que nós devamos produzir em nós mesmos. É a vida mesma de Cristo que se reproduz em nós. Quantos cristãos crêem na "reprodução" naquele sentido, como numa esperança mais profunda que a regeneração? A regeneração significa que a vida de Cristo é gerada em nós pelo Espírito Santo, em nosso novo nascimento. A "reprodução" vai além: ela significa que esta nova vida cresce, se desenvolve progressivamente em nós até que a figura mesma de Cristo começa a se reproduzir em nossa vida. Isto entende Paulo quando diz de sofrer as dores de parto "até que Cristo seja formado em vós" (Gálatas 4:19).
Permitam-me ilustrar este conceito com uma outra história. Um dia eu estava em América, numa casa onde vivia um casal de crentes, os que me pediram de orar por eles. Perguntei a causa de sua dificuldade. "Oh, senhor Nee, estamos atravessando um momento difícil", confessaram, "nos irritamos com tanta facilidade a causa das crianças; nestas últimas semanas nos temos irado várias vezes por dia. Estamos verdadeiramente desonrando o Senhor. Você quer Lhe pedir de nos dar mais paciência?" "Essa é a única coisa que não posso fazer", respondi. "O que você quer dizer?", perguntaram. "Quero dizer que uma coisa é verdade", repliquei, "que Deus não responderá a essa oração". Então eles murmuraram com estupor: "Você acha que temos ido tão longe dEle que Ele não esteja mais disposto a ouvir o que Lhe pedimos" "Não, não é isso para nada, mas gostaria de saber se Deus respondeu?" "Não". "Sabem por quê? Porque vocês não precisam de paciência". Os olhos da mulher cintilaram e exclamou: "O que você quer dizer? Que não necessitamos de paciência enquanto discutimos o dia todo! O que você quer dizer verdadeiramente?" "Não é paciência que necessitam", respondi ainda eu, "é de Cristo".
Deus não me dará humildade, ou paciência, ou santidade, ou outra coisa como dons isolados de Sua graça. Ele não despedaça em pedacinhos a sua graça para distribuí-la em pequenas doses, dando uma medida de paciência a quem está impaciente, um pouco de amor para quem não tem amor, um pouco de humildade para quem é orgulhoso, em quantidade suficiente para cada um, e de forma que possamos operar como possuindo uma espécie de depósito a disposição. Ele nos fez um único dom que responde a todas as nossas necessidades: seu Filho Jesus Cristo; e quando olho para Ele para que viva Sua vida em mim, Ele será humilde, paciente, cheio de amor e tudo aquilo de que eu terei necessidade, em meu lugar. Ele é tudo que eu não posso, mas devo ser. Lembrem-se da palavra da primeira epístola de João: "Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida" (1 Jo 5:11-12).
A vida de Deus não nos foi entregue como um objeto separado; a vida de Deus nos é entregue em seu Filho. É "a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 6:23). A nossa relação com Cristo é a nossa relação com a vida.
E uma experiência abençoada a de descobrir a diferença que existe entre as "graças" cristãs e o próprio Cristo, de conhecer a diferença entre a humildade e Cristo, entre a paciência e Cristo, entre o amor e Cristo. Lembrem ainda aquilo que foi dito na primeira epístola aos Coríntios, 1:30: "Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção". A noção corrente de santificação requer que cada ponto de vista seja feito santo. Mas essa não é a santidade, mas o fruto da santidade.
A santidade é Cristo. É o Senhor Jesus em nós, essa é a santidade. Tudo está compreendido nEle: o amor, a humildade, a paciência, a força, o domínio de si. Hoje eu tenho necessidade de paciência: Ele é a nossa paciência. Amanhã terei necessidade de pureza: Ele é a nossa pureza. Ele é a resposta a todas as nossas necessidades. Por isso Paulo fala do "fruto do Espírito" como de um único fruto (Gálatas 5:22) e não de muitos frutos, como se fossem dons separados. Deus nos deu seu Santo Espírito, e quando necessitamos amor, o fruto do Espírito é amor; quando precisamos alegria, o fruto do Espírito será alegria. E sempre verdade. Pouco importa a nossa necessidade pessoal, e as centenas de coisas que nos faltam. Deus tem uma resposta, mas uma resposta suficiente para todo: seu Filho Jesus Cristo, que é a resposta a todas as necessidades de todos os homens.
Como podemos nós conhecer mais a fundo a santidade deste modo? Somente através de uma maior consciência de nossas necessidades. Certos crentes têm medo de descobrir a sua insuficiência e assim não crescem nunca. O crescimento "na graça" é a única maneira na qual podemos crescer, e a graça, como já dissemos, é Deus mesmo que age em lugar de nós. Todos nós temos o mesmo Cristo morando em nós, mas a revelação de uma nova necessidade nos conduzirá espontaneamente a confiar a Ele este ponto particular, para que Ele viva sua santa vida em nós. Uma maior capacidade é o resultado de um conhecimento maior dos recursos de Deus. Um novo abandono implica uma maior confiança em Cristo e assim realizamos uma nova conquista: "Cristo: minha vida" é o segredo do desenvolvimento.
Falamos dos nossos esforços e de nossa fé; da diferença que existe entre estas duas posições. Acreditem, é a mesma diferença que existe entre o céu e o inferno. Esta não é somente uma frase bonita, é a exata realidade!
"Senhor, eu não posso fazer isso, então não tentarei mais fazê-lo". Este é o ponto em que a maior parte de nós cai. "Senhor, eu não posso, portanto me remito e Ti nisto". Nos recusamos assim a agir, contamos exclusivamente com Ele para que Ele mesmo faca as coisas; nos inserimos assim, plena y jubilosamente, na ação que Ele começou.
Isto não significa passividade, antes bem, é uma vida mais ativa que confia no Senhor, trazendo dEle a vida, inserindo-nos nEle, deixando que Ele viva sua vida em nós, enquanto prosseguimos em Seu nome.

A LEI DO ESPÍRITO DA VIDA
"Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Romanos 8:1-2).
Neste capítulo 8 Paulo nos apresenta detalhadamente a parte positiva da vida do Espírito: "nenhuma condenação há", começa declarando, e esta declaração pode, num primeiro momento, parecer fora de lugar. De fato a condena foi tirada com o sangue de Jesus, graças ao qual temos a paz com Deus, e somos salvos da ira (Romanos 5:1 – 9). Mas existem duas espécies de condenas, aquela diante de Deus e aquela diante de mim mesmo. (Já vimos que, do mesmo modo, existem duas formas de paz). Esta segunda condena pode talvez parecer-nos mais terrível que a primeira. Quando vejo que o sangue de Cristo satisfez a Deus, eu sei que meus pecados são perdoados e que não há mais condena para mim. Porém posso ainda conhecer a derrota e o sentimento de uma condena interior muito real a este respeito, como o mostra Romanos 7. Mas, se aprendi a viver em Cristo, que é a minha vida, conheço então o segredo da vitória e, Deus seja louvado, "nenhuma condenação há", porque "a inclinação do Espírito é vida e paz" (Rm 8:6), e essa se converte em minha experiência, na medida em que aprendo a caminhar segundo o Espírito; se em meu coração reina a paz, não posso sentir-me condenado e somente me resta louvar Aquele que me conduz de vitória em vitória.
Mas de onde me vem este sentimento de condenação? Não será da consciência de minha derrota e do conhecimento da minha impotência para remediá-lo? Antes de ver que Cristo é a minha vida, eu realizava esforços com o sentimento constante de minha incapacidade. A minha limitação obstaculizava meus passos e me sentia inábil para cada obra. Gritava sem trégua: "Não posso fazer isto, não posso fazer aquilo!". Apesar de todos os meus esforços, eu via que não podia "agradar a Deus" (Rm 8:8). Mas com Cristo, não pode se dizer: "Eu não posso"; diz-se: "Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece" (Filipenses 4:13).
Como podia Paulo ousar tanto? Sobre o que se baseava para poder declarar que já estava liberado de todas as limitações e que podia fazer tudo? Eis a resposta: "Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8:2). Por que não existe mais condena? "Porque...", diz Paulo, há uma razão para isso; há uma razão muito precisa que justifica sua afirmação. E esta razão é que existe uma lei chamada "a lei do Espírito da vida", que se manifestou mais forte que uma outra lei chamada "a lei do pecado e da morte". O que são estas duas leis? Como operam? E qual é a definição entre o pecado e a lei do pecado, entre a morte e a lei da morte? Perguntemo-nos antes que nada: O que é uma lei? Para falar claro, uma lei é a repetição de um fato observado, até o ponto em que é provada a sua repetição sem exceção. Poderemos defini-la, mais simplesmente, como uma coisa que se repete sempre de novo. Todas as vezes que volta aparecer, reaparece sempre do mesmo modo. Tomemos dois exemplos para explicar esta definição; um das leis humanas, o outro das leis naturais. Na Inglaterra, por exemplo, se eu dirigisse um carro sobre o lado direito da rua, seria arrestado pela policia local. Por quê? Porque infringiria a lei do país. É uma coisa que se repete infalivelmente. Ou, todos conhecemos a lei da gravidade. Se deixar cair meu lenço em Londres, cairá por terra; é o efeito da gravidade. Mas a mesma coisa acontecerá se o fazer em Paris, em Nova Iorque ou em Hong-Kong; é o mesmo fato que se repete. Pouco importa onde o deixo cair, a gravidade tem o mesmo efeito em todas as partes do globo terrestre. Em qualquer lugar onde existam as mesmas condições, os mesmos efeitos se repetem. Existe, então, uma lei de gravidade dos corpos. Ora, qual é a lei do pecado e da morte? Se alguém me faz uma observação pouco amável, me sinto imediatamente ferido. Esta não é uma lei, é o pecado. Mas se diversas pessoas me fazem observações descorteses, e eu reajo sempre do mesmo modo, posso discernir então uma lei em mim, uma lei do pecado. Como a lei da gravidade, também esta lei é constante, se repete sempre da mesma forma. Assim é o mesmo com a lei da morte. Dizemos que a morte é a debilidade física em seu limite extremo. A debilidade consiste em dizer "não posso". Ora, se quando me esforço para agradar a Deus num determinado modo, sento que não posso fazê-lo, e se tento de obedecer em uma outra ocasião e volto experimentar ser incapaz, discerno uma lei que atua em mim. Não é somente o pecado que está em mim, mas uma lei do pecado; e não é somente a morte que está em mim, mas uma lei de morte.
Assim sendo, não somente a gravidade é uma lei no sentido que é constante e não admite exceções; mas, a diferença da lei da rua, é uma lei "natural", e não é portanto objeto de discussões e de decisões, mas simplesmente de descobrimento. A lei existe, e o lenço cai "naturalmente" por terra sozinho, sem ajuda alguma de minha parte. E a "lei" definida em Romanos 7:23 é exatamente da mesma natureza. É uma lei de pecado e de morte em oposição àquilo que é bom, e que paralisa o homem que desejaria realizar o bem. Ele peca "naturalmente" segundo a "lei do pecado" que está em seus membros. Ele deseja ser diferente, mas a lei que está nele é implacável e nenhuma vontade humana pode resisti-la. Isto me conduz, então, a perguntar: "Como posso ser liberado da lei do pecado e da morte?" Necessito conhecer a liberação do pecado, e ainda mais, a liberação da morte; mas, sobre tudo, necessito ser liberto da lei do pecado e da morte. Como posso ser liberado da repetição constante de minhas quedas e de minha fraqueza?
Para responder a esta pergunta prosseguiremos ainda com nossos dois exemplos.
Um dos pesos mais graves que tivemos na China, em outros tempos, foi a taxa "likin", uma lei à qual ninguém podia se subtrair; ela provinha da dinastia Ch'in, e tinha permanecido em vigor até quase os nossos tempos. Essa taxa era aplicada aos transportes internos de mercadorias, em todas as províncias do Império; existiam numerosas barreiras para a revisão, e os funcionários adeptos gozavam de amplos poderes. Assim, os impostos sobre as mercadorias que atravessavam muitas províncias, podiam resultar enormes. Mas, alguns anos atrás, uma segunda lei foi promulgada, suprimindo a lei "likin". Podem imaginar o alívio que foi para aqueles que tanto tinham sofrido sob a antiga lei! Não havia mais necessidade de esperar, ou de pensar ou de suplicar; a nova lei tinha aparecido, liberando-nos daquela antiga. Não era mais necessário pensar antecipadamente no que era preciso dizer, caso ter de enfrentar um arrecadador do "likin".
Isso que acontece pela lei do país sucede também pela lei natural. Como pode ser anulada a lei da gravidade? No que concerte ao meu lenço, esta lei funciona à perfeição, fazendo-o cair por terra; mas somente preciso mantê-lo sujeito em minha mão para que ele não caia. Por quê? A lei existe sempre. Eu não mudo nada da lei da gravidade; de fato, não posso fazer nada contra ela. Então por que meu lenço não cai no chão? Por uma força que o impede. A lei permanece, mas existe uma outra lei que é superior, age e triunfa sobre aquela, e é a lei da vida. A gravidade pode exercer todo seu poder, mas o lenço não cairá porque uma outra lei age contra a lei da gravidade para mantê-lo em seu lugar. Todos nós, alguma vez, vimos uma árvore que antes foi uma pequena semente caída entre as pedras do chão, e depois cresceu até levantar as pedras, pela força da vida que estava nela. Isto nós o chamamos de triunfo de uma lei sobre a outra.
De forma similar, Deus nos libera de uma lei, introduzindo em nós uma outra lei. A lei do pecado e da morte subsiste sempre, mas Deus colocou em operação uma outra lei: a lei do Espírito da vida de Jesus Cristo, e esta lei é tão potente como para liberar-nos da lei do pecado e da morte. Porque há uma lei de vida em justiça. A vida de ressurreição que está nEle encontrou-se frente a morte em todos seus aspectos e triunfou sobre ela. "E qual a sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus" (Ef 1:19-20).
O Senhor Jesus mora em nossos corações na pessoa do Espírito Santo e se, confiando nEle, o deixamos em liberdade para agir, veremos que a sua nova lei de vida nos libera da antiga lei. Aprenderemos o que significa ser sustentados não pelas nossas inadequadas forças, mas pelo "poder de Deus" (1 Pedro 1:5).

A MANIFESTAÇÃO DA LEI DA VIDA
Devemos tentar de encontrar o sentido prático de tudo isto. Temos falado, precedentemente, da questão de nossa vontade em relação com as coisas de Deus. Os cristãos, incluso os mais velhos, não aplicam essa parte importante que já expliquei em suas vidas. Este é um dos tormentos de Paulo em Romanos 7. A sua vontade era boa, mas todas as suas ações a desmentiam, e todas as decisões que tomava para agradar a Deus não faziam outra coisa senão conduzi-lo a uma escuridão mais profunda. "Eu desejaria fazer o bem", mas, "sou carnal, vendido ao pecado". Eis aqui o ponto vital. Como um carro sem gasolina, o qual é necessário empurrar e que se detém apenas livrado a si mesmo, muitos cristãos tentam avançar com suas forças de vontade, e acham que nada é mais áspero e cansativo na vida cristã. Alguns se esforçam para cumprir boas ações porque outros as realizam, ainda admitindo que não fazem sentido para eles. Esforçam-se em querer ser aquilo que não são, e isto é mais penoso que tratar de fazer subir água por uma pendente. Porque, depois de tudo, o ponto máximo a que pode chegar a vontade é a uma boa disposição. "Na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mateus 26:41).
Se nós devemos realizar tantos esforços em nossa vida cristã, significa simplesmente que não somos verdadeiramente cristãos. Não fazemos nenhum esforço para falar em nossa língua materna. De fato, devemos recorrer à nossa força de vontade somente nas coisas que não fazemos espontaneamente. Poderemos consegui-lo, talvez, por um certo tempo, mas a lei do pecado e da morte se assenhoreará no final.
Podemos dizer: "Eu tenho a vontade e agirei bem durante duas semanas". Mas deveremos em seguida confessar: "Não sei como fazê-lo". Não, se sou, já não preciso tentar de sê-lo. Se desejo sê-lo é porque reconheço que não o sou.
Vocês perguntarão: "Por que os homens cumprem seus esforços de vontade para agradar a Deus?". Pode haver duas razões para isto. Ou não têm nunca experimentado o novo nascimento, e neste caso não têm a vida operante neles; ou, se nasceram de novo e têm neles esta vida, não aprenderam a confiar nesta nova força. Esta falta de consciência os conduz sempre à derrota e ao pecado, de modo que acabarão por duvidar da possibilidade de uma vida melhor.
Mas se faltamos à fé, não quer dizer que a débil vida que experimentemos alguma vez represente tudo aquilo que Deus nos deu. Romanos 6:23 declara que "o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor"; e em Romanos 8:2 aprendemos que "a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus" veio em nossa ajuda. Assim, Romanos 8:2 não nos fala de um novo dom, mas da vida já apresentada em Romanos 6:23. Em outras palavras, se trata de uma nova revelação daquilo que já possuímos. Sinto que não posso remarcar suficientemente esta verdade. Não é uma coisa que devemos esperar da mão de Deus, mas é um novo conhecimento da obra já cumprida em Cristo, porque as palavras: "te livrou" estão em tempo passado. Se eu entendo bem isto e coloco a minha fé em Cristo, não é absolutamente necessário que repita a experiência de Romanos 7, seja a respeito dos esforços inúteis e das contínuas quedas, seja no que concerne à infrutífera explicação de minha vontade carnal.
Se abandonarmos a nossa força de vontade e confiamos nEle, nós nunca cairemos e não seremos surpreendidos, mas entraremos no domínio de uma lei diversa, a lei do Espírito da vida. Porque Deus não nos deu somente a vida, mas uma lei de vida. E como a lei da gravidade é uma lei natural e não o produto de legislações humanas, assim a lei da vida é uma "lei natural", similar ao princípio da lei que regula as batidas do coração, ou que controla os movimentos de nossas pálpebras. Nós não precisamos pensar em nossos olhos, nem decidir a freqüente das batidas das pálpebras para mantê-los limpos; e muito menos de aplicar a nossa vontade para o bom funcionamento de nosso coração. Em efeito, não conseguiremos senão complicações. Não, enquanto o coração tem vida, age espontaneamente. A nossa vontade só pode complicar a lei da vida. Eu conheci esta realidade, um dia, da seguinte maneira.
 Sofria freqüentemente de insônia. Depois de muitas noites transcorridas sem dormir, depois de muito ter orado neste aspecto, esgotados todos os meus recursos, acabei por confessar a Deus que devia haver algum erro em mim, e Lhe pedi que o mostrasse. Disse a Deus: "Peço uma explicação"; e a sua resposta foi: "Acredita nas leis da natureza". O sono é uma lei como à da fome, e percebi que, se não estava preocupado de saber se eu tinha ou não fome, também não deveria ter-me atormentado pela minha insônia. Eu havia procurado ajudar a natureza e essa é a armadilha na qual caem a maioria daqueles que enfrentam a insônia. Mas desde aquele momento coloquei a minha confiança não somente em Deus, mas também na lei natural de Deus; em pouco tempo consegui dormir bem.
Não devemos nós ler a Bíblia? Evidentemente que devemos lê-la, de outra forma a nossa vida espiritual se ressentiria. Mas isto não significa que devemos esforçar-nos para lê-la. Existe em nós uma nova lei que nos dá a fome pela Palavra. Então, uma meia hora será mais eficaz que cinco horas de leitura forçada. E é o mesmo com a liberalidade no oferecer os nossos dons, as predicações, os testemunhos. A predicação forçada pode ser o anúncio do Evangelho expressado com calor, enquanto o coração permanece frio, e nós sabemos o que significa um "amor frio".
Se deixarmos viver em nós a nova lei, seremos menos cônscios da antiga. Ela ainda existe, mas não domina mais e nós não estamos mais sob a sua influência. Por isso o Senhor diz em Mateus 6: "Olhai para as aves... Considerai como crescem os lírios...". se fosse possível perguntar às aves se elas não têm medo da lei da gravidade, o que responderiam? Diriam simplesmente: "Nós nem conhecemos o nome de Newton. Não conhecemos sua lei. Voamos porque a lei de nossa vida é voar". Não somente têm nelas uma vida que tem o poder de voar, mas a lei desta vida faz que essas criaturas sejam capazes de vencer espontaneamente a lei da gravidade. Ainda assim, a gravidade permanece. Se vocês se levantam cedo uma manhã de intenso frio, e a neve cobre o solo, e se acham um pássaro morto no pátio, lembrarão imediatamente desta lei. Mas enquanto as aves têm vida, vencem a lei da gravidade pela força natural que está nelas.
Deus foi realmente bom para nós. Nos deu a nova lei do Espírito e "voar", para nós, não e mais uma questão de nossa vontade, mas de Sua vida. Vocês imaginam quão árduo trabalho seria o de querer transformar um cristão impaciente num cristão paciente? Seria suficiente pedi-lhe um pouco de paciência para enfermá-lo de exaustão. Mas Deus nunca nos pediu para esforçar-nos para ser o que não somos por natureza, nem para  tentar, com a força do pensamento, acrescentar nossa estatura espiritual. A extremada solicitude pode diminuir o nível espiritual de um homem, mas certamente nunca o tem elevado. "Não estejais apreensivos", nos disse o Senhor; "Considerai os lírios, como crescem" (Lc 12:22,26). Ele coloca nossa atenção sobre a Sua vida que está em nós. Oh! Se pudéssemos apreciar esta vida nova que é nossa!
Que maravilhoso descobrimento! Ele pode fazer completamente novo um homem, porque opera tanto nas coisas pequenas como nas grandes.
Falava, um dia, com um amigo meu, crente, e ele me diz: "Veja, eu acredito que se um quer viver para a lei do Espírito da vida, acabará verdadeiramente educado". "O que você quer dizer?", perguntei. Ele respondeu: "Esta lei tem o poder de fazer de um homem, um gentil-homem perfeito". Alguém disse com desprezo: "Vocês não podem repreender estas pessoas pelos seus modos de agir; vêm do campo e não tiveram possibilidade de educação". Mas a verdadeira pergunta é: "Têm eles a vida do Senhor dentro deles? Porque, eu digo, esta vida pode dizer a eles: 'A sua voz é demasiado forte', ou bem 'esse riso está fora de lugar', ou ainda 'a razão pela qual você fez essa observação não foi boa'". Em cada particular, o Espírito da vida pode ensinar como agir e produzir neles uma verdadeira educação. Não existe um semelhante poder na educação normal. Ainda assim, o meu amigo era um educador!
Mas é verdade. Tomemos por exemplo o conversar. Você é uma pessoa que fala demais? Quando se encontra em sociedade, pensa: "O que devo fazer? Eu sou crente e se desejo glorificar o nome do Senhor devo falar menos. Hoje deverei me controlar". E durante uma ou duas horas conseguem fazê-lo, até que, com um pretexto ou outro, esquecendo da proposta, perdem o controle e, antes de saber onde estão, encontram-se mais uma vez em dificuldades por causa de sua língua. Sim, estamos seguros que a nossa vontade será inútil neste caso. Se eu exortasse vocês a exercitar sua vontade a este respeito, seria como oferecê-lhes a vã religião do mundo, e não a vida de Jesus Cristo. Porque, observemos ainda: uma pessoa charlatã fica assim ainda quando permanece calada durante um dia inteiro; porque uma lei "natural" a domina e a impele a falar; exatamente como uma macieira será sempre uma macieira, produza maçãs ou não. Mas, convertidos em crentes, descobrimos em nós uma nova lei, a lei do Espírito da vida, que vence todas as outras, e que já nos liberou da "lei" da conversa. Se acreditarmos na Palavra de Deus e obedecemos à nova lei, ela nos dirá quando devemos parar, ou se não devemos nem sequer começar, e nos dará a força para fazê-lo. Sobre esta base podem visitar seus amigos, ficar duas ou três horas, ou ainda dois ou três dias, sem nenhuma dificuldade. À volta agradecerão a Deus pela sua nova lei de vida.
Esta vida espontânea é a vida cristã. Ela se manifesta em amor para aqueles que não são amáveis, para o irmão que naturalmente não desejam amar e que, em verdade, não poderiam amar. Porque esta lei age sobre a base das possibilidades que o Senhor discerne nestes irmãos.
"Senhor, Tu vês quem pode ser amado e o amas. Ama-o agora, te rogo, através de mim!". Esta lei produz uma verdadeira vida, um caráter moral sincero e leal. Existe demasiada hipocrisia na vida dos cristãos, demasiada comédia. Nada prejudica tanto a eficácia do testemunho cristão quanto a pretensão dos filhos de Deus de querer parecer aquilo que realmente não são, porque o homem da rua acaba por penetrar neste disfarce, e nos reconhece por aquilo que somos. Vice-versa, a ficção cede o lugar à realidade, quando confiamos sinceramente na lei da vida.

