O DISCURSO BÍBLICO A PARTIR DE QUATRO MULHERES NO NOVO TESTAMENTO: UMA EXEGESE FEMININA.

O DISCURSO BÍBLICO A PARTIR DE QUATRO MULHERES NO NOVO TESTAMENTO: UMA EXEGESE FEMININA.
Leitura, a partir de uma perspectiva feminina, das descrições da mulher no Novo Testamento, especialmente as de Maria, Maria Madalena, Maria de Betânia e a Mulher Samaritana.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher. Cristianismo. Discurso Bíblico.


As mulheres do Novo Testamento foram escolhidas pelo Messias, juntamente com os discípulos, para serem testemunhas, propagadoras do Reino de Deus e, em função disso, estiveram sempre envolvidas no ministério de Evangelização, expandindo o cristianismo por todo o mundo, ação da qual resultaram as narrativas que compõe o discurso bíblico do Novo Testamento.
Elaborado nos mais variados contextos, por homens das mais diversas formações, o discurso bíblico é informado pelos mais diversos conteúdos, como atesta a magnitude temporal, necessária à sua elaboração: doze séculos. Tal período não se aplica ao Novo Testamento que só começa a ser propagado, nos Sessenta e cinco, do século I, isto é, depois de Cristo. A essa pluralidade de informações se somaria toda uma variedade discursiva, oriunda da formação diversa de seus elaboradores e propagadores.
Elaborado a partir das mais distintas vozes, por homens de formação e condições diferenciadas; o texto bíblico é organizado por uma multiplicidade de gêneros discursivos e linguagens que acentuariam, ainda mais, o seu caráter de heterogeneidade e polifonia. Tal polifonia, alicerçada pelo discurso oral, também informa o Novo Testamento envolto num universo de esperança e projeções, onde se revela o Acontecimento: Jesus.
Em face do nosso estudo exegético sobre os Evangelhos sinóticos, optamos analisar as mulheres, observando as maneiras com as quais os Evangelistas tecem suas várias configurações do feminino. Essas mulheres não eram meras espectadoras no Novo Testamento, elas exerceram papel ativo, vital na criação e na expansão do Cristianismo. São profetisas, pedagogas, discípulas e ministras. Amigas de Jesus.
Sobre Maria, em todos os Evangelhos e no livro de Atos, é a mulher preparada, de modo especial, para participar da vida de seu filho na terra. Nessa descrição, Maria se apresenta como o feminino de Deus, em uma linguagem de dimensão do amor presente nas mulheres e nos homens.
Dono de uma vasta erudição, considerado como o mais literário entre os evangelistas, Lucas se revela um exímio narrador, ao longo de seu discurso. Ao tratar de Maria acrescenta, a sua descrição, o diálogo que se trava entre Maria e o Arcanjo Gabriel – Como se fará isso? (LUCAS 1.34). Eis a serva do Senhor! (LUCAS 1,38). Minha alma exalta o Senhor! (LUCAS 1,47-55). Por que agiste assim conosco?( LUCAS 2,48). Abrindo seu texto a voz feminina.
Dessa forma, Lucas nega a passividade e o silêncio de Maria, atributos que caracterizam as várias descrições dos demais evangelistas, ao se referir à Anunciação de Jesus. Expresso apenas no Evangelho de Lucas, esse diálogo nos revela os sentimentos de Maria, suas dúvidas, mesmo sabendo da grandeza divina, Maria fala, reflete, argumenta com o anjo de Deus, e sua resposta revela perfeita compreensão das Escrituras e sua disposição e obediência a Deus, conforme salienta Wilma Martins de Mendonça, em sua leitura da mulher, no Evangelho de Lucas:

Maria de Nazaré não aceitou passivamente o plano divino de ser a mãe do Salvador. Ante o mensageiro de Deus o anjo Gabriel, plena da graça divina, Maria reflete, questiona, antes de se decidir. Somente após a esse exercício de argüição é que Maria, á revelia de seu marido, de sua comunidade, dispõe livremente de seu corpo, de seu destino. É evidente que a aceitação de Maria em se tornar a mediadora entre Deus e os homens não é isenta de grandes riscos. O perigo do repudio do marido e o conseqüente apedrejamento moral e físico pela sua comunidade não eram apensa possibilidades, mas práticas arraigadas, inexoravelmente cumpridas. E se isso não ocorre, deve-se à pronta intervenção de Deus, que, conhecendo o propósito de José, o de abandonar Maria, envia-lhe o Anjo Gabriel.
 (MENDONÇA, 2005,1-2)