O QUARTO PASSO: "CAMINHAR SEGUNDO O ESPÍRITO"
"Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado. Para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8:3-4).
Cada leitor atento a estes versículos verá que emergem duas coisas. Em primeiro lugar se diz o que o Senhor Jesus fez por nós, depois o que o Espírito quer fazer em nós. "A carne é fraca", e como conseqüência não podemos "segundo a carne" cumprir a justiça da lei. Prestemos atenção que aqui não se trata de nossa salvação, mas do fato de agradar a Deus. A causa de nossa incapacidade Deus operou duas coisas. Primeiro veio para resolver o centro de nosso problema. Ele enviou seu Filho na carne, para que morresse a causa do pecado, e assim tem "condenado o pecado na carne". Isto significa que Ele fez morrer, em Sua pessoa, tudo aquilo que em nós pertencia à velha criação, seja que o chamemos "o nosso velho homem", ou "a carne" ou "o eu" carnal. Deus destruiu assim a raiz mesma do mal, eliminando a causa de nossa debilidade. Este foi o primeiro passo.
Mas a "prescrição da lei" devia ainda ser cumprida "em nós". Como podia acontecer isto? Mediante a nova intervenção do Espírito Santo que mora em nós. Ele foi enviado para ocupar-se do aspecto interior deste problema, e pode fazê-lo, como nos é explicado, se "caminhamos segundo o Espírito".
O que significa "caminhar segundo o Espírito"? Significa duas coisas. Primeiro, não é uma obra, é um caminho. Deus seja louvado! Os esforços desesperados, extenuantes, que eu me impunha quando tentava agradar a Deus na carne deixaram lugar ao repouso e à alegria, na dependência de "sua eficácia, que opera em mim poderosamente" (Colossenses 1:29). Por isso Paulo opõe as "obras" da carne com o "fruto" do Espírito (Gálatas 5:19-22).
Além disso, "caminhar segundo" implica submissão. Caminhar segundo a carne significa que eu cedo às exigências da carne, e os versículos que seguem (Rm 8:5-8) mostram claramente aonde isto me conduz. A carne só pode me deixar em conflito com Deus. Caminhar segundo o Espírito é estar submetidos ao Espírito. Existe uma coisa que não permite o homem de caminhar segundo o Espírito, e consiste em sermos independentes do Senhor.
É preciso que eu me submeta ao Espírito Santo. É Ele quem deve ter a iniciativa em minha vida. Somente se me dedico a obedecê-Lo verei a "lei do Espírito da vida" agir plenamente, e a "justiça prescrita da lei" (tudo aquilo que me esforcei a fazer para agradar a Deus) cumprida perfeitamente não mais por mim, mas em mim. "Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus" (Rm 8:14).
Conhecemos todas as palavras de bênção expressas em 2 Coríntios 13:14: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós". O amor de Deus é a fonte de todas as bênçãos espirituais; a graça do Senhor Jesus colocou estas riquezas espirituais a nossa disposição; e a comunhão do Espírito Santo é o meio pelo qual elas nos foram entregues.
O amor é uma coisa escondida no coração de Deus; a graça é este amor expresso e oferecido em Seu Filho; a comunhão é o dom desta graça por meio do Espírito. O que o Pai determinou a nosso respeito, o Filho o cumpriu para nós, e agora o Espírito Santo no-lo comunica. Assim, quando descobrimos algo do que o Senhor Jesus conquistou com sua Cruz, tentamos de tomá-lo na forma que Deus nos indicou, e com um comportamento de firme submissão e obediência ao Espírito Santo, mantemos o nosso coração completamente aberto, a fim que possamos recebê-lo. É este o mistério do Espírito Santo. Ele veio por este preciso objetivo, para cumprir em nós aquilo que já é nosso através da obra perfeita de Cristo.
Nós aprendemos na China que, quando se deseja conduzir uma alma a Cristo, é necessário ser muito claros, e ir bem fundo no assunto, porque é difícil poder ter depois a ajuda de outros crentes. Assim, procuramos sempre fazer compreender bem a cada novo crente que, quando pediu ao Senhor de perdoar seus pecados e de entrar em sua vida, seu coração se converteu na habitação de uma pessoa viva. O Espírito Santo de Deus está agora nele, para abri-lhe as Escrituras, a fim de achar nelas a Jesus Cristo, para dirigir suas orações, para governar sua vida e para reproduzir nele o caráter de seu Senhor.
Lembro-me que, perto do fim de um verão, fui transcorrer um prolongado período de repouso na montanha. Era difícil achar lá uma habitação regular, então devi adaptar-me a dormir numa casa e almoçar e jantar em outra; nesta última habitavam um operário e sua esposa.
Durante as primeiras duas semanas de minhas férias, não falei aos meus hóspedes do Evangelho; porém um dia, finalmente, se me apresentou a ocasião de falar do Senhor Jesus. Eles estavam bem dispostos a escutar e a andar a Ele, com uma fé simples, para receber o perdão dos pecados. Realizaram o novo nascimento, e uma luz e um gozo novo entrou em suas vidas, porque a sua conversão era verdadeiramente sincera.
Dei-me com todo cuidado a fazer conhecer a eles claramente o que tinha acontecido; depois chegou o frio e eu devi regressar a Xangai.
Durante os meses invernais, o homem estava costumado a beber vinho nas comidas, e era inclinado a fazê-lo em excesso. Depois de minha partida, quando voltou o frio, o vinho reapareceu em sua mesa. Como estava habituado a fazer, o marido inclinou a cabeça para agradecer a Deus pela comida; mas as palavras não vinham. Depois de uma ou duas tentativas vãs, voltou-se à mulher e lhe perguntou: "O que há que não vá? Por que não podemos orar, hoje? Pega a Bíblia e vejamos o que diz de beber". Eu tinha deixado a eles um exemplar das Sagradas Escrituras mas, ainda que a mulher soubesse ler, não conhecia ainda a Palavra e assim ela voltava as páginas sem achar a resposta a essa pergunta. Eles não sabiam ainda como consultar o livro de Deus, e era para eles impossível consultar um enviado de Deus, estando eu a muitos quilômetros longe deles, e podiam transcorrer meses antes que nos encontrássemos de novo. "Bebe entretanto teu vinho", disse a mulher. "Falaremos disto ao irmão Nee na primeira ocasião". Porém, o marido reconheceu que não podia agradecer ao Senhor por aquele vinho. "Tira ele da mesa", disse no fim; e quando ela assim o fez, pediram juntos a bênção do Senhor para a sua comida.
Quando, mais tarde, o homem pode vir a me encontrar em Xangai, me contou a história. Servindo-se de uma expressão comum em chinês, ele me disse: "Irmão Nee, o Patrão Residente não me permitiu beber!" "Muito bem, irmão", respondi. "Obedeça sempre ao Patrão Residente".
Muitos de nós sabemos que Cristo é a vida. Acreditamos que o Espírito Santo de Deus resida em nós, mas este fato não tem muito efeito em nosso modo de comportar-nos. A pergunta fundamental, então, é esta: "O conhecemos como uma Pessoa viva ou o conhecemos como Patrão?"


CAPÍTULO 11 – UM ÚNICO CORPO EM CRISTO

Antes de tocar o nosso último importante tema, queremos deter o nosso pensamento sobre o caminho recorrido, para resumir as etapas passadas. Tentamos mostrar simplesmente e explicar claramente algumas das experiências que atravessam habitualmente os cristãos. Mas é evidente que os novos descobrimentos que realizamos, a medida que procedemos como nosso Senhor, são numerosos e devemos velar contra a tentação de simplificar além da medida a obra de Deus. Isto poderia induzir-nos numa grande confusão.
Alguns filhos de Deus acreditam que a salvação, que para eles compreende igualmente a questão de viver uma vida santa, reside inteiramente no saber apreciar o valor do sangue de Cristo. Têm razão de insistir sobre a necessidade de vigiar para estar em regra com Deus a respeito de certos pecados conhecidos, assim como sobre a eficácia contínua do sangue de Cristo que cancela os pecados que cometemos; mas eles pensam também que aquele sangue cumpre tudo. Eles acreditam numa santidade que significa simplesmente a separação do homem de seu passado; eles crêem que, cancelando o que o homem cometeu, sobre a base do sangue vertido, Deus separa este homem do mundo a fim que Lhe pertença e que esta seja a santidade; e de detêm aqui. Eles ficam então deste lado das exigências fundamentais de Deus e, em conseqüência, dos recursos abundantes que Ele tem provido. Espero que, neste ponto, tenhamos percebido claramente como este modo de interpretar é incompleto.
 Existem outros que vão mais longe e reconhecem que Deus os têm incluído na morte de seu Filho sobre a Cruz, a fim que seu velho homem seja crucificado em Cristo, e eles sejam libertos do pecado e da lei. Estes têm uma fé real no Senhor porque gloriam-se em Jesus Cristo e cessaram de colocar sua confiança na carne (Filipenses 3:3). Deus tem neles um fundamento claro, sobre o qual pode edificar. E desta posição de partida muitos chegaram além, e reconheceram que a consagração —adotando esta palavra em seu verdadeiro sentido— significa abandonar-se sem reservas nas mãos do Senhor para segui-Lo. Tudo isto representa somente os primeiros passos, partindo dos quais teremos alcançado outras fases da experiência preparada por Deus para nós, e que muitos conhecem. É sempre essencialmente necessário recordar-nos que cada passo, ainda que represente um fragmento precioso da verdade, não é para nada, em si mesmo, a inteira verdade. Nós experimentamos todos eles como o fruto da obra de Cristo sobre a Cruz, e não podemos ignorar nem um sequer.

UMA PORTA E UM CAMINHO
Reconhecemos que existe um certo número de essas fases na vida e na experiência do crente, e observaremos agora outro fato: ainda que estas fases não sejam sempre necessariamente experimentadas numa ordem fixa e precisa, elas parecem porém estar marcadas de pontos e características que se repetem. Quais são estas características? Existe, antes que nada, a revelação. Como já vimos, a revelação precede sempre a fé e a experiência. Com sua Palavra Deus abre nossos olhos à verdade de um fato que concerne seu Filho e depois, se nos apropriarmos dele pela fé, esse fato se converte em real em nossa vida.
Nós temos então:
A revelação — que é objetiva.
A experiência — que é subjetiva.
Observamos, a seguir, que uma semelhante experiência toma habitualmente a dupla forma de uma crise, seguida de um aperfeiçoamento contínuo. É muito útil compreender isto sob a figura com que John Bunyan nos apresenta a "porta estreita" pela qual Cristiano entrou no "caminho estreito". O Senhor Jesus falou desta porta e desta via que conduz à vida. "Porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem" (Mateus 7:14); e a experiência confirma as suas palavras. Temos então:
A revelação
A experiência:
Uma porta estreita (a crise)
Um caminho estreito (sucessivo)
Tomemos agora algum dos temas que examinamos, e vejamos como este quadro nos ajuda a compreendê-los.
Começaremos com a nossa justificação e o nosso novo nascimento. Tudo isto começa com a revelação do Senhor Jesus em sua obra de expiação dos nossos pecados sobre a Cruz. Esta revelação será seguida da crise do arrependimento e de fé (a porta estreita), pela qual somos inicialmente acercados a Deus. "Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto" (Ef 2:13). Este primeiro passo nos conduz a um estado de constante amizade com Ele (a via estreita), pela qual nos é garantido cada dia, sempre mediante seu sangue precioso, o acesso à vida. "Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus (...) cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa" (Hebreus 10:19,22). Quando chegamos à liberação do pecado, temos ainda três passos: a obra de revelação cumprida pelo Espírito Santo, ou seja, o "saber" de Romanos 6:6; a crise de fé, o "considerai-vos como mortos" de Romanos 6:11; e o contínuo e sucessivo progresso na consagração, ou seja: "apresenta-vos" a Deus (Romanos 6:13), sobre o fundamento de um caminho em novidade de vida. Consideremos então o dom do Espírito Santo.
Também isso começa com uma "visão" nova do Senhor Jesus, elevado sobre o trono que acaba com a dupla experiência do Espírito derramado sobre nós, e do Espírito que mora em nós. E finalmente, chegando ao problema de agradar a Deus, nos encontramos ainda com a necessidade de luz espiritual, a fim que possamos compreender o valor da obra da Cruz a respeito da "carne", toda a vida egoísta do homem. Se aceitarmos esta obra por fé, entramos na experiência da "porta estreita": "Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor" (Rm 7:25); com a qual começamos por cessar de "fazer" e aceitamos por fé a ação poderosa da vida de Cristo para satisfazer em nós as exigências práticas de Deus. É desde aqui que entramos no "caminho estreito", uma via de obediência ao Espírito. "Não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8:4).
O exemplo não é idêntico em cada caso e devemos prestar atenção a não impor ao Espírito Santo um plano de ação rígido; mas talvez cada experiência nova poderá apresentar-se a nós, mais ou menos, segundo estes lineamentos. Será certamente necessário que nossos olhos se abram desde o princípio sobre os novos aspectos de Cristo e de sua obra completada; a fé abrirá depois a porta para o novo caminho. Lembrem-se também que a nossa subdivisão da experiência cristã em seus diversos aspectos (a justificação, o novo nascimento, o dom do Espírito, a liberação, a santificação), foi feita para que compreendamos tudo mais claramente. Isto não significa que estas etapas devam absolutamente seguir-se umas as outras sempre numa ordem pré-estabelecida. De fato, nos é dada desde o princípio uma apresentação completa de Cristo e de sua Cruz, podemos entrar em possessão de experiências muito ricas desde o primeiro dia de nossa vida cristã, mesmo que seu significado mais profundo não nos seja ainda revelado, porque o será mais tarde. Que possa toda a predicação do Evangelho ser realizada assim.
Uma coisa é verdadeira: a revelação precede sempre a fé. Ver e crer são dois princípios que regulam a vida cristã. Quando nós vemos alguma coisa que Deus cumpriu em Cristo, respondemos naturalmente: "Obrigado, Senhor", e a fé se segue espontaneamente. A revelação é sempre a obra do Espírito Santo, que nos é entregue a fim que, acompanhando-nos e fazendo-nos compreender as Escrituras, nos guie em toda a verdade: "Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade" (João 16:13). Contemos com Ele porque está aqui para isto; e quando devamos superar dificuldades como a falta de compreensão ou a falta de fé, levemo-las diretamente ao Senhor, dizendo: "Senhor, abre meus olhos. Senhor, ajuda-me em minha incredulidade". Não seremos nunca desapontados.

OS QUATRO ASPECTOS DA OBRA DE CRISTO SOBRE A CRUZ
Estamos agora em condições de avançar um passo, para considerar a grandeza e a profundidade infinita da obra da Cruz do Senhor Jesus. À luz da experiência cristã, e com o objetivo de analisar esta obra, nos resultará talvez útil reconhecer quatro aspectos da obra redentora de Deus. Mas, enquanto o fazemos, é necessário ter bem presente que a Cruz de Cristo é uma única obra divina e não uma seqüência de obras. Um dia, na Judéia, dois mil anos atrás, o Senhor Jesus morreu e ressuscitou e está agora "exaltado pela destra de Deus" (Atos 2:33). A obra foi cumprida e não há necessidade de ser repetida, nem pode ser agregado nada a ela.
Dos quatro aspectos da Cruz que agora mencionaremos, já examinamos três detalhadamente. O último será estudado nos capítulos seguintes do nosso estudo.
Podemos entretanto resumi-los brevemente deste modo:
O sangue de Cristo que age a respeito dos pecados e da culpa.
A Cruz de Cristo que age a respeito do pecado, da carne e do homem natural.
A vida de Cristo, que se transmite ao homem, o regenera e o fortifica.
A ação da morte, no homem natural, a fim que a vida que habita nele possa manifestar-se progressivamente.
Os primeiros destes aspectos têm o caráter de reparação. Eles estão ligados à demolição da obra de Satanás, e à destruição do pecado do homem. Os dois últimos são positivos e se relacionam mas diretamente com o cumprimento do desígnio de Deus. Os dois primeiros são necessários para recuperar o que Adão tinha perdido em sua queda; os dois últimos devem fazer-nos entrar em possessão e levar a nós aquilo que Adão nunca teve. Vemos assim que tudo aquilo que o Senhor cumpriu em sua morte e em sua ressurreição compreende ao mesmo tempo uma obra que proveu a redenção do homem e uma obra que rendeu possível o cumprimento do desígnio de Deus.
Nos detivemos bastante, nos capítulos precedentes, sobre dois aspectos da morte de Cristo, representados pelo sangue vertido para os pecados e a culpa, e pela Cruz erigida a causa do pecado e da carne. Em nosso estudo sobre o desígnio de Deus consideramos brevemente o terceiro aspecto, aquele que Cristo prefigurou na espiga de grão; no último capítulo, considerando a Cristo como a nossa vida, fomos conduzidos a experimentar alguma coisa de sua realização prática. Antes, porém, de chegar ao quarto aspecto, que chamarei "carregar a Cruz", devemos dizer alguma coisa a mais sobre este quarto aspecto, vale dizer, sobre a ação da vida de ressurreição de Cristo no transmitir-se ao homem, no dar-lhe força para o serviço de Deus.
Falamos já do desígnio de Deus na criação, e dissemos que ele compreendia muito mais que aquilo que Adão pode jamais degustar. Qual era este desígnio? Deus desejava uma espécie de homens, cada um dos quais recebesse como dom um espírito, por meio do qual fosse possível a comunhão com Ele, que é Espírito. Esta raça, possuindo a vida própria de Deus, devia cooperar com Ele no cumprimento de Seu plano eterno, dominando todas as rebeliões possíveis do inimigo e destruindo suas obras malvadas. Este era o grande plano de Deus. Como poderá, agora, ser realizado? A resposta está ainda na morte do Senhor Jesus. Essa é uma morte poderosa, que vai muito além da conquista de uma posição perdida; porque por ela não somente os pecados e o velho homem foram eliminados, mas foi introduzida alguma coisa infinitamente maior e definitiva.

O AMOR DE CRISTO
É necessário agora ter diante de nós dois parágrafos da Palavra de Deus, um extraído de Gênesis 2 e o outro de Efésios 5. Considerados juntos, têm enorme importância para o nosso estudo.
"Então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; e da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada" (Gn 2:21-23).
"Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível" (Ef 5:25-27).
Temos, em Efésios 5, o único capítulo da Bíblia que nos explica a passagem de Gênesis 2. Aquele da carta aos Efésios é certamente muito importante, se refletimos um pouco. Estou me referindo ao que contém estas palavras: "Cristo amou a igreja". Há aqui alguma coisa infinitamente preciosa.
Fomos ensinados a considerar-nos como pecadores que têm a necessidade de ser resgatados. Por muitas gerações este ensino impregnou o nosso espírito, e nos agradecemos o Senhor por isto, porque é o nosso princípio; mas não é o que Deus pretendia que se realizasse no final. Deus nos fala aqui mais bem de uma "igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível". Demasiado amiúde pensamos na Igreja simplesmente como um conjunto de "pecadores salvos". Ela é isso, e nós consideramos os dois termos como equivalente, como se ela fosse como isto; mas a Igreja é muito mais que isto. Pecadores salvos: nesta expressão temos todo o velho transfundo do pecado e da queda; mas, aos olhos de Deus, a Igreja é uma criação divina em seu Filho. O primeiro termo é essencialmente individual; o segundo nos apresenta um corpo constituído. O primeiro nos mostra um fato negativo que pertence ao passado; o segundo, um fato positivo que tende ao futuro. O "desígnio eterno" está na mente de Deus desde toda a eternidade, tem a ver com seu Filho e tem como fim que o Filho tenha um corpo para manifestar sua vida. Visto desde esta perspectiva —ou seja aquela do coração de Deus—, a Igreja é alguma coisa que supera o pecado e não foi mais tocada por ele.
Temos assim, na epístola aos efésios, um aspecto da morte do Senhor Jesus que não encontramos expresso tão claramente em nenhum outro texto. Na carta aos Romanos, as coisas são consideradas desde o ponto de vista do homem e de sua queda, e partindo da frase "Cristo morreu pelos ímpios", pecadores, inimigos, somos conduzidos progressivamente (Romanos 5:6-10) ao "amor de Cristo" (Romanos 8:35). Ao contrário, na epístola aos Efésios o ponto de vista é o de Deus, "antes da criação do mundo" (Efésios 1:4), e o coração do Evangelho é: "Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela" (Efésios 5:25). Assim, em Romanos temos "nós pecamos" e a mensagem diz respeito ao amor de Deus pelos pecadores (Romanos 5:8), enquanto em Efésios temos: "Cristo amou" e o amor que aqui encontramos é o do esposo pela esposa. Este parágrafo não tem a ver com a expiação do pecado, mas com a criação da Igreja, da qual nos é dito: "e a si mesmo se entregou por ela".
Existe assim na morte do Senhor Jesus um aspecto inteiramente positivo, no qual fica em evidência o amor pela sua Igreja, e onde não figura diretamente a questão do pecado e dos pecadores. Para melhor ressaltar este aspecto, Paulo adota como ilustrações o fato de Gênesis 2. Mas este é um dos parágrafos mas belos da Palavra de Deus; e se os nossos olhos foram abertos para vê-lo, seremos certamente impulsionados à adoração.
Partindo de Gênesis 3, das "vestes de pele" até o sacrifício de Abel, e daí através de todo o Antigo Testamento, acharemos numerosos símbolos que representam a morte do Senhor Jesus sob o seu aspecto de expiação pelo pecado; ainda assim, o apóstolo não se refere aqui a nenhum desses tipos de sua morte, mas unicamente a este de Gênesis 2. Observemos bem e lembremos que o pecado aparece só em Gênesis 3. Há, no Antigo Testamento, um símbolo da morte de Cristo que não tem nada a ver com o pecado, porque não segue a queda, mas a precede, e está aqui em Gênesis 2. Detenhamo-nos neste ponto por um instante.
Podemos dizer que Deus fez cair sobre Adão um profundo sono porque Eva tinha cometido um grave pecado? É o que encontramos aqui? Certamente que não, porque Eva não tinha ainda sido criada. Não existia ainda nenhuma exigência moral, de fato, nenhum problema. Não, Adão foi adormecido com a intenção bem determinada de tirar alguma coisa dele para formar um outro ser como ele. Seu sono não foi causado por nenhum pecado de Eva, mas para a sua existência. Eis o que nos ensina este fragmento. Esta experiência de Adão tinha como objetivo a criação de Eva, como uma coisa determinada pelo conselho divino. Deus queria uma "ishah". Ele fez cair o sono sobre o homem (ish), pegou uma de suas costelas, fez uma "ishah" (mulher) e a apresentou ao homem. Este é o quadro que Deus nos apresenta. Ele preanuncia um aspecto da morte do Senhor Jesus, que não se refere à expiação do pecado, mas que corresponde àquilo que é dito sobre o sono de Adão, neste capítulo.
Deus me livre de afirmar que o Senhor Jesus não morreu com vista à expiação. Deus seja louvado! Ele morreu mesmo com este objetivo. Mas devemos lembrar-nos que hoje somos o objeto da situação de que se fala em Efésios 5, e não daquela de Gênesis 2. A epístola aos Efésios foi escrita depois da queda, para homens que tinham sofrido por causa dela; e aqui achamos não somente o desígnio de Deus na criação, mas também as cicatrizes da queda, pois de outra forma não teria sido necessário mencionar as "máculas" e "rugas". Porque estamos ainda sobre esta terra e a queda é um fato histórico, é necessária a redenção (Ef 1:7).
Mas devemos sempre considerar a redenção como uma instrução, uma medida de "emergência" que se fez necessária a causa de uma ruptura catastrófica na linha direta do desígnio de Deus. A redenção é tão grande, tão maravilhosa, que ocupa um imenso lugar em nossa visão, mas Deus nos diz para não considerarmos a redenção como uma coisa única, como se o homem tivesse sido criado para ser resgatado. A queda foi realmente um trágico derrubamento no desígnio de Deus, e a expiação uma reparação abençoada, pela qual os nossos pecados foram cancelados, e nós fomos restabelecidos em nossa posição perante Deus; mas, uma vez cumprida esta obra, falta ainda uma outra para ser realizada, porque somos conduzidos a possuir o que Adão nunca conheceu, para dar ao Senhor aquilo que Seu coração almeja. Porque Deus nunca abandonou o desígnio representado por aquela linha perfeita. Adão nunca entrou em possessão da vida de Deus, como é prefigurada na árvore da vida. Mas a causa da obra única que o Senhor Jesus cumpriu em sua morte e ressurreição (e devemos ainda ressaltar que tudo isso é uma única obra), a sua vida foi entregue para ser nossa pela fé, e nós recebemos mais do que Adão tinha jamais possuído. O verdadeiro desígnio de Deus se cumpre em nós quando recebemos Cristo como nossa vida.
Deus fez cair Adão num sono profundo. Lembremos que é dito aos crentes que eles adormecem, e não que morrem. Por quê? Porque lá, onde é mencionada a morte, apresenta-se sempre no fundo o pecado. Em Gênesis 3 se diz que o pecado entrou no mundo e através do pecado entrou a morte; mas o sono de Adão precedeu tudo isto. Assim a figura que temos aqui do Senhor Jesus é diferente de todas as outras figuras do Antigo Testamento. Quando se trata do pecado e da expiação, é preciso imolar um cordeiro ou um bezerro; mas aqui Adão não foi colocado na morte, senão somente adormecido para voltar acordar. Assim ele figura uma morte que não é imputável ao pecado, mas que tem como objetivo o desenvolvimento na ressurreição. Devemos observar que Eva não foi criada como uma entidade diferente, com uma criação separada, paralela à de Adão. Adão dormia e Eva foi tirada dele. Nesta mesma forma Deus criou a Igreja. O "segundo homem" de Deus acordou de seu "sono", e sua Igreja foi criada nEle para tomar a vida dEle, e manifestar a vida da ressurreição.
Deus tem um Filho, o seu Unigênito; e deseja que este Filho tenha irmãos. Ele deve mudar a sua qualidade de Filho único por aquela de Primogênito para que, em vez de um Filho único, Deus tenha muitos filhos. Uma espiga de grão morreu e muitos grãos germinarão. O primeiro grãozinho foi, uma vez, o único grãozinho; agora se converteu no primeiro de muitos grãozinhos. O Senhor Jesus depôs sua vida e essa vida emergiu em muitas vidas. Estas são as figuras bíblicas que utilizamos até aqui, em nosso estudo, para demonstrar esta verdade. Ora, na figura de Eva o singular tomará o lugar do plural. O fruto da Cruz é uma única pessoa: uma Esposa para o Filho. "Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela".

UM ÚNICO SACRIFÍCIO VIVENTE
Dizemos que a epístola aos Efésios, no capítulo 5, nos apresenta um aspecto da morte de Cristo que, numa certa medida, é diferente daquilo que estudamos na carta aos Romanos. Ainda assim, este aspecto é o ponto essencial ao qual tende o nosso estudo desta carta e a ele este estudo nos conduz, como veremos em seguida, porque a redenção nos volta a levar ao desígnio original de Deus. No capítulo 8 da epístola aos Romanos, Paulo nos fala de Cristo como do Filho primogênito entre muitos "filhos de Deus" que o Espírito conduz (Romanos 8:4). "Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos; e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou" (Rm 8:29-30). Vemos aqui que a justificação nos conduz à glória, uma glória que se expressa não em um ou em outro indivíduo separado, mas em uma pluralidade, num conjunto corpóreo, que ao mesmo tempo manifesta a imagem de "Um" só. E este motivo de nossa redenção nos é apresentado a seguir, como vimos, no "amor de Cristo" pelos seus, que é o objeto dos últimos versículos do capítulo: "Quem nos separará do amor de Cristo? a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte o dia todo; fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Mas em todas estas coisas somos mais que vencedores, por aquele que nos amou. Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem anjos, nem principados, nem coisas presentes, nem futuras, nem potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 8:35-39).
Mas o que está aqui implícito, neste oitavo capítulo, converte-se em explícito quando chegamos ao capítulo 12, cujo tema é precisamente o Corpo de Cristo.
Depois dos oito primeiros capítulos da carta aos Romanos, que estudamos, segue-se um parêntese no qual Paulo, antes de resumir o objeto dos primeiros capítulos, começa a falar das vias soberanas de Deus a respeito de Israel. Assim, de acordo com o objeto de que nos ocupamos agora, o argumento do capítulo 12 segue-se ao do capítulo 8, e não ao do capítulo 11.
Podemos mui simplesmente resumir a mensagem destes capítulos como se segue: os nossos pecados foram perdoados (capítulo 5); nós morremos com Cristo (capítulo 6); somos por natureza completamente incapazes (capítulo 7); portanto confiamos no Espírito que mora em nós (capítulo 8). Depois disto, as conseqüências: "nós formamos um só corpo em Cristo" (capítulo 12). Eis o resultado lógico de tudo o que tem precedido, e o ponto chave para onde tudo converge.
Este capítulo 12 aos Romanos, como aqueles que o seguem, contém ensinos de ordem prática para a nossa vida. Paulo nos introduz com um novo apelo à consagração. No capítulo 6:13, diz: "mas apresentai-vos a Deus, como redivivos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça". Mas agora, no capítulo 12:1, o acento é um pouco diferente: "Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional". Este novo apelo à consagração está dirigido a nós como "irmãos", re-ligando-nos no pensamento, aos "muitos irmãos" do capítulo 8:29. É um apelo que nos pede de realizar todos juntos um passo de fé, que nos incita a apresentar nossos corpos como um "sacrifício vivo" a Deus. Isto ultrapassa o que é puramente individual, porque implica a participação num todo. A "apresentação" é pessoal, mas o sacrifício é coletivo; é um único sacrifício. O serviço consciente a Deus é um serviço para cumprirmos juntos. Não devemos nunca pensar que nosso trabalho não seja necessário, porque ainda que só contribuísse ao único serviço, Deus estaria satisfeito. E através dum serviço deste tipo, nós discernimos "qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus" (Rm 12:2); ou bem, em outros termos, percebemos o lugar que ocupamos no desígnio eterno de Deus, em Jesus Cristo. Assim o apelo de Paulo dirigido a "cada um dentre vós" (12:3), deve ser entendido à luz desta nova realidade divina, que "assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, e individualmente uns dos outros" (Rm 12:5) e, sobre este fundamento, seguem-se os ensinos práticos.
O instrumento por meio do qual o Senhor Jesus pode revelar-se a esta geração não é o indivíduo, mas o corpo. Certamente Deus destinou a cada um uma "medida de fé" (12:3); mas sozinho e isolado, o homem não poderá nunca cumprir o desígnio de Deus. É necessário um corpo inteiro para alcançar a estatura perfeita de Cristo e para manifestar sua glória. Assim, em Romanos 12:3-6, Paulo extrai da figura do corpo humano a lição de nossa inteira dependência. Os cristãos singulares não são o corpo, eles são os membros do corpo. No corpo humano "os membros não têm todos a mesma função": a orelha não pode acreditar de ser um olho; a oração, por fervorosa que seja, não poderá nunca obter a visão para o ouvido, porém, todo o corpo vê por meio do olho. Assim, falando em sentido figurado, eu posso ter somente o dom do ouvido, mas poderei ver por meio de outros que têm o dom da vista; ou talvez eu possa caminhar, mas não trabalhar; e então recebo ajuda das mãos. Um comportamento demasiado comum a respeito das coisas do Senhor é o de pensar: "O que eu sou, sou; e o que não sou, não sou; e posso muito bem fazer menos"; mas em Cristo as coisas que não sabemos, outros as conhecem e por meio deles nós podemos conhecê-las e rejubilar-nos.
Permitam-me remarcar o fato que este não é o único pensamento reconfortante: é um elemento vital da vida dos filhos de Deus. não podemos fazer a menos uns pelos outros. Por isto a comunhão na oração é tão importante. A oração conjunta incrementa o Corpo, como se vê claramente em Mateus 18:19-20: "Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles". Pode não ser suficiente que eu confie sozinho no Senhor; é necessário que confie nEle junto com os outros. É necessário que aprenda a dizer: "Pai nosso" sobre o fundamento da unidade com o Corpo, porque não servirei para nada sem a ajuda do Corpo. No que faz ao serviço isto é ainda mais evidente. Sozinho, eu, não posso servir o Senhor com eficácia, e Ele não me poupará nenhuma dificuldade para me fazer ver isso. Ele porá fim a todas as coisas, permitirá que as portas se fechem e me deixará bater em vão a cabeça contra a parede, até que eu tenha aprendido que necessito do auxílio do Corpo tanto como o do Senhor. Porque a vida de Cristo é a vida do Corpo, e os seus dons nos acordaram para que cooperemos com a edificação do Corpo. O Corpo não é uma imagem, é um fato.
A Bíblia não diz que a Igreja seja similar a um corpo, mas que ela é o "Corpo de Cristo". Nós, que somos muitos, formamos um só corpo em Cristo e somos todos membros os uns dos outros. Todos os membros reunidos são um único Corpo porque todos participam de sua vida, como se Ele se subdividisse entre seus membros. Eu estava, um dia, com um grupo de crentes chineses que tinham dificuldade para compreender como o Corpo pudesse ser um, quando aqueles que o compõem são tantos homens e mulheres distantes e separados. Um domingo eu estava a ponto de partir o pão para a Ceia do Senhor, mas antes atraí a atenção deles sobre aquele pão. A seguir, depois que ele foi distribuído e comido, fiz observar a eles que, ainda tendo-o repartido todo entre todos eles, continuava a ser um pão e não muitos pães: o pão havia sido dividido, mas Cristo não é dividido nem sequer no sentido em que o pão tinha sido. Ele continua a ser um único Espírito em nós, e nós somos todos "um" nEle.
Este é o verdadeiro oposto da condição natural do homem. Em Adão eu possuo a vida de Adão, mas essa vida é essencialmente individual. Não existe nenhuma união ou irmandade com o pecado, mas somente interesse pessoal e desconfiança respeito aos outros. Mas quando avanço com o Senhor, não demoro em descobrir que o problema do meu pecado e de minha força natural deve ser resolvido, mas que ainda existe um outro problema, o da minha vida individual, daquela vida que é auto-suficiente e não reconhece sua necessidade de união com o Corpo. Posso ter achado a solução dos problemas do pecado e da carne e permanecer um teimoso individualista. Desejo santidade e vitória e conseguir muito fruto para mim pessoalmente, à margem das tentativas mais puras; mas semelhante comportamento ignora o Corpo, e não pode dar satisfação a Deus. Ele deve então agir em mim também nisto, de outro modo eu ficarei em oposição a Sua vontade. Deus não me censura por ser um indivíduo, mas condena o meu individualismo. A Sua maior dor não é a divisão e a denominação externa que divide a Sua Igreja, mas nossos próprios corações individualistas.
Sim, é necessário que a Cruz realize sua obra em mim, lembrando-me que estou morto em Cristo para a velha vida independente que herdei de Adão, e que na ressurreição me converti não somente num crente individual em Cristo, mas num membro do Seu Corpo. Existe uma grande diferença entre estas duas coisas. Quando tenha compreendido isto deverei logo acabar de vez com a minha independência e deverei procurar irmandade. A vida de Cristo em mim me impelirá rumo à vida do Cristo nos outros. Não poderei mais continuar um caminho individual. O ciúme desaparecerá, a rivalidade cairá, a obra privada cessará. Os meus interesses, as minhas ambições, as minhas preferências, tudo isso desaparecerá. Pouco importará quem entre nós cumprirá a obra. Tudo quanto importará será que o Corpo cresça. Eu disse: "quando tenha entendido isto..." É exatamente o que é necessário: "Ver o Corpo de Cristo como uma outra grande realidade divina; ter assimilado em nosso espírito, por revelação celestial, que nós que somos muitos, formamos um só corpo em Cristo". Somente o Espírito pode fazer-nos compreender completamente este significado, mas quando o faz transtorna a nossa vida e o nosso trabalho.

MAIS QUE VENCEDORES EM VIRTUDE DE CRISTO
Nós conhecemos somente a história depois da queda. Deus a vê desde o princípio. Havia alguma coisa em seu desígnio antes da queda e, no futuro, esta realidade será plenamente cumprida. Deus sabia todo acerca do pecado e da redenção; ainda assim, em seu grande plano com vistas a Igreja, que nos foi apresentado em Gênesis 2, o pecado não aparece para nada. É como se (falando em termos limitados) Deus tivesse pulado com o pensamento toda a história da redenção, e visse agora a Igreja na eternidade futura, tendo um ministério e uma história (futura), completamente fora do pecado e inteiramente de Deus. É o Corpo de Cristo na glória, sem nenhuma referência ao homem caído, mas referente só ao homem que é a imagem do Filho do Homem glorificado. Esta é a Igreja que satisfaz o coração de Deus e que chegou à soberania.
Em Efésios 5 nos encontramos de cheio na história da redenção, porém, pela sua graça, temos ainda diante o eterno desígnio de Deus, expresso na afirmação que "Ele nos dará uma Igreja gloriosa".
Agora observamos que a Igreja (contaminada pela queda) tem necessidade de ser preparada com a água da vida e com a Palavra que purifica para ser apresentada a Cristo em sua glória. Porque existem nela defeitos aos quais é preciso remediar e feridas que é necessário curar. Ainda assim, quão preciosa é a promessa e como são ricas de graça as palavras que a descrevem: "sem mácula" (as cicatrizes do pecado), cuja própria história é esquecida; "sem ruga" (as marcas da idade e do tempo perdido), que são canceladas porque tudo foi agora reparado e tudo é novo; "irrepreensível", de forma que nem Satanás, nem os homens podem achar nela nenhuma base de acusação.
Eis aqui aonde temos chegado. O tempo corre para a fim, e o poder de Satanás é maior do que nunca. Nós devemos lutar contra os anjos, as potestades, os dominadores deste mundo de trevas (Romanos 8:38; Efésios 6:12), os quais estão decididos a combater e destruir a obra de Deus em nós, tentando por todos os médios de acusar os eleitos de Deus. Sozinhos não poderemos afrontar semelhantes adversários; mas o que não podemos fazer sozinhos, pode fazê-lo a Igreja. O pecado, a fé em nós mesmos e o individualismo foram os golpes mestres que Satanás levou ao coração do plano de Deus para o homem; porém, na Cruz, Deus anulou seus efeitos. Quando depositamos a nossa fé naquilo que Ele tem cumprido —em "Deus que justifica" e em "Jesus cruz que morreu" (Romanos 8:33-34)—, formamos uma barreira contra a qual as portas do inferno não poderão prevalecer. Nós, a Igreja, somos "mais que vencedores, por aquele que nos amou" (Romanos 8:37).