Maria ao dispõe-se livremente de seu corpo e de seu destino, idéia assustadora de entregar-se como instrumento para a ação do Espírito Santo, mesmo sabendo que enfrentaria os preconceitos e os riscos da sociedade patriarcal. “Então disse Maria: ‘Está aqui a serva do Senhor, que se cumpra em mim conforme a tua palavra’. E o anjo se ausentou dela”. (LUCAS 1.38)
E de Maria nasce Jesus que se voltaria para a alma e o coração feminino. Jesus foi um amigo das mulheres; o primeiro e praticamente o último que as mulheres tiveram na Igreja. Os Evangelhos apreenderiam as discípulas de Jesus, como Maria Madalena, Joana e Susana através dos velhos preconceitos dos judeus. Em relação à Madalena, alvo número um desses preconceitos, é preciso ressaltar que ela é mencionada e descrita nos quatro evangelhos canônicos como a primeira testemunha do evento e da fé pascal.
Não obstante considerado o “evangelista das mulheres, Lucas omite o seu papel de primeira testemunha, frisando que o Senhor ressuscitado apareceu a Pedro, omitindo assim a aparição pascal às discípulas mulheres, assim como as palavras dessas mulheres lhes parecem como desvario e não lhes dá crédito (LUCAS 24, 11).
Essas informações, nós só teríamos na EPISTOLA APOSTOLORUM, documento apócrifo do século segundo, no qual se sublinha o ceticismo dos discípulos varões. Nesta versão, Maria Madalena, Sara ou Marta e Maria são enviadas para anunciar aos apóstolos que Jesus ressuscitou. Os apóstolos, porem, não acreditam nelas, mesmo quando o próprio Senhor corrobora seu testemunho. Somente depois de toca-lo, reconhecem que ele ressuscitou verdadeiramente na carne”.(Elizabeth S. Fiorenza. p.371,1992)
“A ação simbólica e profética da mulher não veio a se tornar parte do conhecimento evangélico dos cristãos”, porque os Evangelhos foram escritos por varões, nas palavras de Judy Chicago: “Todas as instituições de nossa cultura dizem-nos – por palavras, fatos e, pior ainda, pelo silêncio – somos insignificantes. Mas nossa herança é nossa força” (FIORENZA, 1992, p.16).
Ao se voltar para o episódio em que uma mulher unge Jesus, identificada no Evangelho de João como Maria de Betânia, Lucas desvia o foco da narrativa da mulher como discípula para a mulher como pecadora, se afastando, assim, da descrição de João que a vê como amiga e discípula de Jesus ( JOÃO 12;3 e LUCAS 7,37-50). Alguns exegéticos relatam que está historia foi escrita primeiro em Marcos e que possivelmente Lucas escreveu a partir dele, é possível que tenha cometido um erro exegético da leitura oral à escrita, a mulher converte-se numa grande pecadora que ao ungir os pés de Jesus é perdoada.
 A representação das seguidoras de Cristo é feita através de uma diversidade de matizes que as destacam como importantes personagens dessa época histórico-religiosa, marcada por preconceitos e hostilidades à mulher. Assim, ora se acentuará, nos discursos bíblicos, as suas condições de ex-possessas, ora como apostolas de Jesus, ou mesmo financiadoras do projeto de Cristo, como Maria chamada Madalena , Joana, Susana e outras firmes lideranças a quem Cristo apareceria, tornando-as suas mediadoras entre os apóstolos, como se vê a seguir:

E aconteceu, depois disto, que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus, os doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíra sete demônios, e Joana, mulher de Cuza, procurados de Herodes, Suzana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens.
(LUCAS .8.1-3)

Maria Madalena transformou-se na personificação da devoção cristã, definida como arrependimento. Percebe-se que ela foi identificada, de forma imprecisa, pelo Evangelista Lucas que desvia o foco da narrativa da mulher como discípula para a mulher como pecadora e possessa, da qual havia saído sete demônios, não obstante ser, nos evangelhos canônicos, a figura feminina mais importante, conforme afirma Caroll:

Maria passou da condição de uma discípula importante, cujo status superior dependia da confiança que o próprio Jesus nela depositava, à condição de uma prostituta arrependida, cujo status dependia da carga erótica de sua história e da atribulação de sua consciência angustiada.
(James Carrol , Copyright ,2006– este artigo foi publicado no livro de Dan Busrstein & Arne J.de Keijser. p.36)

Em relação à possessão, é interessante observar que tal condição é circunscrita ao feminino. Na Bíblia, não há possessos ou ex-possessos, há apenas possessas ou ex-possessas, como observara, em 1995, Josep Rius-Camps. Ao registrar esse fato, Camps atribuiria esse comportamento escritural à tradição israelita, na qual as mulheres eram representadas como classes marginalizadas, como se comprova de sua análise:

Maria tinha estado possuída por “sete demônios”, isto é, por todas as ideologias contrárias ao homem (“demônios”) que se possam imaginar (“sete”:universalidade), e tinha ficado definitivamente livre deles no passado (sentido mais-que- perfeito); ademais, predica-se das três: “haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças”, isto é, da maneira de pensar da sociedade opressora que priva de liberdade a pessoa e a torna doente.Dos doze não se afirmou, no momento, que tinham sido libertados de nada. Acaso não estavam condicionados pelos princípios que regiam aquela sociedade?
(CAMPS, 1995,  p.126,)