CAPÍTULO 12 – A CRUZ E A VIDA DA ALMA

Deus tem plenamente provido à nossa redenção por meio da Cruz de Cristo, mas não se deteve nisto somente. Na Cruz também segurou, contra toda possibilidade de falha, o desígnio eterno do qual Paulo fala em Efésios 3:9-11: "...e demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou, para que agora seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regiões celestes, segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor".
Dizemos que da obra da Cruz resultaram duas conseqüências, ligadas diretamente ao cumprimento deste plano em nós. De uma parte, mediante esta obra, a vida de Cristo foi entregue para encontrar sua expressão em nós, por meio do Espírito Santo que mora em nós. Por outra parte, ela fez possível aquilo que chamamos "carregar a cruz"; vale dizer, a nossa cooperação na ação do dia-a-dia de sua morte, para que esta nova vida seja manifestada em nós, de forma que o "homem natural" seja progressivamente conduzido ao lugar que deve ocupar em submissão ao Espírito Santo. Estas duas conseqüências são claramente dois aspectos, um positivo e o outro negativo, da mesma obra. Está claro que nos referimos particularmente ao problema do proceder em uma vida vivenciada para o Senhor. Até aqui, estudando a vida cristã, nos detivemos nas crises que constituem seu início. Nos ocuparemos agora especialmente do caminho do discípulo, tendo mais claramente em vista seu adestramento para ser um servo de Deus. Dele tem dito o Senhor Jesus: "Quem não leva a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo" (Lucas 14:27).
Devemos então examinar o que é um homem natural e que significa "levar a cruz". Para compreendê-lo é preciso voltar mais uma vez ao Gênesis, e considerar como Deus queria que fosse o homem, quando o criou, e como seu plano foi obstaculizado. Poderemos, deste modo, compreender os princípios em base aos quais fomos feitos aptos para viver novamente em harmonia com este plano.

A VERDADEIRA NATUREZA DA QUEDA
Se tivermos somente uma revelação limitada do plano de Deus, não podemos menos que perceber a importância atribuída à palavra "homem". Nós diremos com o salmista: "O que é o homem, para que te lembres dele?" (Salmo 8:4). A Bíblia nos mostra claramente que aquilo que Deus deseja sobretudo é um homem, um homem segundo Seu coração.
Deus cria, então, um homem. Nós aprendemos de Gênesis 2:7 que Adão foi criado "alma vivente", dotado de um espírito com que podia comunicar-se com Deus, e de um corpo físico para estar em contacto com a natureza material. (Diversos fragmentos do Novo Testamento, como 1 Tessalonicenses 5:23 e Hebreus 4:12, confirmam esta tríplice natureza do ser humano). Por meio de seu espírito, Adão estava em contacto com o mundo espiritual de Deus; através de seu corpo estava em contacto com o mundo físico das coisas materiais. Ele reunia em si estes dois aspectos da ação criadora de Deus e se convertia, assim, numa personalidade, uma entidade vivente no mundo, auto-determinada e com a faculdade da livre escolha. Considerado em seu conjunto, ele era então um ser consciente de si e capaz de expressar-se por si mesmo, uma "alma vivente"
Vimos já que Adão foi criado perfeito; com isto queremos dizer que não tinha imperfeições, porque foi criado por Deus, mas não tinha ainda sido "convertido" em perfeito. Ainda necessitava de um último retoque: Deus não havia cumprido tudo o que tinha intenção de fazer em Adão. Ele tinha alguma coisa a mais em vista, porém tudo isso estava então suspenso. Deus havia procedido ao cumprimento de Seu plano criando o homem, mas seu plano ia além do homem, porque devia assegurar a Deus todos os seus direitos no universo, graças a um instrumento: o homem mesmo. Mas como podia o homem ser o instrumento do plano de Deus? Unicamente com uma cooperação derivante de uma união vivente com Deus. Deus procurou ter sobre a terra não somente uma raça de homens do mesmo sangue, mas uma raça em cujo membro residisse a Sua vida. Uma raça como essa devia superar a queda de Satanás e efetivar tudo aquilo que Deus tinha no coração. Isto era o que Deus tinha em vista na criação do homem.
 Vimos, também, que Adão foi criado neutro. Ele tinha uma espírito que o capacitava para estar em comunhão com Deus; mas como homem ele não estava ainda, por assim dizer, definitivamente orientado; tinha o poder e a faculdade de escolher, porém podia, se o desejasse, tender para o lado oposto. O fim de Deus para o homem era "o estado de filho", ou, em outras palavras, a demonstração de sua vida nos seres humanos. Esta vida divina estava representada no jardim do Éden pela árvore da vida, a qual produzia um fruto que o homem podia receber, aceitar, comer. Se Adão, criado neutro, tivesse se encaminhado voluntariamente nesta via e, escolhendo depender de Deus, tivesse recebido o fruto da árvore da vida (que representava a vida mesma de Deus), Deus teria sua vida em comunhão com os homens; Ele teria obtido filhos espirituais. Mas se, ao contrário, Adão se tivesse voltado para a árvore do conhecimento do bem e do mal, teria estado, em conseqüência, "livre" para desenvolver-se, segundo seus próprios instintos, fora de Deus. Porém, como esta última escolha implicava cumplicidade com Satanás, Adão encontrou-se assim na impossibilidade de alcançar o fim a que Deus o tinha destinado.

A ALMA HUMANA
Agora conhecemos o caminho escolhido por Adão. Achando-se entre as duas árvores cedeu a Satanás e pegou o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Isto determinou a orientação do seu desenvolvimento. Daquele momento em diante, ele dispus de uma consciência; "ele conhecia". Mas —e aqui chegamos ao ponto— o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal fez do primeiro homem um ser sobre-desenvolvido em sua alma. A emoção foi tocada, porque o fruto era desejável aos olhos, e ele "desejou"; a mente, com sua possibilidade de arrazoar, se desenvolveu porque ele foi feito "inteligente"; e a sua vontade fortificou-se de forma de poder sempre, no futuro, decidir seu caminho. O fruto serviu para a apertura e desenvolvimento da alma, de forma que o homem não foi mas somente uma alma vivente, mas daí em diante viveu segundo a sua alma. O homem não possui então mais simplesmente uma alma, mas daquele dia em diante, a alma, com seu poder indispensável de livre escolha, tomou o lugar do espírito como força animadora do homem. Devemos fazer aqui uma distinção entre as duas coisas, porque a diferença é muito importante. Deus não se opõe ao fato —que é uma realidade em Suas intenções— de que nós tenhamos uma alma como aquela que foi dada a Adão. Mas o plano que Deus nos assinou é o de desenvolver alguma coisa. Existe, hoje, algo no homem que não deriva simplesmente da existência de sua alma, mas do fato que ele vive segundo a sua alma. Isto é o que Satanás introduziu por meio da queda. Ele empurrou o homem a empenhar-se num caminho onde sua alma ter-se-ia desenvolvido a ponto tal de converter-se na fonte mesma de sua vida.
Devemos, porém, prestar atenção. Para remediar isto, não é necessário que nós procuremos anular todo aquilo que está na alma. Ninguém pode fazer isto. Se hoje a Cruz age verdadeiramente em nós, isto não significa que fiquemos inertes, insensíveis, sem caráter. Nós possuímos ainda uma alma e todas as vezes que recebemos alguma coisa de Deus, ela nos resultará útil, mas como um instrumento, uma faculdade submetida exclusivamente a Deus. Todavia, o interrogante é o seguinte: no que concerne à alma, ficamos nos limites fixados por Deus, ou seja, nos termos que Ele estabeleceu no princípio no jardim do Éden, ou nos saímos destes limites?
O que Deus está fazendo agora é o trabalho do vinhateiro quando constrói uma sebe em volta da vinha. Existe, em nossa alma, um desenvolvimento indisciplinado, um crescimento desregulado que deve ser controlado. É necessário que Deus elimine tudo isto. É necessário que os nossos olhos sejam abertos a estes aspectos da ação de Deus em nós. Por um lado, o Senhor procura deixar-nos em condições de viver a vida de seu Filho. Por outra parte, Ele prossegue uma ação direta em nosso coração, para destruir os outros recursos naturais que são o fruto do conhecimento. A cada dia aprendemos estas duas lições: um acréscimo da vida de seu Filho, e uma limitação, até a extinção, da outra vida da alma. Estas duas ações continuam sem trégua, porque o Senhor deseja um desenvolvimento perfeito da vida de seu Filho em nós, com o objetivo de revelar a Si mesmo; e por este meio nos re-conduz, naquilo que concerne a nossa alma, ao ponto de partida de Adão. Paulo disse a este respeito: "pois nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal" (2 Coríntios 4:11).
O que significa isto? Quer dizer simplesmente que eu não empreenderei nada sem confiar-me a Deus. Não acharei nenhuma capacidade em mim mesmo. Não darei nenhum passo porque não tenho o poder de dá-lo. Embora tenha em mim aquele poder que herdei, não o usarei; não colocarei fé alguma em mim mesmo. Tomando o fruto, Adão se converteu em possuidor de um poder de agir autonomamente; contudo, de um poder que, mantendo-o independente de Deus, o colocou diretamente nas mãos de Satanás. Nós perdemos este poder de atuar quando chegamos a conhecer o Senhor. Ele nos libera e descobrimos que agora nos resulta impossível agir segundo as nossas próprias iniciativas. Nós devemos viver pela força de UM OUTRO; devemos receber tudo dEle.
Meus queridos amigos, eu creio que conhecemos nós mesmos até um certo ponto; mas demasiado freqüentemente não trememos por aquilo que somos. Podemos dizer, com uma espécie de condescendência para com Deus: "Se o Senhor não quer isto, eu não posso fazê-lo", mas, em realidade, o nosso subconsciente afirma que podemos agir muito bem por nós mesmos, também quando o Senhor não no-lo pede e nem nos dá a força para fazê-lo. Somos, demasiado amiúde, impulsionados a atuar, a pensar, a decidir, a manifestar a nossa força independentemente dEle. Muitos cristãos entre nós hoje em dia são seres sobre-desenvolvidos na alma. Somos demasiado grandes em nós mesmos; estamos "dominados pela nossa alma".
Quando nos encontramos neste estado, a vida do Filho de Deus está limitada em nós, e quase que obstaculizada em sua ação.

A ENERGIA NATURAL NA OBRA DE DEUS
A força e a energia da alma se encontram em todos nós. Aqueles que estiveram na escola do Senhor rejeitam aceitar este princípio como um princípio de vida; desistem de viver segundo ele; não desejam ser dominados e não lhe permitem de ser a fonte de suas forças na obra de Deus. Mas aqueles que não foram instruídos por Deus confiam nelas; as utilizam, pensam que isso seja a força.
Tomemos, antes que nada, um exemplo evidente. Muitos são aqueles dentre nós que no passado arrazoaram desta forma: "Eis um homem de caráter amável, bom, dotado de uma inteligência clara, de um caráter seguro, que possui excelentes aptidões organizativas". Em nosso íntimo pensamos: "Se este homem fosse crente, quanta riqueza receberia a Igreja! Se somente pertencesse ao Senhor, que valor representaria para a Sua causa!"
 Porém, reflitamos um instante. Onde conseguiu este homem o seu bom caráter? De onde lhe vêm estas atitudes de bom organizador e a sua segurança de ação? Não do novo nascimento, porque ele não é ainda nascido de novo. Sabemos que todos nós somos nascidos da carne; portanto, é necessário nascer de novo. Mas o Senhor Jesus disse, a este propósito, em João 3:6, que "o que é nascido da carne é carne". Tudo aquilo que provém não do novo nascimento, senão da natureza, é carne, e somente pode dar glória ao homem, nunca a Deus. Esta declaração é amarga, mas verdadeira.
Falamos do poder da alma ou energia natural. O que é esta energia natural? É simplesmente o que posso fazer, o que eu posso de mim mesmo, o que eu herdei em dons e recursos naturais. Não existe ninguém entre nós que possua esta força da alma, e a nossa primeira grande necessidade é a de reconhecer sua natureza real.
Tomemos por exemplo a inteligência humana. Eu posso ter por natureza um pensamento e um razoamento claro, bem estabelecido. Antes de meu novo nascimento, eu possuo por natureza, como alguma coisa que se desenvolveu em mim normalmente desde o meu nascimento natural. Mas a dificuldade surge aqui. Eu me converti, nasci de novo, uma obra profunda atuou em meu espírito, uma união essencial foi estabelecida com o Pai em meu espírito. Existem então duas coisas em mim: eu estou unido a Deus, com uma ligação que se estabeleceu em meu espírito, mas ao mesmo tempo carrego alguma coisa em mim que deriva ainda do meu nascimento natural. O que devo fazer com isto?
A tendência natural é esta: eu exercia antes a minha inteligente com grande interesse na história, nos feitos, na química, nos problemas deste mundo, na literatura, na poesia. Consagrava todo o meu pensamento a alcançar aquilo que havia de melhor nestes estudos. Agora, os meus desejos mudaram, e eu utilizo hoje a minha mente, exatamente da mesma forma, nas coisas de Deus. Tenho então mudado o objeto do meu interesse, mas não mudei o meu método de trabalho. Eis a solução do problema. Os meus interesses foram completamente mudados (Deus seja louvado por isto!), mas agora, para estudar a epístola aos Coríntios e aos Efésios, realizo o mesmo empenho que antes adotava para estudar história ou geografia. Mas este engenho não pertence à nova criação, e Deus não pode ficar satisfeito somente com esta mudança de interesse. A dificuldade para muitos de nós reside no fato que mudamos a direção rumo a qual estavam voltadas as nossas energias, sem ter mudado a fonte destas energias.
Veremos que existe uma quantidade de coisas deste estilo que transferimos do domínio natural para o serviço do Senhor. Consideremos o dom da eloqüência. Existem homens que são oradores natos; eles podem apresentar um tema de forma convincente. Eles se convertem e nós, sem perguntar-nos qual seja a posição deles a respeito das coisas espirituais, os colocamos sobre um púlpito e os convertemos em predicadores. Os encorajamos para usar seus dons naturais para a predicação do Evangelho, e isto é ainda uma mudança do objeto, conservando a mesma fonte de energia. Esquecemos que, quando se trata dos recursos necessários para tratar das coisas de Deus, não é mais questão de valor efetivo, mas de origem; é necessário ver de qual fonte obtemos as nossas energias. Não se trata daquilo que fazemos, antes bem dos recursos que utilizamos e de quem dirige estas energias. O homem apto para ser utilizado por Deus, pode muito bem ser eloqüente, mas existe o signo da Cruz sobre essa eloqüência, e no modo como a usa é evidente a marca da ação do Espírito de Deus. Nós não pensamos suficientemente na fonte de nossas energias, e pensamos demasiado no objetivo ao qual estão dirigidas, esquecendo que, para o Senhor, o fim não justifica os meios.
O exemplo que se segue nos permitirá provar a verdade destes pensamentos.
O senhor A. é um excelente orador; pode falar com grande facilidade, de forma convincente sobre qualquer argumento, mas para as coisas práticas da vida não tem nenhuma aptidão. O senhor B., ao contrário, é um orador mísero; não sabe nem sequer se expressar com clareza, e gira sempre em volta do seu argumento sem nunca atingir uma conclusão; porém, é um organizador cheio de recursos, competente em muitos campos; um homem prático. Estes dois homens se convertem e são verdadeiros crentes. Suponhamos agora que eu peça aos dois de tomar a palavra numa reunião, e que os dois aceitem.
O que acontecerá? Eu pedi a mesma coisa aos dois homens, mas qual dos dois, segundo vocês, se preparará mais seriamente em oração? Certamente o senhor B. Por quê? Porque é ciente de sua incapacidade oratória e sabe que não possui nenhum recurso natural sobre o qual se apoiar. Assim orará: "Senhor, se Tu não me dás a capacidade de fazê-lo, eu não poderei falar de Ti". Sem dúvida o senhor A. orará também, mas talvez não na mesma forma que o senhor B., porque ele sabe que possue os recursos naturais.
Suponhamos agora que eu peça a eles não de falar, mas de solucionar muitos problemas de caráter prático na reunião. O que acontecerá então? A sua posição recíproca estará exatamente invertida. Agora será o sr A. quem orará intensamente sabendo bem de não ter nenhuma capacidade organizativa. Também o senhor B. orará, seguramente, mas não com a mesma insistência, porque, ainda reconhecendo ter necessidade de Deus, não tem a mesma consciência de incapacidade do senhor A. pelas coisas práticas.
Vêem a diferença entre os dons naturais e os dons espirituais?
Tudo aquilo que podemos fazer sem oração e sem uma constante dependência completa em Deus provém daquela fonte de vida natural que está em relação com a carne. É necessário compreender isto muito claramente. Certamente isto não significa que sejam qualificados para um particular trabalho somente aqueles que não têm os dons naturais para cumpri-lo. O ponto a ressaltar é este: quer nós possuamos dons naturais ou não, é necessário que conheçamos a obra da Cruz, o que significa a morte de tudo aquilo que é natural e a nossa dependência completa no Deus da ressurreição. Invejamos demasiado facilmente o nosso próximo que tem algum dom natural, esquecendo que, se possuirmos nós mesmos algum dom, fora da ação da Cruz, ele poderia facilmente ser um obstáculo àquilo que Deus tenta de manifestar em nós.
Pouco tempo depois de minha conversão fui predicar o Evangelho nas favelas. Tinha recebido uma boa instrução e conhecia bem as Escrituras; me considerava, então, bem preparado e capaz de ensinar à gente do campo, entre os quais havia muitas mulheres analfabetas. Mas, depois de algumas visitas, percebi que, apesar de sua ignorância, essas mulheres tinham um conhecimento íntimo do Senhor. Eu conhecia bem o livro que elas liam com dificuldade, mas elas conheciam bem Aquele de quem falava o livro. Eu tinha uma riqueza na carne; elas tinham uma riqueza no espírito. Quantos cristãos hoje tentam de ensinar aos outros, como eu fazia então, confiando maiormente na força de sua sabedoria humana!
 Achei, um dia, um jovem irmão –jovem quanto aos anos, mas com um conhecimento profundo do Senhor. O Senhor o tinha conduzido através de muitas provas. Durante a nossa conversação lhe perguntei: "Irmão, o que o Senhor tem te ensinado realmente nestes dias?". Ele respondeu: "Uma única coisa: que não posso fazer nada sem Ele". "Você quer dizer que verdadeiramente não pode fazer nada?", perguntei ainda. "Bem, não", replicou ele, "eu posso fazer muitas coisas! Mas é isto justamente o meu problema. Sabe, sempre tive tanta confiança em mim mesmo! Sei muito bem que posso fazer uma quantidade de coisas". Então perguntei: "O que você quer dizer então, quando diz que não pode fazer nada sem Ele?" Ele respondeu: "O Senhor me mostrou que posso fazer qualquer coisa, mas que Ele declarou: "Sem mim nada podeis fazer". O resultado então é que tudo o que fiz e posso fazer ainda sem Ele não vale nada!"
É necessário chegar a esta compreensão. Eu não quero dizer que não se possam fazer muitas coisas: de fato, podemos. Nós podemos organizar reuniões, edificar igrejas, podemos ir até os confins da terra e fundar missões e podemos acreditar de obter fruto; mas lembremos a palavra do Senhor: "Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada" (Mateus 156:13). Deus é o único autor legítimo do universo. "No princípio, criou Deus os céus e a terra" (Gênesis 1:1), e o seu Santo Espírito é o único verdadeiro criador em nossos corações. Tudo aquilo que vocês ou eu possamos projetar e pôr em obra sem Ele tem a marca da carne e não alcançará nunca o domínio do Espírito, apesar de toda a seriedade com que invoquemos as bênçãos de Deus para o nosso esforço. Este estado de coisas pode se prolongar por anos e então poderemos pensar em cumprir um avanço aqui, um melhoramento lá, e talvez levar tudo sobre um plano melhor; mas não poderemos fazer nada de tudo isto.
A origem de uma coisa determina seu destino, e o que é "da carne" na origem não poderá nunca se converter em espiritual, apesar de qualquer "aperfeiçoamento". O que nasceu da carne é carne e nunca poderá ser outra coisa. Tudo aquilo que podemos cumprir por nós mesmos é "nada" aos olhos de Deus, e devemos aceitar a Sua desaprovação e reconhecer que é mesmo "nada"! "A carne para nada aproveita" (João 6:63). Somente aquilo que provém do Alto pode subsistir.
Nós não podemos compreender esta verdade, pelo simples fato que a sentimos dizer. É necessário que Deus nos ensine o que significa, colocando seu dedo sobre uma coisa que Ele vê e dizendo-nos: "Isto é natural; isto tem sua fonte na velha criação e não tem origem em Mim, e portanto não pode subsistir". Até o momento em que Deus não intervenha desse modo, nós poderemos estar de acordo com o princípio, mas não poderemos compreendê-lo realmente. Poderemos aprovar esta verdade, e também jubilar-nos, mas não teremos verdadeiramente horror de nós mesmos. Um dia chegará no qual Deus abrirá os nossos olhos. De frente a uma situação particular deveremos reconhecer como de uma revelação: "Isto é sujo, é impuro; Senhor, eu vejo!" Esta palavra "pureza" é uma palavra preciosa. Eu a relaciono sempre com o Espírito. A pureza representa uma coisa que é absolutamente do Espírito. A impureza significa confusão. Quando Deus abre os nossos olhos e nos mostra que a vida natural é uma coisa que Ele não poderá jamais utilizar em sua obra, percebemos que não podemos mais seguir certas doutrinas. Sentimos horror da impureza que existe em nós; mas quando estamos prevenidos acerca disto, Deus começa sua obra de liberação.
Em seguida veremos como Deus proveu para esta liberação; mas devemos deter-nos ainda sobre o fato da revelação.

A LUZ DE DEUS E O CONHECIMENTO
É evidente que se alguém está decidido a servir ao Senhor com todo seu coração, sentirá a necessidade de luz. Somente quando foi escolhido por Deus, e tenta aproximar-se dEle, sente quanto seja necessária esta luz. Existe em nós uma necessidade profunda de luz para conhecer o pensamento de Deus, para discernir aquilo que é do Espírito do que é da alma; para discernir aquilo que é divino daquilo que é simplesmente humano; para discernir aquilo que é verdadeiramente celestial daquilo que é terreno; para distinguir a diferença entre as coisas espirituais e as carnais; para saber se é realmente Deus quem está dirigindo-nos ou se caminhamos detrás de nossos sentimentos, nossas impressões e nossas imaginações.
Quando tenhamos chegado ao ponto em que desejemos seguir a Deus em cada coisa, reconheceremos que a luz é a coisa mais necessária na vida cristã. Quando me encontro com irmãos e irmãs mais jovens, uma pergunta se repete sempre: "Como faço para saber se estou caminhando no Espírito? Como posso discernir se o impulso que existe em mim provém do Espírito Santo, ou dos meus sentimentos?" Parece que este problema seja a base da preocupação geral, mais alguns foram além. Tentam escavar neles mesmos, analisar-se, e fazendo isso entram numa escravidão mais profunda. Este comportamento é verdadeiramente perigoso para a vida cristã, porque não se poderá jamais prevenir a consciência interna através da árida senda da auto-análise.
 Não está escrito em parte nenhuma da Palavra de Deus que devamos examinar o estado interior.[11]
Isto nos conduzirá somente à dúvida, ao desequilíbrio, à desesperação. É verdade que devemos conhecer nós mesmos, que devemos saber o que acontece dentro de nós. Não temos o direito de repousar num paraíso de loucos, nem de andar por uma falsa senda sem saber que está errada, nem de ter uma vontade dirigida para o mal, pensando que seja a vontade de Deus. mas este conhecimento de nós mesmos não pode vir olhando dentro de nós e analisando os nossos sentimentos, nossos objetivos e tudo aquilo que se passa em nós, para tentar de compreender se caminhamos na carne ou no Espírito.
 Temos nos Salmos muitos versículos que iluminam este tema. O primeiro encontra-se no Salmo 36:9: "na tua luz vemos a luz". Eu penso que este seja um dos versículos mais bonitos do Antigo Testamento. Há aqui duas luzes. Existe "tua luz", e quando entramos nesta luz, nós "vemos a luz".
Há uma diferença entre estas duas luzes. Podemos dizer que a primeira é objetiva e a segunda é subjetiva. A primeira luz é a que pertence a Deus e que é derramada sobre nós; a segunda, é o conhecimento que recebemos daquela luz. "Na tua luz vemos a luz"; conheceremos alguma coisa; teremos certeza, veremos. Nenhum exame interior poderá nunca conduzir-nos a esta clareza. Não, é quando a luz nos vem de Deus que vemos.
Isto parece tão simples. Se quisermos estar seguros que o nosso rosto está limpo, o que fazemos? O apalpamos cuidadosamente com as mãos? Certamente não! Pegaremos um espelho e nos olharemos à luz. Nesta luz tudo ficará claro. Nós não veremos jamais tocando ou analisando. A revelação vem somente da luz de Deus que penetra em nós. E quando entrou em nós não é mais necessário perguntar se uma coisa é boa ou ruim: o sabemos.
Lembrem também daquilo que escreveu o autor do Salmo 139:23: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração". Percebem, em verdade, o que significa este pedido? Não significa certamente que eu investigo a mim mesmo. "Sonda-me", significa "Tu investiga-me!" É desta forma que nos chega a luz. É preciso que Deus entre em mim para investigar-me, não cabe a mim fazê-lo. Mas isto não quer dizer que eu deva avançar cegamente, sem me preocupar do meu verdadeiro estado. Não é este o ponto. O que importa é isto: enquanto os meus exames de consciência me digam que muitas coisas devem ser reparadas, eles não irão nunca debaixo da superfície. O verdadeiro conhecimento de mim mesmo não vem do meu investigar-me, mas de que Deus me investigue.
Talvez vocês perguntem: "O que significa, de modo prático, ver a luz? Como se pode realizar? Como podemos ver a luz pela sua luz?" Aqui o salmista vem ainda em nossa ajuda: "A exposição das tuas palavras dá luz; dá entendimento aos simples" (Salmo 139:130). Nas coisas espirituais somos todos "simples". Nós dependemos de Deus que nos dá a inteligência, e a necessitamos, particularmente no que concerte a nossa verdadeira natureza. E a Palavra de Deus opera sempre oportunamente. No Novo Testamento, o versículo que afirma isto da maneira mais eficaz se encontra na epístola aos Hebreus: "Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão de alma e espírito, e de juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele a quem havemos de prestar contas" (Hebreus 4:12-13).
Sim, é a palavra de Deus, a penetrante Escritura da verdade que responde a todos os nossos interrogantes. É ela que discerne os nossos motivos e define para nós sua verdadeira fonte, na alma e no Espírito. Com isto, penso que agora poderemos passar do aspecto doutrinário do problema ao seu aspecto prático. A maior parte de nós, estou seguro, deseja ter uma vida íntegra diante de Deus. Nos aperfeiçoamos e não discernimos nada demasiado irreparável em nós. Procedendo ainda, reconhecemos a verdade daquela asserção: "As tuas palavras são uma revelação que nos ilumina". Deus utilizou um dos seus servos para colocar-nos de frente à sua Palavra, e esta Palavra penetrou em nosso coração. Ou talvez nos tenhamos colocado diante de Deus, esperando que Ele falasse e de repente, em nosso pensamento, ou ainda na página que estava diante de nós, a sua Palavra nos alcançou com poder. Então vemos alguma coisa que não tínhamos observado antes. Nos sentimos culpados. Sabemos exatamente o que há de errado em nós, e alçamos o nosso olhar ao Senhor para confessá-lo: "Senhor, eu vejo. Há impureza. Há confusão. Como eu estava cego! E pensar que por tantos anos permaneci neste erro, sem jamais percebê-lo!" A luz entra em nós e então vemos a luz. A luz de Deus se reflete em nós e é verdade que cada conhecimento de nós mesmos nos chega deste modo.
Pode ser também que certas revelações não nos cheguem sempre das Escrituras. Alguns de nós conhecemos santos que tinham um semelhante conhecimento do Senhor, e orando ou falando com eles, na luz de Deus que deles se irradiava, achamos alguma coisa que não tínhamos jamais imaginado antes. Eu conheci uma destas pessoas que está agora com o Senhor, e a lembrança que conservei dela é a de uma crente "iluminada". Bastava que entrasse em seu quarto para ter imediatamente consciência da presença de Deus. Naquele tempo eu era muito jovem, tinham se passado somente dois anos de minha conversão e tinha uma quantidade de projetos, de belíssimos pensamentos, de planos para apresentar à aprovação do Senhor, cem coisas que eu achava seriam maravilhosas se pudessem ser realizadas.
Fui diante dela com todas aquelas coisas, para tentar persuadi-la e explicá-lhe que precisava fazer isto ou aquilo. Antes que eu pudesse falar, ela me disse somente alguma palavra, da forma mais natural. Então, a luz brilhou e eu me senti imediatamente confuso. Todo o meu desejo de "fazer" e o meu projetar se revelaram somente naturais, cheios de humanidade. Então aconteceu uma coisa. Fui levado ao ponto de ter que dizer: "Senhor, meus pensamentos estão baseados somente em atividades humanas, mas há aqui alguém que, ao contrario, não se preocupa com nada; ensina-me a imitá-la". Ela tinha só uma razão de ser, um único desejo, e era para Deus. Sobre a primeira página de sua Bíblia estava escrita esta frase: "Senhor, eu não quero nada para mim mesma". Sim, vivia somente para o Senhor. Quando encontrem uma pessoa que age assim, acharão sempre que ela está imersa na luz, e que aquela luz ilumina os outros. Aquele é o verdadeiro testemunho.[12]
A luz obedece a uma única lei: aclara as coisas onde penetra. Esta é a única condição que impõe. Nós podemos rejeitá-la; é a única coisa que ela teme. Mas se nos abrimos e nos abandonamos a Deus, Ele se revelará. As dificuldades acontecem quando temos em nós zonas fechadas, ângulos hermeticamente cerrados em nosso coração, onde pensamos com orgulho ter a razão. A nossa derrota consiste então menos no fato de que erramos que em não saber que erramos. O erro pode ser uma questão de força natural; a ignorância é questão de luz. Podem ver a força natural nos outros, mas eles não podem vê-la em si mesmos. Oh, como temos necessidade de sermos sinceros e humildes, e de abrir-nos diante de Deus! Aqueles que são abertos, podem ver. Deus é luz, e nós não podemos viver em sua luz e permanecer fechados. Repetimos ainda com o salmista: "Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem" (Salmo 43:3).
Nós agradecemos a Deus porque hoje mais que antes o pecado é colocado diante da consciência dos cristãos. Em muitos lugares os olhos dos crentes foram abertos para ver que a vitória sobre o pecado é importante na vida cristã; e em conseqüência muitos caminhamos mais perto de Deus para procurar nEle a liberação. Louvamos o Senhor por cada movimento que nos aproxima mais dEle, por cada movimento que nos reconduz a uma verdadeira santidade diante de Deus. Contudo, ainda não é suficiente. Existe uma coisa que deve ser curada e é a vida mesma do homem, não somente seus pecados. No centro do problema está a energia de sua alma, a força que o move. Fazer alguma coisa do pecado ou ainda da carne em suas manifestações naturais é continuar a permanecer na superfície, não alcançar a raiz da questão. Adão não fez entrar o mundo no pecado cometendo assassinato. Isto aconteceu depois. Adão deixou entrar o pecado escolhendo ter uma alma desenvolvida a ponto de poder caminhar sozinho, independente de Deus. Quando, ao contrário, Deus cria para Sua glória uma raça de homens que será o instrumento de que se servirá para cumprir seu plano no universo, esta raça constituirá um povo cuja vida, cujo próprio alento dependerá dEle. Ele será para eles "a árvore da vida".
A necessidade que eu sinto sempre mais forte em mim mesmo é a de crer que todos nós, como filhos de Deus, devemos pedi-Lhe a verdadeira revelação de nós mesmos. Repito, não entendo com isso examinar-nos continuamente a nós mesmos, perguntando-nos: "Isto é da alma ou do Espírito?". Isto não nos conduzirá a nada; é somente escuridão. Não, as Escrituras nos mostram como os santos chegaram a um conhecimento deles mesmos. Foi sempre por uma luz proveniente de Deus, e essa luz é Deus mesmo. Isaias, Ezequiel, Daniel, Pedro, Paulo, João, todos eles chegaram a um conhecimento de si mesmos porque o Senhor fez resplandecer sua luz sobre eles e aquela luz produziu revelação e conhecimento (Is 6:5; Ez 1:28; Dn 10:8; Lc 22:61-62; At 9:3-5; Ap 1:17).
Nós não conheceremos nunca suficiente como o pecado seja odioso e como a nossa natureza seja enganosa até que Deus não nos tenha iluminado com a Sua luz. Eu não falo de uma sensação, mas de uma revelação interior do Senhor mesmo, através de sua Palavra. Esta irrupção da luz divina faz por nós o que a doutrina sozinha não poderá jamais fazer.
Cristo é a nossa luz; e é a Palavra vivente. Quando lemos a Escritura, esta vida nEle nos traz a revelação. "E a vida era a luz dos homens" (João 1:4). Uma semelhante luz pode não penetrar de repente por completo, mas gradualmente; mas ela será sempre mais clara e penetrante, até que vejamos a luz de Deus e toda a confiança em nós desapareça. Porque a luz é o que há de mais puro no mundo. Ela purifica, esteriliza, elimina o que não deve existir. Em sua claridade "a divisão de juntas e medulas" converte-se num fato para nós e cessa de ser um ensino. Experimentamos temor e tremor a medida que compreendemos a corrupção da natureza humana, o odioso de nosso "eu", e a verdadeira ameaça que para a obra de Deus tem a vida de nossa alma e a energia não controlada pelo seu Espírito Santo. Como nunca antes, vemos agora quanto é necessário da ação severa de Deus em nós, se Ele deve utilizar-nos, e sabemos que sem Ele somos servos completamente inúteis.
Mas aqui a cruz, em seu significado mais amplo, vem ainda em nossa ajuda e procuraremos agora compreender um aspecto de sua obra que toca e resolve o problema de nossa alma. Porque somente uma compreensão completa da Cruz pode conduzir-nos àquela posição de dependência que o Senhor Jesus voluntariamente aceitou quando disse: "Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Como ouço, assim julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou" (João 5:30).

CAPÍTULO 13 – O CAMINHO DO PROGRESSO: CARREGAR A CRUZ

Várias vezes, no capítulo precedente, tocamos o argumento do serviço para o Senhor. Como agora examinaremos a solução que Deus deu ao problema da vida da alma, será bom aproximar-nos a este problema considerando, antes que nada, os princípios que governam este processo. Deus fixou leis espirituais que dirigem o nosso trabalho para Ele, e das quais não pode se desviar nenhum daqueles que pretendem servi-Lo. A base da nossa salvação, bem o sabemos, é o fato da morte e ressurreição do Senhor, mas as condições de nosso serviço não são menos precisas. Da mesma forma que o fato da morte e ressurreição do Senhor é a base sobre a qual somos aceitos por Deus, assim também o princípio da morte e da ressurreição é a base de nossa vida e do nosso serviço para Ele.
Se é assim, se o Filho do homem, para cumprir sua obra deveu atravessar a morte e a ressurreição (como símbolo e como princípio), poderia ser diferente para nós? Certamente nenhum servo de Deus poderá nunca servi-Lo sem conhecer ele mesmo a ação deste princípio em sua vida. Isto está fora de discussão.
O Senhor demonstrou isto bem claramente aos seus discípulos, antes de deixá-los. Ele estava morto e ressuscitado, e então disse a eles de esperá-Lo em Jerusalém para serem revestidos de poder. O que é este poder do Espírito Santo, este "poder do alto" de que Ele falava? Nada menos que a virtude de sua morte, de sua ressurreição e de sua ascensão; para adotar uma outra figura, o Espírito Santo é o vaso, dentro do qual são depositados todos os valores da morte, ressurreição e exaltação do Senhor para que possam ser distribuídos. É o Espírito quem "contém" estes valores e os entrega aos homens. É esta a razão pela qual o Espírito Santo não podia ser entregue antes que o Senhor tivesse sido glorificado. Somente então pôde descer sobre os homens e mulheres para que fossem Suas testemunhas; porque sem o valor da morte e da ressurreição de Cristo, este testemunho não é possível.
Se observarmos no Antigo Testamento, acharemos o mesmo princípio. Gostaria de lembrar a vocês um fragmento bem conhecido do capítulo 17 de Números. O ministério de Arão tinha sido objetado. Uma discussão havia se levantado entre o povo: Arão tinha sido verdadeiramente escolhido por Deus? Reinava uma certa desconfiança a esse respeito, e diziam: "Nós não sabemos se este homem foi verdadeiramente designado por Deus". Deus quis então provar quem era seu servo e quem não o era. Como fez? Doze varas mortas, portando cada uma um nome, foram colocadas perante o Eterno, no Santuário, diante da arca do testemunho, e ali permaneceram durante toda uma noite. Na manhã seguinte o Eterno indicou o servo que foi escolhido por meio da vara que tinha germinado, florescido e produzido fruto. Todos conhecemos o significado desta experiência. A vara de amêndoas que germina fala da ressurreição. São a morte e a ressurreição que provam o ministério que Deus reconhece. Sem este reconhecimento nós não temos nenhum valor. O germinar da vara de Arão demonstrou que ele estava na justa posição; Deus reconhecerá como seus servos somente àqueles que alcançaram a ressurreição através da morte.
Vimos que a morte do Senhor age de diversas formas. Sabemos como nos levou a receber o perdão dos nossos pecados, e que sem a aspersão do sangue não há remissão. Depois, vimos como a sua morte atua para liberar-nos do domínio do pecado, e que o nosso velho homem foi crucificado com Ele a fim que nós não sirvamos mais o pecado. A seguir, foi apresentado o problema da vontade do "eu", e a nossa necessidade de consagração ficou evidente; compreendemos, então, que a morte não agiu em nós para ceder o lugar a um espírito disposto a abandonar a própria vontade e obedecer somente o Senhor. Isto constitui, em verdade, um ponto de partida para o nosso serviço, mas não toca ainda o centro da questão. Pode ainda subsistir em nós uma falta de conhecimento do significado da alma.
Depois um outro fragmento foi apresentado em Romanos 7, onde se examina o problema da santidade da vida, de uma santidade pessoal e viva. Ali achamos um verdadeiro homem de Deus que, procurando com sua justiça agradar a Deus, se coloca sob a lei e a lei lhe revela o que ele é. Ele tenta agradar a Deus operando seu esforço humano, e a Cruz o deve conduzir a ponto de fazê-lhe dizer: "Não posso fazer isto; não posso satisfazer a Deus com as minhas próprias forças; posso somente confiar que o Espírito Santo o faça em mim".
Eu acredito que algum de vocês tenha atravessado águas profundas antes de aprender esta verdade e de descobrir o valor da morte do Senhor que age assim.
Porém, observem: existe ainda uma grande diferença entre "a carne" de que fala Romanos 7 em relação com a santidade de vida, e a ação das energias naturais da vida da alma no serviço do Senhor. Mas quando tenhamos conhecido aquilo de que falamos através de nossa experiência, ficará ainda uma outra esfera na qual deverá atuar a morte do Senhor, para que possamos ser-Lhe úteis em Seu serviço. Embora tenhamos realizado todas estas experiências, o Senhor não poderá ainda contar conosco até que outras obras tenham sido completadas em nós.
Quantos servos do Senhor foram utilizados por Ele, como diz uma expressão chinesa, para construir quatro metros de muro, mas somente porque depois eles mesmos destroem cinco metros! Nós somos utilizados num sentido mas, ao mesmo tempo, demolimos o nosso trabalho e, às vezes, também o de outros, porque existe ainda em nós alguma coisa que não foi tocada pelo Senhor. Devemos então ver como o Senhor estabeleceu agir com a alma e depois, mais particularmente, como isto tenha a ver com nosso serviço para Ele.