É importante salientar que o valor da liderança exercida por Maria Madalena entre os primeiros cristãos, bem como a predileção de Jesus por ela, rompe com a visão sexista da Igreja, agride o ego masculino e provoca uma reação a fim de eliminar essa imagem e exemplo. Considerar Maria Madalena uma prostituta significava também subestimar o valor da mulher enquanto liderança e reduzi-la à passividade e ao arrependimento. Durante a construção da Igreja, enquanto instituição organizada e poderosa pelos séculos, a imagem de “Maria Madalena foi reinventada de prostituta a sibila, freira celibatária, colaboradora passiva, ícone feminista e matriarca da dinastia secreta da divindade.”
No encontro com Jesus, ela recupera a harmonia interior e entra em um processo de crescimento e amadurecimento pessoal até atingir a plenitude do seu ser na experiência pascal: “Vi o Senhor! Gritou ela com entusiasmo sem igual ao pequeno grupo de discípulos desorientados e incrédulos’ (MARCOS 16-11)”.
Nos evangelhos sinóticos, Maria Madalena é citada em primeiro lugar, indicando sua liderança no grupo de discípulas de Jesus. Por isso, desde o começo da tradição apostólica, Maria Madalena recebeu o título de apóstola dos apóstolos, porque ela recebeu a principal ordenação, sem a qual nenhuma outra teria sentido: ela recebeu a ordem de anunciar que Jesus estava Vivo, que ele havia ressuscitado, vendido a morte..
Da linhagem feminina bíblica, encontramos, ainda, Maria de Cleópas, prima ou irmã da mãe de Jesus, Salomé, mãe de João e Tiago, Marta e Maria de Betânia, irmãs de Lázaro e Isabel, mãe de João Batista, assim como a Mulher Samaritana, personagem retratada somente pelo Evangelista João, excluída do convívio social, e por ter tido cinco maridos.
Jesus encontrou essa mulher no poço de Jacó, perto da cidade de Sicar, e falou com ela, problematizando três códigos sociais, duramente incrustados na sociedade judaica: o da inferioridade feminina, o da inferioridade dos samaritanos e do desprezo, explícito e público, da prostituta..
Jesus ignorou todas essas barreiras sociais ao conversar com a Samaritana. Ele se revelou como Messias que todos aguardavam ansiosamente, oferecendo perdão, redenção e uma nova vida. Ela bebeu da taça de água viva que Jesus lhe ofereceu e foi correndo até a cidade, para da notícia àquelas mesmas pessoas que a desprezavam: o povo de Samaria. Ao chegar lá, proclamou radiante, e sem qualquer constrangimento, a vinda do Messias prometido.
A atitude de Jesus não escandaliza apenas os fariseus, aos olhos dos próprios discípulos a abertura de Jesus para com as mulheres era incomum, como se apreende da passagem de João: Nisso seus discípulos chegaram e maravilharam-se de que estivesse falando com uma mulher. Ninguém, todavia perguntou: Que perguntas? Ou: Que falas com ela?(JOÃO 4,27)
Em relação a Maria de Betânia, o discurso dos evangelistas mostram-na dotada de uma grande capacidade de tomar decisões. É ela que, após morto Jesus, derrama-lhe óleo sobre o corpo, preparando-o assim para o sepultamento. Três evangelhos relatam seu significativo gesto sacrifical: 300 gramas de puro ungüento de nardo indiano, valendo o salário de um ano de trabalho, generosamente derramados, com humildade, sobre o seu Salvador (MATEUS 26.6-13; MARCOS 14.1-9).
As descrições de Maria de Betânia revelam, aparentemente, que era solteira e vivia com sua irmã marta e seu irmão Lázaro. Esta mulher, mais do que qualquer outra personagem do Novo testamento, é caracterizada pela lucidez espiritual e pela disposição de agir de acordo com sua fé, o que lhe valeu o elogio de Cristo (MATEUS 26.13).
Se Deus não faz acepção de pessoas, no ministério não há como excluir aquelas que mais significado e importância têm na transmissão da fé. Jesus rompe o passado e com os obstáculos que impedem o anúncio da graça para os pobres e oprimidos.
Para nos libertar das ideologias e preconceitos machistas, nada melhor que mergulhar na historia Sagrada da Bíblia, procurando desvendar os mitos e enigmas ainda não decifrados  a respeito das mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURSTEIN , Dan; KEIJZER, Arne J. de. Secrets of Mary Magdalene. Traduzido por Alexandre Martins e Marcos José da Cunha. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

FIORENZA, S Elisabeth. As origens Cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Edições Paulinas. 1992.

HEINEMANN, Ranke. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996.

JOSAPHAT, Carlos. As santas doutoras: espiritualidade e emancipação da mulher. São Paulo: Paulinas, 1999. NELSON, Thomas. The Woman’s Study Biblie - BOFF, Lina. Maria e o feminino de Deus – Para uma espiritualidade mariana. 3ª edição. São Paulo: Paulus, 2005A Bíblia da Mulher. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2ª edição. São Paulo:Mundo Cristão, 2003.

MENDONÇA, Wilma Martins de. Artigo em homenagem à Anayde Beriz. João Pessoa, 2005.

RIUS_CAMPS, Josep.  O Evangelho de Lucas: o êxodo do homem livre. São Paulo: Paulus, 1995.

Benedita Aguiar Ferreira*
*(Mestranda em Ciências das Religiões)



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