A OBRA SUBJETIVA DA CRUZ
Consideremos quatro fragmentos dos Evangelhos. Esses são:
"Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus familiares. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim. Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, acha-la-á" (Mateus 10:34-39).
"E dizia abertamente estas palavras. E Pedro o tomou à parte, e começou a repreendê-lo. Mas ele, virando-se, e olhando para os seus discípulos, repreendeu a Pedro, dizendo: Retira-te de diante de mim, Satanás; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas as que são dos homens. E chamando a si a multidão, com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas, qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará" (Marcos 8:32-35).
"Lembrai-vos da mulher de Ló. Qualquer que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á, e qualquer que a perder, salva-la-á. Digo-vos que naquela noite estarão dois numa cama; um será tomado, e outro será deixado" (Lucas 17:32-34).
"Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna. Se alguém me serve, siga-me, e onde eu estiver, ali estará também o meu servo. E, se alguém me servir, meu Pai o honrará" (João 12:24-26).
Estes quatro fragmentos têm um tema em comum. Em cada um deles, o Senhor fala da atividade da alma humana e em cada um deles, põe em evidência um aspecto ou uma manifestação diversa da vida da alma. Nestes versículos Ele declara muito claramente que o problema da alma do homem pode ser resolvido de um único modo: o de levar cada dia nossa Cruz para segui-Lo.
 Como já vimos, a vida da alma ou vida natural, de que falamos, é uma coisa que vai além do que se diz nos versículos que se referem ao velho homem ou a carne. Procuramos demonstrar claramente que, no que diz respeito ao nosso velho homem, Deus remarca o que Ele cumpriu, de uma vez por todas, crucificando-nos com Cristo sobre a Cruz. Vimos que três vezes na epístola aos Gálatas o fato da crucifixão é lembrado como um fato cumprido; e em Romanos 6:6 nos diz claramente que "nosso velho homem foi crucificado", ou seja que, se o tempo do verbo tem um significado, poderia ser parafraseado desta forma: "Nosso velho homem foi, definitivamente e para sempre, crucificado". É um fato cumprido que nós devemos tomar por revelação divina e apropriar-nos dele, portanto, pela fé.
Mas existe um outro aspecto da Cruz, o que está indicado na expressão "levar cada dia a cruz", que agora está diante de nós. Eu fui colocado sobre a Cruz, agora a devo carregar; e "levar a cruz" é um fato interno. Entendemos isto quando falamos da obra subjetiva da Cruz. É um contínuo progredir; é seguir o Senhor, passo a passo. É o fato que agora está perante nós, no que concerne a alma, e, como dissemos, a ênfase não é mais a mesma que quando se tratava do velho homem. Não nos é falado aqui da "crucifixão da alma mesma", no sentido que os nossos dons e as nossas faculdades naturais, a nossa personalidade e individualidade devam ser totalmente deixadas de lado. Se assim fosse, não poderia ser-nos dito, como em Hebreus 10:39, que "devemos ter fé para salvar a alma", e ainda "Alcançando o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas" (1 Pedro 1:9), ou bem "Na vossa paciência possuí as vossas almas" (Lucas 21:19). Não, não é neste sentido que perdemos as nossas almas, porque isto seria perder completamente a nossa experiência individual. A alma está sempre ali com seus dons naturais, mas a Cruz deve fazer passar estes dons através da morte; deve colocar sobre estes dons naturais a marca da morte do Cristo, para restituí-los a seguir, como agradará a Deus, na gloriosa ressurreição.
Neste sentido, quando Paulo escreve aos Filipenses, ele expressa o desejo de "conhecê-lo (a Jesus Cristo), e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme à sua morte" (Fp 3:10). O símbolo da morte está sempre sobre a alma, para guiá-la à submissão do Espírito, para que não afirme jamais a própria independência. Só a Cruz, operando assim, pode produzir um homem da estatura de Paulo, eliminando cada valor aos seus recursos naturais (Filipenses 3) e às próprias forças, de forma tal de levá-lo a escrever aos Coríntios: "E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder; para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus" (1 Coríntios 2:1-5).
A alma é a sede dos sentimentos e nós sabemos bem qual influência eles têm sobre nossas decisões e ações. Não há nada de deliberadamente malvado neles, entendamo-nos, mas contudo —por exemplo— fazem crescer em nós uma afeição natural a respeito de uma outra pessoa que, não regulada pelo Espírito, pode ter uma influência nefasta sobre toda a nossa línea de conduta. Assim, no primeiro dos quatro fragmentos que transcrevemos, o Senhor nos diz: "Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim." (Mateus 10:37).
Observem que o fato de seguir o Senhor no caminho da Cruz nos é mostrado como o único e verdadeiro caminho, a única via pela qual devemos seguir o Senhor. E o que se segue imediatamente?
"Quem achar a sua vida[13] perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, acha-la-á" (Mateus 10: 39).
Existe para nós, naquela sugestão sutil dos sentimentos, o segredo perigo de desviar-se do caminho de Deus; e a chave de tudo é a alma. A Cruz deve agir nisto: eu devo "perder" a minha alma no sentido que o Senhor atribui a estas palavras, e que trataremos de explicar.
Alguns de nós sabemos muito bem o que significa perder a própria alma. Não podemos mais consentir ligeiramente aos seus desejos; não podemos mais lhe dar importância, nem satisfazê-la: esta é a "perda" da alma. Atravessamos experiências dolorosas para chegar a desencorajar suas exigências. Ainda assim, devemos confessar, freqüentemente, que não existe um pecado bem definido que nos impeça seguir o Senhor até o fim. Somos obstaculizados, às vezes, por um amor segredo, por uma afeição completamente natural, que nos faz desviar deste caminho. Sim, a afeição natural exerce uma grande influência sobre nossa vida, e a Cruz deve penetrá-la e cumprir sua obra purificadora.
Releiamos as palavras que citamos no capítulo 8 de Marcos. Acredito que este seja um dos fragmentos mais importantes:
O Senhor tinha apenas anunciado aos seus discípulos, em Cesaréia de Filipos, que Ele devia morrer por mão dos anciãos dos judeus, e Pedro, impulsionado pelo seu amor pelo Mestre, alçou-se para protestar dizendo: "Senhor, não faças isto; tem piedade de ti; isto não te acontecerá nunca". O amor pelo Senhor o incentivou a suplicá-Lhe para poupar Sua vida; e o Senhor deveu repreendê-lo, como teria repreendido Satanás, porque não tinha o sentido das coisas de Deus, mas daquelas dos homens. E então, à multidão que se ajuntava em volta dEle, repetiu, mais uma vez, estas palavras: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas, qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará" (Marcos 8:34-35).
Toda a questão permanece ainda a da alma, e aqui, de forma particular, ela põe de relevo seu desejo de conservação. Existe aquela sugestão sutil que diz: "Se me fosse permitido viver eu faria qualquer coisa, estaria prestes a tudo; mas é necessário que eu conserve a vida!". É como se a alma gritasse, em sua desesperação: "Ir à Cruz? Ser crucificado? Mas isto e verdadeiramente demais! Tem piedade de ti mesmo; conserva-te! Pensa de verdade que deve ir contra você mesmo para caminhar com Deus?" Alguns de nós sabemos bem que para caminhar com Deus é amiúde necessário andar contra a voz da alma, da nossa ou da dos outros, deixar que a Cruz reduza ao silêncio seu instinto de conservação.
Tenho talvez medo da vontade de Deus? A querida e santa mulher que já mencionei e que teve uma tão grande influência no curso de minha vida, me fez muitas vezes esta pergunta: "Você está de acordo com a vontade de Deus?" Esta é uma pergunta formidável. Ela não me perguntava: "Você faz a vontade de Deus?", mas indagava sempre: "Você gosta da vontade de Deus?" Não conheço pergunta que penetre mais profundamente que esta. Lembro que um dia ela tinha dificuldade com o Senhor a respeito de uma certa coisa. Sabia o que o Senhor lhe pedia, e em seu íntimo desejava obedecê-Lo, mas lhe resultava difícil, e a ouvi orar assim: "Senhor, te confesso que aquilo que me pedes não me agrada, mas não liga para o meu gosto. Espera só um pouco, Senhor, e serei eu que aceitarei o que Te agrada".
Ela não queria que o Senhor fosse condescendente com ela e ajustasse as próprias exigências às dela. Ela desejava somente fazer a vontade de Deus. Muitas vezes acontece que alcançamos o ponto de abandonar ao Senhor coisas que retemos boas e preciosas, sim, até mesmo as coisas de Deus, a fim que a Sua vontade se cumpra. A preocupação que Pedro tinha pelo seu Senhor provinha de seu amor natural por Ele. Talvez pensemos que Pedro, pelo grande afeto que nutria pelo seu Senhor, podia se permitir de repreendê-Lo. Somente um grande amor pode empurrar alguém a ousar tanto. Sim, acreditamos que compreendemos a Pedro; mas se tivermos o espírito puro, livre daquele conjunto de sentimentos da alma, não cairemos no erro de Pedro; reconheceremos mais prontamente onde se manifesta a vontade de Deus, e encontraremos somente nela o gozo verdadeiro de nosso coração.
O Senhor fala ainda do problema da alma no capítulo 17 de Lucas, e desta vez em relação com sua volta. Falando do "dia em que o Filho do homem será manifestado", Ele estabelece um paralelo entre aquele dia e "o dia em que Ló saiu de Sodoma" (versículos 29-30). Pouco depois fala do "arrebatamento dos santos" com estas palavras, repetidas duas vezes: "Um será tomado, e outro será deixado" (versículos 34-35). Mas, entre a sua citação da chamada de Ló fora de Sodoma e esta alusão à reunião dos santos em volta dEle, o Senhor pronuncia estas palavras incisivas: "Naquele dia, quem estiver no telhado, tendo as suas alfaias em casa, não desça a tomá-las; e, da mesma sorte, o que estiver no campo não volte para trás. Lembrai-vos da mulher de Ló" (Lucas 17:31-32).
"Lembrai-vos da mulher de Ló" por quê? Porque "qualquer que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á, e qualquer que a perder, salva-la-á". Se não erro, este é o único versículo do Novo Testamento que fala de nossa resposta à chamada do arrebatamento. Talvez pensemos que quando chegue o Filho do homem seremos reunidos ao redor dEle automaticamente, por assim dizer, porque limos em 1 Coríntios 15:51-52: "todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta..." Ora, de qualquer modo podemos conciliar estes dois fragmentos: o de Lucas deveria pelo menos fazer-nos deter para refletir; porque ressalta com força o fato que um será tomado e outro será deixado. Trata-se da reação que teremos, quando chegue a chamada para partir, e é sobre este ponto que somos exortados com tanta pressão para estar prontos (confrontar Mateus 24:42): "Vigiai, pois, porque não sabeis a que hora há de vir o vosso Senhor".
Há, com certeza, uma razão para isto. Está claro que este apelo não produzirá em nós, no último momento, uma mudança miraculosa sem relação com o fato que eu tenha, em maior ou menor medida, caminhado a minha vida com o Senhor. Não, naquele momento conheceremos qual terá sido o verdadeiro tesouro de nosso coração. Se foi o Senhor, não nos voltaremos a olhar para trás. Uma olhada para trás decidirá tudo. É mais fácil apegar-se maiormente aos dons de Deus que ao Doador mesmo; e, eu agregaria, a obra de Deus que a Deus mesmo.
Permitam-me que faça um exemplo. Neste momento (1938, N.T.), estou escrevendo um livro. Terminei os primeiros oito capítulos e ainda restam para escrever outros nove, pelos quais me sinto seriamente empenhado diante do Senhor. Mas se o apelo "subi mais um pouco" ressoasse e a minha resposta fosse: "E o que acontecerá com meu livro?", poderia ouvir a Deus me dizer: "Muito bem, fica ali para terminá-lo!". As coisas precisas que fazemos aqui, "na casa", podem ser suficientes para manter-nos aqui embaixo, como um prego que nos fixa à terra.
É sempre questão de viver com a alma ou com o Espírito.
Aqui, no fragmento de Lucas, a vida da alma está descrita como estando empenhada nas coisas da terra —e, vejamos bem—, coisas que em si não importam. O Senhor menciona atividades perfeitamente legitimas —casar-se, semear, comer, vender—, nas quais não há nada de essencialmente mau. Ma existe o fato de estarmos ocupados a ponto de empenhar nosso coração, e isto é suficiente para manter-nos aqui embaixo. O meio para fugir deste perigo consiste em perder a própria alma. Isto é maravilhosamente ilustrado no ato que Pedro cumpre quando reconhece o Senhor ressurreto, sobre a margem do lago. Ainda que, com os outros discípulos, tivesse voltado às suas antigas ocupações, não pensava mas no barco nem nas redes miraculosamente cheias de peixes.
Quando ouviu o grito de João "É o Senhor!", lemos que "pulou na água" para correr a Jesus. Este é o verdadeiro desapego. A pergunta é sempre a mesma: "Onde está o meu coração?" A Cruz deve produzir em nós um desprendimento espiritual de todas as coisas e de todas as pessoas que não sejam o Senhor mesmo.
Mas, ainda assim, temos examinado até agora somente os aspectos externos da atividade da alma.
A alma que deixa livres seus sentimentos, a alma que afirma a si mesma procurando controlar as coisas, a alma que se preocupa das coisas da terra; estas são pequenas coisas que não tocam ainda o verdadeiro núcleo da questão. Existe alguma coisa mais profunda ainda que tentarei agora de explicar.

A CRUZ E A ABUNDÂNCIA DOS FRUTOS
Leiamos novamente João 12:24-25: "Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guarda-la-á para a vida eterna". Temos aqui a obra interior da Cruz, da qual já falamos —a perda da alma, ligada e comparada com esse aspecto da morte do Senhor Jesus que vimos prefigurado no grão de trigo, ou seja, sua morte com vista ao acréscimo. O objetivo é o fruto, muito fruto. Há um grão de trigo que contém a vida, e não permanece sozinho. Tem o poder de transmitir a sua vida a outros, mas para fazer isto deverá descer à morte. Conhecemos assim o caminho seguido pelo Senhor Jesus. Entrou na morte e, como vimos, sua vida ressurgiu em muitas outras vidas. O Filho foi morto, e ressuscitou como o primogênito de "muitos filhos". Ele deixou sua vida para que nós pudéssemos recebê-la. É neste aspecto de sua morte que nós somos chamados a morrer. É aqui que Ele nos mostra claramente o valor de nossa conformidade com sua morte, por meio da qual nós perdemos a nossa vida natural a fim que, pelo poder de sua ressurreição, podamos converter-nos em mananciais de vida mostrando aos outros a nova vida de Deus que está em nós. É este o segredo do ministério, o caminho para chegar verdadeiramente a produzir fruto abundante para o Senhor. Como diz Paulo: "E assim nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na nossa carne mortal. De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida" (2 Coríntios 4:11-12).
Chegamos ao coração do problema. Em nós, que recebemos a Cristo, existe uma vida nova. Todos nós temos este bem precioso, este tesouro em vaso de barro. Deus seja louvado pela realidade de Sua vida em nós! Mas por que esta vida tem uma expressão tão mísera? Por que nos sucede de "permanecer sozinhos"? Por que esta vida não transborda para comunicar-se aos outros? Por que é tão pouco aparente, embora em nossas vidas individuais? A razão pela qual existem tão poucos sinais desta vida, ainda que ela esteja presente em nós, é que a nossa alma envolve e limita esta vida (como a pragana envolve o grão de trigo), de modo que ela não pode manifestar-se. Nós vivemos de nossa vida; trabalhamos e servimos com os nossos próprios recursos naturais; nós não vivemos de Deus. É a alma que impede a explosão da vida. Vamos perdê-la; renunciemos a ela: este é o caminho para a plenitude.

UMA NOITE ESCURA – UMA MANHÃ DE RESSURREIÇÃO
Voltamos assim à vara de amêndoas que foi colocada durante uma noite no santuário —numa noite escura, na qual não podia se enxergar nada—, e eis que na manhã seguinte tinha germinado. Temos aqui a figura da morte e da ressurreição, da vida oferecida e da vida recebida. Assim o ministério é manifestado. Mas, como acontece isto praticamente? Como posso reconhecer que Deus age em mim deste modo?
É necessário, antes que nada, ter bem em claro um ponto importante: a alma, com suas reservas de energias e de recursos naturais, continuará conosco até a morte. Até aquele momento, será necessário que a cruz opere em nós sem descanso, dia após dia, para absorver profundamente esta fonte natural. Esta é a condição permanente de serviço exposta por Jesus nestas palavras: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me" (Marcos 8:34). Nós não podemos jamais subtrair-nos a esta condição, porque quem o faz "não é digno de mim" (Mateus 10:38), "não pode ser meu discípulo" (Lucas 14:27). A morte e a ressurreição devem permanecer constantemente em nós como a causa da perda da alma e da afirmação do Espírito de Deus. Ainda assim, aqui pode haver uma crise, que uma vez experimentada e superada está em condições de transformar toda a nossa vida e a nossa forma de servir o Senhor. Existe uma porta estreita através da qual podemos entrar num caminho completamente novo. Jacó atravessou uma crise similar em Peniel. Era o "homem natural" em Jacó que tentava de alcançar o fim de Deus. Jacó sabia bem que Deus tinha dito: "o maior servirá ao menor" (Gênesis 25:23), contudo se esforçava para realizar aquele desígnio com a própria inteligência e os próprios recursos naturais. Deus deveu paralisar em Jacó as forças naturais e o fez quando tocou o nervo de sua coxa. Jacó continuou a caminhar, porém mancando. Converteu-se num Jacó diferente, como indica a mudança em seu nome. Ele tinha conservado as suas pernas e podia utilizá-las, mas a sua força tinha sido eliminada, e ele continuou a mancar, a causa de uma lesão da qual nunca pôde curar-se completamente. Deus deve conduzir-nos a um ponto —não posso dizer como, mas sei que o fará— onde, através de uma experiência escura e profunda, a nossa força natural será afastada e enfraquecida de forma definitiva, de forma que não ousaremos mas ter confiança em nós mesmos. Como alguns de nós Ele deveu agir de forma muito estranha e fazer-nos passar por caminhos difíceis e dolorosos, para conduzir-nos àquela condição. Chegamos, finalmente, a um momento no qual não temos mais prazer em fazer uma obra cristã, no qual temos quase medo de fazer qualquer coisa no nome do Senhor. Mas é justamente aqui que, afinal, Deus pode começar a utilizar-nos.
Posso dizer que durante um ano, depois da minha conversão, tinha a paixão de predicar. Resultava-me impossível ficar calado. Era como se uma força interior me empurrasse adiante e eu devia obedecer.
Predicar se converteu em minha verdadeira vida. O Senhor pode, em sua graça, permitir-nos de continuar assim por um tempo indeterminado, recebendo incluso uma certa medida de bênçãos, até que chega o dia em que a energia natural que impulsiona vocês diminui, e desde então, já não trabalham mais porque se agradam, mas porque o Senhor se agrada. Antes desta experiência, vocês predicavam a causa da satisfação que achavam em servir o Senhor daquela forma; e ainda assim, talvez o Senhor não conseguia empurrar vocês a realizar alguma coisa que Ele desejava fosse feita. Vocês agiam segundo os seus impulsos naturais, que são muito mutáveis porque dependem de seu temperamento. Quando as emoções dirigem vocês no caminho do Senhor, então agem com todas as suas forças em Sua obra; porém, se os sentimentos dirigem vocês para outra parte, serão relutantes em prosseguir adiante, ainda que o dever os chame. Não são maleáveis nas mãos do Senhor. Ele deve, portanto, enfraquecer em vocês estas tendências preferenciais, baseadas no prazer ou no desprazer, até que vocês realizem uma determinada coisa porque Ele o deseja, e não porque vocês se agradam. Gostem ou não, o farão igualmente. Ainda que não tenham satisfação em predicar ou em fazer esta ou aquela obra para o Senhor, a cumprirão. A realizarão exclusivamente porque é a vontade de Deus, sem levar em conta se dará gozo a vocês ou não. A verdadeira felicidade que experimentam ao cumprir a Sua vontade é mais profunda que suas volúveis emoções. Deus vai conduzir vocês até o ponto em que Ele não precise senão expressar um desejo para que vocês respondam imediatamente.
Este é a postura do Servo de que fala o Salmo 40, nos versículos 7 e 8: "Então disse: Eis aqui venho; no rolo do livro de mim está escrito. Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está dentro do meu coração". Mas semelhante espírito não está naturalmente em nenhum de nós. Manifesta-se somente quando a nossa alma, que é a sede de nossas energias, de nossa vontade e dos nossos sentimentos naturais, tenha sido atraída à Cruz sob a lei do Senhor. Ele deseja achar em nós esta disposição para o serviço. O caminho para alcançá-la pode ser longo ou pode se chegar num instante: Deus tem seus caminhos e nós devemos respeitá-los.
Todos os verdadeiros servos de Deus devem conhecer, num momento dado, esta debilidade sem remédio, pela qual não serão mais os que antes foram. É necessário que se estabeleça em vocês aquele sentimento pelo qual, de agora em diante, terão realmente medo de vocês mesmos. Terão medo de agir segundo os impulsos de sua alma, porque sabem que remorsos experimentarão perante Deus, em seu coração, se assim fizerem. Tiveram a experiência de ter sobre vocês a mão do Deus do amor que corrige, do Deus que "vos trata como filhos" (Hebreus 12:7). Seu Espírito mesmo dá testemunho em seu espírito desta ligação de filiação, como da herança e da glória que são nossas "se sofremos com Ele" (Romanos 8:16-17), e a resposta de nosso espírito ao Pai, é: "Aba, Pai!"
Mas, quando estas experiências foram realmente vivenciadas por vocês, encontram-se sobre uma base nova que chamamos "base de ressurreição".
Pode ser que a morte tenha produzido uma crise em sua vida natural, mas quando a tenham superado, compreenderão que Deus libertou vocês com a ressurreição e que aquilo que tinham perdido é restituído, ainda que numa natureza diferente. O princípio da vida está operando agora em vocês, como uma coisa que os conduz, lhes dá força, os enche de uma vida nova e divina. De agora em diante aquilo que tenham perdido será devolvido, mas revestido de uma nova força, porque está para sempre sob o controle dos céus.
Permitam-me que exponha de novo tudo isto de uma forma mais clara. Se quisermos ser homens e mulheres espirituais, não temos necessidade de cortar-nos as mãos ou os pés: podemos ainda conservar intacto o nosso corpo. Do mesmo modo, podemos conservar a nossa alma, com o uso pleno de suas faculdades; mas ela não é mais a inspiradora de nossa vida. Não vivemos mais nela traindo a nossa razão de vida. A utilizamos, somente. Se o corpo se converter na base de nossa vida, viveremos como as bestas. Se a alma se transforma na base de nossas vidas, viveremos como rebeldes e fujões diante de Deus —inteligentes, cultos, espertos sem dúvida alguma, mas estranhos à vida de Deus. porém, quando cheguemos a viver nossa vida no Espírito e pelo Espírito, ainda que continuemos a usar as faculdades de nossa alma, tanto como utilizamos as nossas forças físicas, elas estão agora ao serviço do Espírito; e quando estamos nestas condições, Deus pode servir-Se de nós com eficácia.
A dificuldade para muitos de nós é aquela noite escura. O Senhor, em Sua graça, me colocou aparte, uma vez em minha vida, por muitos meses, e me deixou, espiritualmente, numa escuridão absoluta. Foi quase como se me tivesse abandonado, como se tudo tivesse acabado. Depois, pouco a pouco, me devolveu aquilo que parecia ter desaparecido. Nós temos sempre a tentação de querer ajudar a Deus, retomando as coisas por nós mesmos, mas lembremos que é necessário transcorrer uma noite inteira no santuário, uma completa noite na escuridão. Ninguém pode apressar o fim; Deus sabe o que faz.
Desejaríamos viver a morte e a ressurreição no espaço de uma hora. Retrocedemos diante o pensamento de que Deus possa afastar-nos por um tempo tão longo; não podemos suportar a espera. E eu não posso dizer quanto tempo passará, mas penso que podemos estar seguros que será um período bem definido no qual Ele terá vocês assim. Parecerá que nada aconteça, que tudo aquilo que vocês apreciam esquiva suas mãos. Terão a impressão de estar detrás de um muro sem saída. Parecerá que todos os outros sejam abençoados e ativos, e que vocês tenham sido ultrapassados e esquecidos. Fiquem tranqüilos. Tudo está nas trevas, mas somente por uma noite. Deve ser uma noite completa, mas isso é tudo. Verão depois que isso tudo redundará numa gloriosa ressurreição, e nada poderá medir a diferença entre o que era antes e o que será depois.
Estava eu, uma noite, jantando com um jovem irmão ao qual o Senhor tinha falado deste problema da energia natural. Ele me disse: "Que experiência abençoada saber que o Senhor tem achado e tocado você daquela forma decisiva, e saber que, depois daquele encontro, as nossas forças partiram".
Havia diante de nós, na mesa, um prato com bolachas; eu peguei uma e a parti em duas partes como para comê-la. Depois, voltando unir os dois pedaços com cuidado, disse: "Parece de novo como antes, porém, já não será mais o mesmo, verdade? Quando a sua força é partida, só resta abandonar-se sempre mais ao mínimo toque de Deus".
É assim, o Senhor sabe o que faz com os seus, e não sobra nenhum aspecto de nossa vida para o qual Ele não provê com a sua Cruz, a fim que a glória do Filho seja manifestada nos filhos. Os discípulos que percorreram esta via podem plenamente ecoar-se das palavras do apóstolo Paulo, que podia dizer de ter servido o Senhor "em meu espírito, no evangelho de seu Filho" (Romanos 1:9).
Eles aprenderam, como ele, o segredo de um semelhante ministério. "...nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne" (Filipenses 3:3).
Poucos podem ter uma vida mais ativa que a do apóstolo Paulo. Em sua carta aos Romanos, ele lembra de ter predicado o Evangelho desde Jerusalém até o Ilírico (Rm 15:19), e afirma estar pronto para ir até Roma (1:10) e dali, se possível, até a Espanha (15:24-28). Contudo, neste serviço que abraça todo o mundo mediterrâneo, seu coração está fixado sobre um único objetivo: a exaltação dAquele que o fez possível. "De sorte que tenho glória em Jesus Cristo nas coisas que pertencem a Deus. Porque não ousarei dizer coisa alguma, que Cristo por mim não tenha feito, para fazer obedientes os gentios, por palavra e por obras" (Rm 15:17-18). Isto é serviço espiritual.
Queira o Senhor fazer de cada um de nós, tão profundamente como o era Paulo, "um escravo de Jesus Cristo".


CAPÍTULO 14 – O OBJETIVO DO EVANGELHO

Tomaremos como ponto de partida, para este último capítulo, um episódio dos Evangelhos que tem lugar à sombra mesma da Cruz, um episódio que, em seus detalhes, é histórico e profético ao mesmo tempo. "E, estando ele em Betânia, assentado à mesa, em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher, que trazia um vaso de alabastro, com ungüento de nardo puro, de muito preço, e quebrando o vaso, lho derramou sobre a cabeça (...) Jesus, porém, disse: (...) Em verdade vos digo que, em todas as partes do mundo onde este evangelho for pregado, também o que ela fez será contado para sua memória" (Marcos 14:3,6,9).
O Senhor quis então que a história de Maria, que o ungiu com nardo de grande preço, acompanhasse sempre a predicação do Evangelho; que o que Maria tinha feito estivesse sempre unido ao que o Senhor fez. Esta é a sua ordem. O que quis nos ensinar com isto?
Sem dúvida todos nós conhecemos muito bem a história de Maria.
Dos detalhes que João provê no capítulo 12 de seu Evangelho, onde o fato acontece não muito depois da volta à vida de seu irmão Lázaro, podemos compreender que a família não é tão rica. As irmãs deviam realizar elas mesmas o serviço da casa; devido a que está escrito que naquela festa "Marta servia" (João 12:2, confrontar com Lucas 10:4)[14], podemos pensar que cada centavo tivesse valor para eles. Ainda assim, uma das irmãs, Maria, que guardava entre seus pertences mais prezados um vaso de alabastro contendo um perfume de preço de trezentos denários, o ofereceu, completamente, ao Senhor. Segundo a apreciação comum, este dom era demasiado excessivo; era como dar ao Senhor mais do que lhe fosse devido. Por isto Judas, junto com outros discípulos, tomou a iniciativa de expressar a desaprovação de todos, julgando o ato de Maria como um desperdiço de dinheiro.

DESPERDIÇO
"Mas alguns houve que em si mesmos se indignaram e disseram: Para que se fez este desperdício do bálsamo? Pois podia ser vendido por mais de trezentos denários que se dariam aos pobres. E bramavam contra ela" (Marcos 14:4-5). Estas palavras nos conduzem àquilo do que, penso eu, o Senhor quer que reflitamos juntos, ou seja, que significa o termo "desperdiço".
 O que é um desperdiço? Desperdiçar significa, entre outras coisas, dar além do necessário. Se R$ 1 é suficiente para pagar um objeto e vocês entregam R$ 100, isto é desperdiçar. Se alcançam 2 g e vocês usam 1 kg, também isto é um desperdiço. Se três dias bastam para terminar bem um serviço e vocês usam cinco dias ou uma semana, é um desperdiço. Desperdiçar quer dizer dar demasiado para demasiado pouco. Se alguém recebe mais do que pensa que seja justo, aquilo que lhe foi entregue de mais é desperdiçado. Mas lembremo-nos que estamos tratando um argumento que o Senhor disse que devia ser difundido como o Evangelho, em qualquer lugar onde o Evangelho seja predicado. Por quê? Porque Ele quer que a predicação do Evangelho produza alguma coisa similar à ação de Maria, vale dizer, homens e mulheres que venham para desperdiçar-se com Ele. Este é o resultado que Ele procura.
É necessário considerar este fato de desperdiçar-se com o Senhor sob dois aspectos: o de Judas (João 12:4-6) e o dos outros discípulos (Mateus 26:8-9), e para o nosso escopo atual confrontaremos com histórias paralelas.
Os doze discípulos julgaram o gesto de Maria como um desperdiço. Para Judas, que não tinha jamais chamado a Jesus de "Senhor", evidentemente tudo aquilo que lhe era oferecido era desperdiçado. Não somente o ungüento era um desperdiço, mas também a água o teria sido.
Judas representa aqui o mundo. Aos olhos do mundo o serviço do Senhor e a entrega de nós mesmos a Ele, para Seu serviço, são um desperdiço. Ele nunca foi amado, nunca teve um lugar nos corações do mundo. Muitos dizem: "Este homem poderia ter uma boa posição no mundo se não fosse um crente!". Se um homem tem talentos naturais de um certo valor aos olhos do mundo, é considerado uma vergonha de sua parte servir ao Senhor. Pensa-se que um semelhante homem valha demasiado como para dedicar-se a Ele. "Que desperdiço de vida útil", se dirá.
Permitam-me contar uma experiência pessoal. Em 1929, eu voltei de Xangai a Foochow, a minha cidade natal. Um dia, enquanto caminhava na rua apoiado numa bengala, a causa de minha grande debilidade e má saúde, encontrei um dos meus velhos professores da Universidade. Ele me convidou a uma casa de chá, e nos sentamos. Olhando-me da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, me disse: "Escuta, durante os seus estudos tínhamos muita estima de você, e esperávamos que teria feito grandes coisas. Você quer me dizer que isto é tudo o que você conseguiu fazer?" Me fez esta pergunta cortante, fixando-me com seus olhos penetrantes. Devo confessar que, ouvindo-o, o meu primeiro impulso foi o de me declarar vencido e chorar. A minha carreira, a minha saúde, tudo estava perdido, e agora o velho professor que tinha me ensinado direito na Universidade estava ali, diante de mim, e me perguntava: "Você ainda está no mesmo ponto, sem nenhum sucesso, sem nenhum progresso, sem nada de valor?"
Mas um instante depois —e devo dizer que aquela foi a primeira vez em minha vida— conheceu realmente o que significava o "Espírito de poder" sobre ele. O pensamento de ter podido dar a minha vida pelo meu Senhor enchia a minha alma de energia. Aquilo que estava sobre mim naquele momento não era nada menos que o Espírito do poder. Pude alçar novamente os olhos e sem reticência alguma disse: "Senhor, eu te agradeço! Esta é a melhor coisa possível: sei que escolhi o caminho certo". Aos olhos do meu velho professor parecia uma perda total o fato de servir o Senhor; mas este é o verdadeiro objetivo do Evangelho: conduzir cada um de nós a uma reta apreciação de seu valor.
Judas predicou, então, que aquilo era um desperdiço. "Nós teríamos podido fazer daquele dinheiro um melhor uso, utilizando-o de uma outra forma. Existem tantos pobres! Por que não dá-lo melhor a uma obra de caridade, cumprir uma obra social para ajudar os pobres de maneira prática? Por que desperdiçá-lo sobre os pés de Jesus?" (veja João 12:4-6).
O mundo arrazoa sempre assim: "Não pode achar uma forma melhor de utilizar sua vida? Não pode fazer alguma coisa melhor para você? É demasiado audaz entregar-se assim, inteiramente, ao Senhor".
Mas se o Senhor é digno, como pode ser um desperdiço?
Ele é digno de ser servido assim. Ele é digno de me ter como um prisioneiro; Ele é digno de que eu viva unicamente para Ele. Ele é digno! Pouco importa o que o mundo pensa. O Senhor disse: "Não andeis ansiosos". Então, não nos inquietemos. Os homens podem dizer o que querem, mas nós podemos confiarmos nestas palavras do Senhor: "Ela fez uma boa ação; nem todas as verdadeiras obras são realizadas para os pobres; cada verdadeira obra é feita para mim". Quando nossos olhos se abriram ao valor do nosso Senhor Jesus, nada é demasiado bom para Ele.
Mas não queremos prolongar-nos demasiado sobre Judas. Tentemos compreender o comportamento dos outros discípulos, porque as suas reações nos tocam mais que aquelas de Judas. Nós não nos inquietamos tanto com o que diz o mundo; podemos suportá-lo, mas damos uma grande importância àquilo que dizem outros cristãos que deveriam entender. Contudo achamos que os outros discípulos expressam o mesmo pensamento que Judas; não se limitavam a dizê-lo, mas se mostraram vivamente contrariados e indignados pelo fato. "E os seus discípulos, vendo isto, indignaram-se, dizendo: Por que é este desperdício? Pois este ungüento podia vender-se por grande preço, e dar-se o dinheiro aos pobres" (Mateus 26:8-9).
Sabemos que existe um comportamento mental demasiado comum que faz dizer aos cristãos: "Tentem obter o máximo resultado com o mínimo preço". Isto porém não é para nada aquilo de que estivemos falando, que é muito mais profundo. Um exemplo nos ajudará a compreender melhor. Nunca disseram a vocês "Quanta gente poderia ocupar-se deste ou daquele serviço. Poderiam ajudar neste ou naquele grupo. Por que não são ativos?" Falando assim se tem em vista somente a utilidade. Tudo deveria ser utilizado a fundo do modo comumente retido mais útil. Alguns se preocuparam porque certos amados servos de Deus não pareciam suficientemente ativos. Pensavam que teriam podido realizar muito mais tentando de introduzir-se em algum ambiente, e obtendo consideração e influência em determinados círculos. Teriam assim podido ser úteis em modo mais eficaz.
Já falei de uma irmã que conheci muitos anos atrás e que, penso, foi a pessoa que maiormente tenha me ajudado. Ela foi um verdadeiro instrumento nas mãos do Senhor durante todo o tempo em que eu estive em contato com ela, ainda que nem sempre o percebesse. A minha preocupação era: "Ela não é útil!" Eu me repetia continuamente: "Por que não vá a algum lugar a organizar reuniões, a fazer alguma coisa? Ele desperdiça a vida vivendo naquela favela onde nunca sucede nada!". Algumas vezes, quando ia visitá-la, estava tentado a repreendê-la. Eu dizia: "Ninguém conhece o Senhor como você. Vive realmente a Palavra de Deus. Não vê quanto há para fazer lá fora? Por que não faz alguma coisa? É uma perda de tempo, uma perda de energia, uma perda de dinheiro, uma perda de tudo ficar ali sem fazer nada!"
Não, irmãos, esta não é a primeira coisa que se deve fazer para o Senhor. Ele quer certamente que vocês e eu sejamos úteis. Deus me livre de predicar a inatividade, ou de aprovar um comportamento de indiferença no que diz respeito às necessidades do mundo. Como Jesus disse: "O Evangelho será predicado em todo o mundo". Mas tentemos compreender aquilo que é essencial. Pensando novamente nisso hoje, compreendo quanto o Senhor usava aquela cara irmã por falar conosco, os jovens, enquanto nos preparávamos em sua escola para a obra do Evangelho. Não poderei jamais agradecer o suficiente ao Senhor por ela e pela influência que sua vida exerceu na minha.
Qual é, então, o segredo? É claramente este: que aprovando o ato cumprido por Maria em Betânia, o Senhor Jesus estabelecia o princípio fundamental de cada serviço: oferecer a Ele tudo o que vocês têm, o seu inteiro ser; e se isto é tudo o que Ele permite vocês de fazerem, é suficiente. Não é necessário ver, como primeira coisa, se "os pobres" foram socorridos ou não, isto virá depois; mas, antes que nada é preciso se perguntar: "O Senhor está satisfeito?"
Podemos predicar num grande número de reuniões, organizar numerosos convênios, tomar parte de muitas campanhas de evangelização. Estamos certamente em condições de fazê-lo.
Podemos trabalhar e ser utilizados plenamente; mas o Senhor não se ocupa muito de nosso empenho incessante em Sua obra; não é este seu primeiro desejo. O serviço do Senhor não pode ser misturado com resultados tangíveis. Não, amigos meus, o que o Senhor considera de nós, acima de tudo, é se nos ajuelhamos aos seus pés para ungir a sua cabeça. Qualquer seja o nosso "vaso de alabastro", a coisa mais preciosa, aquela que nos é mais cara no mundo —até, permitam-me dizer, a manifestação de uma vida que procede da Cruz—, entreguemos tudo isto ao Senhor.
Para muitos, também entre aqueles que deveriam compreender, isto poderá parecer um desperdiço; mas é o que o Senhor procura acima de tudo. Muito freqüentemente o entregar-se a Ele será um serviço sem fatiga, mas Ele se reserva o direito de suspender o serviço por um tempo, para fazer-nos compreender se estamos apegados ao serviço ou a Ele mesmo.

SERVIR POR PRAZER AO SENHOR
"Em verdade vos digo que, em todas as partes do mundo onde este evangelho for pregado, também o que ela fez será contado para sua memória" (Marcos 14:9).
Por que o Senhor disse isto? Porque o Evangelho deve produzir isto. Este é o objetivo do Evangelho.
O Evangelho não existe simplesmente para socorrer os pecadores. Graças ao Senhor, aos pecadores lhes será provido, mas a sua salvação será, por assim dizer, um subproduto do Evangelho, e não seu principal objetivo.
O Evangelho é predicado, em primeiro lugar, a fim que o Senhor seja glorificado.
Eu temo que nós coloquemos demasiada ênfase sobre o bem dos pecadores, e que não apreciemos suficientemente o verdadeiro objetivo que o Senhor quer alcançar. Temos em mente qual seria a sorte dos pecadores se não existisse o Evangelho, mas esta não é a consideração essencial. Sim, graças a Deus, o pecador tem a sua parte. Deus responde a suas necessidades e o enche de bênçãos, mas esta não é a coisa mais importante. Em primeiro lugar está o fato que cada coisa deveria tender à glória do Filho de Deus. Somente quando Ele é glorificado nós somos justificados e os pecadores são perdoados. Nunca achei nem uma única pessoa que tivesse obedecido ao Senhor e não tivesse sido jamais satisfeita em cada uma de suas necessidades. É impossível. A nossa satisfação está inevitavelmente ligada àquilo que nós fazemos para obedecer ao Senhor. Mas é necessário lembrar-se que Ele não estará nunca satisfeito se nós não nos "desperdiçamos" para Ele. Alguma vez deram demasiado ao Senhor? Posso fazer uma confidência? Uma lição que algum de nós aprendeu é que, no serviço do Senhor, o princípio do "desperdiço" é o princípio do poder. O princípio que determina a verdadeira utilidade é o princípio do gasto supérfluo. A verdadeira utilidade mede-se nas mãos de Deus em termos de "perda". Mais acreditam poder fazer, mais utilizam os seus talentos até o extremo limite (e às vezes ultrapassando esses limites) para poder fazê-lo, e mais percebem que estão aplicando os princípios do mundo e não os do Senhor. Os caminhos de Deus a nosso respeito convergem para estabelecer em nós este outro princípio: que nosso serviço para Ele depende da nossa dedicação a Ele. Isto não significa de modo algum que não devam fazer nada; mas o que deve ser prioritário deve ser o Senhor, não a Sua obra.
É necessário que cheguemos às aplicações práticas. Vocês talvez digam: "Eu deixei uma certa posição, abandonei um serviço, renunciei a certas possibilidades de um futuro brilhante, para seguir o Senhor. Eu procuro agora servi-Lo. Às vezes parece que Ele me ouve, e às vezes me faz esperar uma resposta precisa. Às vezes me utiliza, mas às vezes parece ignorar-me. Quando isto acontece, me comparo com alguma outra pessoa que está ocupada numa grande organização. Também ela tinha um futuro brilhante, mas não renunciou. Ela continua e serve o Senhor. Vê almas salvas e o Senhor abençoa seu ministério. Tem sucesso, não material, mas espiritual, e eu penso amiúde que parece mais cristã que eu; tem um ar tão satisfeito, tão feliz. No final, o que ganhei? Ela não conhece dificuldades, eu não tenho outra coisa. Nunca seguiu este caminho, mas ainda assim possui muitas das coisas que hoje os cristãos consideram como uma riqueza espiritual, enquanto eu sou sempre assaltado de toda sorte de complicações. O que significa tudo isto? Estou desperdiçando a minha vida? Terei verdadeiramente dado demais?"
Eis aí, então, o nosso problema. Vocês pensam que, se tivessem seguido o caminho do outro irmão, que se se tivessem consagrado o suficiente para suportar as dificuldades, o suficiente para que o Senhor se serva de vocês, mas não o suficiente como para que Ele possa imobilizá-los, tudo iria perfeitamente bem. Mas seria verdadeiramente assim? Vocês sabem muitíssimo bem que não é assim não.
Tirem seu olhar daquele outro homem. Olhem para o seu Senhor e perguntem-se ainda o que há de maior valor do que Ele. Ele pede que o princípio do "desperdiço" seja o que nos governe: "Ela fez isto para mim". O coração de Deus se enche de verdadeiro gozo quando, como diz o mundo, nos "desperdiçamos" para Ele.
Parece que damos demasiado sem receber nada; mas este é o segredo para agradar a Deus.
Meus queridos amigos, o que procuramos nós? Procuramos, como os discípulos, ser utilizados? Eles queriam que cada um daqueles trezentos denários tivessem uma plena utilidade. Eles buscavam um "útil" para o Senhor que pudesse ser demonstrado com cifras e reportes. O Senhor deseja sentir-nos dizer: "Senhor, eu não me ocupo destas coisas. Se posso somente ser agradável a Ti, isso é suficiente para mim".

A UNIÃO ANTECIPADA
"Jesus, porém, disse: Deixai-a, por que a molestais? Ela fez-me boa obra. Porque sempre tendes os pobres convosco, e podeis fazer-lhes bem, quando quiserdes; mas a mim nem sempre me tendes. Esta fez o que podia; antecipou-se a ungir o meu corpo para a sepultura" (Marcos 14:6-8).
O Senhor Jesus, com este termo "antecipado", levanta uma questão de tempo; e este elemento não pode ter uma nova aplicação hoje, porque é tão importante para nós como o foi então para Maria. Saibamos todos que no século futuro seremos chamados a uma obra maior, e não a inatividade. "Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor" (Mateus 25:21), confrontar com Mateus 24:47: "Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens" e Lucas 19:17: "Bem está, servo bom, porque no mínimo foste fiel, sobre dez cidades terás autoridade". Sim, haverá um serviço maior, porque a construção da casa de Deus prosseguirá, justamente como na história continuou a preocupação pelos pobres. Os pobres estiveram sempre com os discípulos, mas estes não tiveram sempre o Senhor.
Esta ação de Maria, esta unção de Jesus com o perfume de nardo precioso, devia ser cumprida com antecipação, porque uma semelhante ocasião não se teria mais apresentado. Eu acredito que naquele dia amaremos todos o Senhor, como não o temos amado jamais neste período de nossa vida; porém penso que existirá uma maior bênção para aqueles que tiveram entregado tudo a Ele, hoje, desde agora. Quando o vejamos face a face, estou seguro que todos romperemos nossos vasos e verteremos seu conteúdo aos seus pés. Mas hoje, o que fazemos hoje?
Tempo depois de Maria ter quebrado o vaso de alabastro e derramado o perfume sobre a cabeça de Jesus, algumas mulheres saíram bem cedo para ungir o corpo do Senhor. O fizeram? Conseguiram cumprir seu projeto naquele primeiro dia da semana? Não, houve uma única pessoa que pôde ungir o Senhor, Maria, que o havia ungido antecipadamente. As outras mulheres nunca o puderam fazer, pois Ele tinha ressuscitado. Acredito que, da mesma forma, a escolha do momento possa ter a máxima importância também para nós, e que a primeira pergunta a fazer-nos seja esta: "O que posso fazer hoje para o Senhor?"
Nossos olhos foram abertos sobre o precioso valor daqueles que servimos? Chegamos a compreender que somente aquilo que nos é mais querido, mais caro, mais precioso, é digno dEle? Chegamos a entender que trabalhar para os pobres, trabalhar para o bem do mundo, trabalhar para as almas dos homens, para o bem eterno dos pecadores —coisas todas necessárias e úteis— são bem feitas somente se estão em seu justo lugar? Em si mesmas não têm valor algum se confrontadas com aquilo que é feito para o Senhor.
É necessário que o Senhor abra nossos olhos sobre aquilo que Ele significa para nós. Se existe no mundo algum precioso tesouro de arte, e se eu pago o elevado preço que se exige por ele, sejam R$ 1000, R$ 10.000 ou até R$ 1.000.000, alguém ousará dizer que é um desperdiço? A idéia do desperdiço penetra em nosso modo de pensar só quando avaliamos em menos o real valor de nosso Senhor. Todo se resume nesta pergunta: "Que valor tem o Senhor para nós, agora?". Se nós não lhe atribuirmos muito, é evidente que tudo aquilo que Lhe oferecemos, também as pequenas coisas, nos parecerá um "desperdiço" insensato. Mas quando Ele é realmente precioso para a nossa alma, nada será demasiado caro, nada será demasiado precioso para Ele; tudo aquilo que possuímos, nosso tesouro mais prezado, nosso tesouro sem preço, o depositaremos aos seus pés, e não nos envergonharemos jamais de tê-lo feito.
O Senhor disse a Maria: "Ela fez o que podia". O que significa isto? Significa que ela ofereceu tudo, sem guardar nada para o futuro. Ela derramou sobre Ele tudo aquilo que tinha; por isso, na manhã da ressurreição, não tinha nenhuma razão para chorar sua extravagância. E o Senhor estará contente de nós somente quando tenhamos feito "o que está em nosso poder". Lembrem-se que com isto não entendo gastar as nossas forças e energias para tentar fazer alguma coisa para Ele. O que o Senhor Jesus procura em nós é uma vida depositada aos seus pés; em vista de sua morte e sepultura e de um dia futuro. A sua sepultura estava já em vista, aquele dia, na casa de Betânia. Hoje está em vista sua coroação no dia em que será aclamado na glória como o Ungido, o Cristo de Deus. sim, naquele dia derramaremos tudo o que teremos sobre Ele. Unjamo-Lo, portanto, hoje, não com o óleo material mas com algo mais precioso, com alguma coisa que provenha diretamente de nosso coração.
Aquilo que é somente externo e superficial não pode ter lugar aqui. Foi deixado de lado por meio da Cruz e nós aceitamos o juízo de Deus sobre isso e experimentamos o efeito de sua supressão. Aquilo que Deus nos pede agora está representado pelo vaso de alabastro: alguma coisa extraída do profundo, folhada, cinzelada e esculpida; alguma coisa que é para nós tão valiosa porque o é também para o Senhor, que nos é preciosa como a Maria era precioso seu vaso e que não ousamos quebrar. Vem de nosso coração, do mais profundo de nosso ser; e vamos com ele ao Senhor, o quebramos para derramar o conteúdo em seus pés e Lhe dizemos: "bem, Senhor, estamos aqui com todo o nosso ser. Todo é Teu, porque Tu és digno". Assim o Senhor tem aquilo que deseja. Possa Ele receber hoje uma semelhante unção de nós.

FRAGRÂNCIA
"E encheu-se a casa do cheiro do ungüento" (João 12:3). Desde o momento em que foi rompido aquele vaso e o Senhor Jesus foi ungido, a casa foi invadida do perfume mais doce. Todos podiam senti-lo, e ninguém podia ignorá-lo. O que significa isto?
 Quando vocês encontram um cristão que realmente tem sofrido, alguém que tenha atravessado com o Senhor experiências que tenham ultrapassado seus limites, e que, ao invés de tentar ser liberado para ser "útil", se deixou fazer prisioneiro dEle, aprendendo assim a encontrar sua satisfação somente no Senhor, imediatamente percebem alguma coisa; a nossa sensibilidade espiritual perceberá em seguida um doce perfume de Cristo. Alguma coisa, naquela vida, foi quebrada, triturada, e por isso vocês sentem a fragrância. O perfume que encheu a casa de Betânia naquele dia continua a encher hoje a Igreja; a fragrância de Maria não desaparece nunca. Foi suficiente um único golpe para romper o vaso para o Senhor, mas este gesto, aquela dedicação ilimitada de si e do perfume daquela unção, permanecem até hoje.
Nós falamos aqui daquilo que somos não do que fazemos ou predicamos. Talvez tenham pedido ao Senhor que se sirva de vocês durante muito tempo, de forma que possam levar aos outros alguma coisa dEle. Naquela oração não pediram o dom da predicação ou do ensino, mas o de poder levar em seu contato com outros, alguma coisa de Deus, da presença de Deus, depois de ter colocado tudo o que possuiam de mais prezado aos pés do Senhor Jesus.
Mas uma vez que chegaram a este ponto, vocês podem parecer bem utilizados ou não, numa forma externa, mas o Senhor começará a utilizar vocês para suscitar em outros o desejo dEle. Os outros sentirão em vocês o perfume de Cristo; até o menos ligado a estas coisas estará em condições de discerni-lo. Cada um perceberá que há aqui um que caminha com o Senhor, que sofreu, que não agiu por si mesmo, que aprendeu o que significa submeter tudo a Ele. Uma vida deste gênero suscita impressões, as impressões produzem desejos e o desejo impulsiona os homens a buscar, até que sejam introduzidos pela revelação divina, na plenitude da vida em Cristo.
Deus não nos colocou aqui com o primeiro objetivo de trabalhar ou de predicar para Ele. A primeira razão pela qual Ele nos coloca aqui é para que nós suscitemos fome nos outros. Isto é, depois de tudo, o que prepara o fundamento da predicação.
Se vocês apresentam um gostoso doce diante de pessoas que voltam de um bom almoço, qual será sua reação? Elas comentarão, admirarão seu magnífico aspecto, se interessarão pela receita, pensarão no preço, mas não o comerão! Porém, se elas tivessem verdadeiramente fome, não passaria muito tempo antes que o doce tenha completamente desaparecido. Assim é com as coisas do Espírito. Nenhuma obra verdadeira poderá ser iniciada numa vida, se antes que nada não é suscitada nela a verdadeira necessidade. Mas como pode isto ser feito? Nós não podemos suscitar pela força um apetite espiritual nos outros; não podemos constrangê-los a ter fome. A fome deve se produzir espontaneamente, e só pode acontecer através daqueles que levam em si a marca de Deus.
Gosto de pensar nas palavras daquela mulher "importante" de Suném. Falando do profeta que havia hospedado sem ainda conhecê-lo, disse: "Eis que tenho observado que este que sempre passa por nós é um santo homem de Deus" (2 Reis 4:9). O que produziu esta impressão nela não foi o que tinha feito ou o que tinha falado o profeta Eliseu, mas aquilo que ele era. Em sua forma simples de pensar, ela havia podido perceber alguma coisa; tinha enxergado. O que vêem os outros em nós? Podemos deixar muitos tipos de impressões; podemos deixar a impressão de que somos inteligentes, que somos cultos, que somos isto ou aquilo. A impressão que deixava Eliseu era uma impressão de Deus mesmo.
A influência que podemos ter sobre os outros depende de uma única coisa, da obra que cumpriu a Cruz em nós, pela confirmação da vontade de Deus. Ela pede que eu tente de obedecer somente o Senhor, sem me preocupar daquilo que vai me custar. A irmã de que falei antes encontrou-se, um dia, numa situação muito difícil, que podia lhe custar tudo. Eu estava perto dela, naquele momento, e nos ajoelhamos para orar, que os olhos úmidos. Alçando o olhar para o céu, ela disse: "Senhor, estou pronta para deixar quebrantar meu coração para satisfazer o teu". Falar assim, de coração partido, poderia ser para muitos de nós só um lance de puro sentimentalismo, mas para ela, na situação em que estava, queria dizer exatamente isso.
Deve haver alguma coisa —um consentimento à entrega de nós mesmos no quebrar o vaso e verter tudo o conteúdo para Ele— que permita ao perfume de Cristo se expandir e se reproduzir em outras vidas; uma consciência da necessidade deles que os impulsione a procurar e conhecer o Senhor. Isto me parece ser o centro de tudo.
O Evangelho tem por único objetivo criar em nós, pecadores, uma disposição que satisfaça o coração de nosso Deus. Para que isto aconteça, nós viemos a Ele com tudo aquilo que temos, com tudo o que somos —sim, com tudo o que mais amamos de nossas experiências espirituais— e Lhe dizemos: "Senhor, eu estou pronto para abandonar tudo isto por Ti; não pela tua obra, não pelos teus filhos, não por outras coisa, mas por Ti, somente para Ti".
Oh, sermos desperdiçados nEle! É uma coisa abençoada sermos desperdiçados para o Senhor. Muitas pessoas eminentes, no mundo cristão, não sabem nada disto. Muitos de nós fomos utilizados plenamente, talvez demais, mas não sabemos o que quer dizer sermos desperdiçados em Deus.
Gostamos de estar sempre "ocupados"; o Senhor poderia preferir alguma vez ter-nos em prisão. Nós vemos tudo em termos de viagens apostólicas; Deus se digna ter seus maiores embaixadores acorrentados.
"Graças, porém, a Deus que em Cristo sempre nos conduz em triunfo, e por meio de nós difunde em todo lugar o cheiro do seu conhecimento" (2 Coríntios 2:14).
"E encheu-se a casa do cheiro do bálsamo" (João 12:3).
Que o Senhor nos dê a graça de saber sempre como agradá-Lo. Quando, como Paulo, prefiramos este escopo supremo (2 Coríntios 5:9), o Evangelho terá alcançado seu objetivo.


ÍNDICE

CAPÍTULO 1 – O SANGUE DE CRISTO    3
O nosso duplo problema: os pecados e o pecado
O duplo remédio de Deus: o sangue e a cruz
O problema dos nossos pecados
Primeiramente o sangue tem valor diante de Deus
Deus é satisfeito
A via pela qual o crente vai a Deus
A vitória sobre o acusador
CAPÍTULO 2 – A CRUZ DE CRISTO         9
Outra distinção
A condição natural do homem
Como em Adão, assim em Cristo
O meio divino da liberação
O que a sua morte e ressurreição representam e abrangem
CAPÍTULO 3 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: SABER   15
A nossa morte com Cristo é um fato histórico
O primeiro passo: "sabendo que..."
A revelação divina é a base essencial da consciência
A cruz na raiz do nosso problema
CAPÍTULO 4 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: FAZER DE CONTA DE ESTAR
    MORTOS   19
O segundo passo: assim, vocês considerem-se como...
Considerar-se pela fé
As tentações e as quedas, desafio à fé
Permanecer nEle
CAPÍTULO 5 – O PODER DI SEPARAÇÃO DA CRUZ    26
Duas criações
A sepultura significa um fim
A ressurreição em novidade de vida
CAPÍTULO 6 – O CAMINHO PARA IR ALÉM: APRESENTAR-SE A DEUS     31
O terceiro passo: "apresentai-vos..."
Separado para o Senhor
Servo ou escravo?
CAPÍTULO 7 – O DESÍGNIO ETERNO      33
O primogênito de muitos irmãos
O grão de trigo
A escolha que Adão deveu enfrentar
A escolha de Adão, razão da cruz
Quem tem o Filho tem a vida
Todos nasceram de um homem só
CAPÍTULO 8 – O ESPÍRITO SANTO         37
A efusão do Espírito
A fé é ainda a chave
A diferença da experiência
A permanência do Espírito em nós
O tesouro no vaso de barro
A soberania absoluta de Cristo
CAPÍTULO 9 – O SIGNIFICADO E O VALOR DO SÉTIMO CAPÍTULO DA   
    CARTA AOS ROMANOS            46
A carne e a derrota do homem
O que ensina a lei
Cristo, até a lei
O fim de nós mesmos é o princípio de Deus em nós
Graças sejam dadas a Deus!
CAPÍTULO 10 – O CAMINHO DO PROGRESSO: CAMINHAR SEGUNDO O
    ESPÍRITO   54
A carne e o Espírito
Cristo, a nova vida
A lei do Espírito da vida
A manifestação da lei da vida
O quarto passo: "caminhar segundo o Espírito"
CAPÍTULO 11 – UM ÚNICO CORPO EM CRISTO          62
Uma porta e um caminho
Os quatro aspectos da obra de Cristo sobre a cruz
O amor de Cristo
Um único sacrifício vivente
Mais que vencedores em virtude de Cristo
CAPÍTULO 12 – A CRUZ E A VIDA DA ALMA    69
A verdadeira natureza da queda
A alma humana
A energia natural na obra de Deus
A luz de Deus e o conhecimento
CAPÍTULO 13 – O CAMINHO DO PROGRESSO: CARREGAR A CRUZ          76
A obra subjetiva da cruz
A cruz e a abundância dos frutos
Uma noite escura – uma manhã de ressurreição
CAPÍTULO 14 – O OBJETIVO DO EVANGELHO            82
Desperdiço
Servir por prazer ao Senhor
A união antecipada
Fragrância




[1] O autor aqui, e através deste estudo, usa o termo "a Cruz" num sentido particular. Muitos leitores conhecerão bem o uso da expressão "a Cruz" para significar, em primeiro lugar, a inteira obra redentora cumprida historicamente na morte, sepultura, ressurreição e ascensão do Senhor Jesus (Fp 2:8-9); e, em segundo lugar, num sentido mais amplo, a união dos crentes com Ele através da graça (Romanos 6:4; Efésios 2:5-6). Desde o ponto de vista de Deus, neste uso do termo, a função de "o sangue" em relação ao perdão dos pecados (como tratado no capítulo precedente), é claramente incluída (com tudo que se segue neste estudo) como uma parte da obra da Cruz.
Neste e nos seguintes capítulos, contudo, o autor foi constrangido, por falta de um termo alternativo, a utilizar "a Cruz" num sentido doutrinário muito mais particular e limitado, a fim de traçar uma útil distinção entre a substituição e a identificação, como sendo, de um ponto de vista humano, dois aspectos separados da doutrina da redenção.
Portanto, o nome do inteiro e usado por uma das partes. O leitor deverá ter presente isto nos textos que se segue (N. do E.).
[2] A expressão "com Ele" de Rm 6:6 inclui, naturalmente, um sentido doutrinário e um sentido histórico (ou temporal). Só no sentido histórico a afirmação é reversível (W.N.).
[3] Estas citações foram extraídas de "Hudson Taylor e a Missão interna na China".
[4] O verbo grego "katargeo", traduzido como "destruído" em Rm 6:6 não significa "anulado" mas "colocado fora de ação", "deixado inoperante". Ele provém da raiz grega "argos", Que significa "inativo" ou "inoperante", "inútil", e é a palavra traduzida como "ociosos" em Mateus 20:3 e 6 para distinguir os trabalhadores desocupados dos que estavam na praza do mercado.
[5] Do grego "sumphutos", "plantado e crescido com Ele", "convertidos numa mesma coisa com". A palavra é utilizada no grego clássico no sentido de "enxertada". Na esplêndida ilustração que vimos, penso que a analogia de "enxertado" não seja expressa demasiado exatamente, por quanto não é prudente dizer, fora de qualquer precisão, que Cristo foi "enxertado" na velha cepa. Mas qual palavra pode descrever adequadamente o milagre da nova criação? (Ed.).
[6] O "Long-Ien" (Euforia Longana) é uma árvore originaria da China. Seu fruto é grande como um damasco e tem uma noz redonda, uma casca similar a papel seco, marrom claro, polpa deliciosa, branca, similar à uva. Se come fresco ou seco, e os chineses o apreciam pelo ser valor nutritivo (Ed.).
[7] Dois verbos gregos, "paristano" e "paristemi" são traduzidos como "dar" na versão revisada (original), enquanto a versão antiga diz "oferecer". "Paristemi" é utilizado freqüentemente com este significado, por exemplo em Rm 12:1; 2 Co 11:2; Cl 1:22,28; Lc 2:22, onde se refere à apresentação de Jesus no Templo. Ambos verbos têm um sentido de ação, pelo qual a versão revista é a que deve preferir-se. "oferecer" contém antes bem uma idéia passiva de abandono que tem muita influência sobre o pensamento evangélico, mas que não está em harmonia com o contexto que temos aqui em Romanos (Ed.).
Tanto na ARA como na PJFA a palavra é traduzida como "apresentar". Nas outras passagens mencionadas acima também, em todas, tem a mesma tradução (N. do T.).
[8] "O Espírito Santo – Quem é e o que faz", de R. A. Torrey, D. D. pp. 198-9.
[9] A vida de L. D. Moody e seu filho W. R. Moody.
[10] Autobiografia de Charles Finney, capítulo 2.
[11] Parece que existam duas exceções: uma se encontra em 1 Coríntios 11:28-31 e a outra em 2 Coríntios 13:5. A primeira citação exorta a examinar a nós mesmos para ver se reconhecemos o Corpo do Senhor ou não, e isto em relação com a Ceia do Senhor, e não com um conhecimento de si mesmos. No segundo fragmento, Paulo nos ordena severamente de examinar-nos para compreender se estamos ou não "na fé". Trata-se de saber se uma fé fundamental existe em nós, se efetivamente somos cristãos. Isto não tem nenhuma relação com o caminho do dia-a-dia no Espírito, nem com o conhecimento de nós mesmos (Nota do autor, W.N.).
[12] Este é uma das muitas referências do autor à defunta Miss Margaret B. Barber da Eremita da Pagoda, de Foochow (Ed.).


[13] As nossas traduções têm quase sempre, neste versículo, a palavra "vida" (Diodati, Riveduta). O texto grego utiliza sempre "psiche" que significa, literalmente, "alma", como afirma o autor (Nota do Tradutor original).
Nas versões em português (Atualizada, Fiel) também acontece o mesmo uso de palavras (Nota da Tradutora do italiano).
[14] O autor segue aqui a crença comum que "a casa de Simão o leproso" fosse a habitação de Maria, Marta e Lázaro; e que Simão fosse um parente deles (Nota do Editor).

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